Marcelo Yuka eterno: a semente revolucionária do músico, poeta e ativista

02/10/2024

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Lucas Vieira

Por: Lucas Vieira

Fotos: Reprodução

02/10/2024

“Quando o instrumento do medo não funciona a gente adquire um poder inimaginável”. A voz de Marcelo Yuka é a primeira ouvida em JARDINEIROS (2022), abrindo o disco com essa poderosa mensagem de enfrentamento. Falecido em 2019, o músico, poeta e ativista político travou várias batalhas ao longo de seus 53 anos de vida e deixou um legado inspirador, que continua a ser celebrado após sua morte.

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Marcelo Fontes do Nascimento Viana de Santa Ana nasceu em 31 de dezembro de 1965. No bairro de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o artista cresceu ao lado dos pais, ambos professores, e do irmão Renato. “A gente tinha uma relação muito engraçada, porque nós tínhamos quase 30 anos de diferença de idade, então para ele às vezes era meio pai e filho, o que fazia que rolasse uma coisa muito amorosa, mas também conflituosa, como em qualquer família. Às vezes ele me botava no carro, colocava um dub para tocar e falava: ‘Tá sentindo o baixo? Tá ouvindo? Tem que balançar a cabeça, pegar no peito, entendeu?’”, lembra Pedro Yuka, produtor musical e irmão mais novo de Marcelo.

Na adolescência, Marcelo abriu seus olhos para a leitura. Xerocava textos de filosofia e sociologia além de devorar livros de Nietzsche e Baudelaire. “Ler foi libertador. A leitura pode ser amiga e companheira. Ela mudou até minha maneira de falar. Tomava uma dura da polícia e percebia que o guarda me respeitava mais por eu ter outra forma de me expressar. Isso garantia – literalmente – minha libertação”, contou em no livro Não Se Preocupe Comigo – Marcelo Yuka (2014), de Bruno Levinson.

“Eu era camelô e vendia muamba no Catete e o Yuka volta e meia parava por ali para ficar conversando. A primeira lembrança que tenho das milhões de vezes que falei: ‘caraca, esse cara é foda!’ foi quando ele me deu uma fita K7 do Massive Attack. Foi a primeira vez que ouvi um trip hop e eu pirei. Ele disse que percebia que eu era um cara muito sensível e que ia amar aquele som”, conta Marcelo D2.

Foi através da música que Yuka pôde tirar sua escrita da gaveta. Depois de passar a adolescência batucando na carteira da escola, o artista fez parte da banda de reggae KMD-5, na baixada fluminense. Destacando-se como baterista de reggae no cenário musical carioca, após a saída de seu primeiro conjunto, foi convidado, em 1993, para integrar a banda que acompanhou o cantor caribenho Papa Winnie pelo Brasil. Após a excursão, junto de alguns dos músicos que estavam nela, formou o grupo que o tornaria conhecido: O Rappa.

A banda surgiu em um momento em que a música do Rio de Janeiro tinha entre seus expoentes os artistas SpeedfreakS, Funk Fuckers, Farofa Carioca e Planet Hemp. Havia muito suingue nas músicas, crítica social e uma musicalidade que misturava o balanço da música brasileira com influência do reggae, hip hop, do hardcore e do rock alternativo. Embora não fosse o vocalista, Yuka escrevia grande parte das letras das canções feitas em parceria com os outros integrantes d’O Rappa, sendo considerado por muitos uma espécie de mentor intelectual da banda.

“O Yuka era um cara que desde cedo levantava essas pautas que estão aí hoje, como racismo, políticas sociais, diversidade. Já eram pensamentos que ele tinha, escrevia em fanzines, já era um cara bem avançado. Ele e o Chico Science talvez foram os caras mais influentes da minha vida, porque uma coisa é ter influência do Jorge Ben, que parecia ser inalcançável, mas eles dois estavam ali comigo. Eles abriram as portas do que estava dentro de mim e acho que o Yuka fez isso com milhares de pessoas”, diz D2.

Yuka participou dos quatro primeiros discos d’O Rappa, três feitos em estúdio – O Rappa (1994); Rappa Mundi (1996) e Lado B Lado A (1999) – e um ao vivo, Instinto Coletivo (2001). O baterista foi responsável por letras que definiram a banda e, com objetividade e clareza, ilustraram as complexidades da sociedade brasileira de forma poética, sendo admirado tanto nas favelas quanto nas elites intelectuais. São de Yuka os versos de canções como “Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)”, “Tribunal de Rua”, “Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro”, “O Que Sobrou do Céu” e “Pescador de Ilusões”.

Fora d’O Rappa, ele também compôs parcerias com artistas como Ed Motta, Seu Jorge e Gabriel, o Pensador, além de ter canções gravadas por Maria Rita, Daniela Mercury e Elza Soares, com destaque para esta última, que gravou o grito de protesto “A Carne”, em seu álbum Do Cóccix Até O Pescoço (2002). 

Em 9 de novembro de 2000, Yuka foi vítima de uma tragédia que mudaria para sempre a sua vida. Ao entrar na rua José Higino, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, o artista se deparou com uma cena de assalto em que foi baleado nove vezes. Um dos disparos atingiu sua segunda vértebra torácica e, no auge do sucesso, aos 34 anos, Marcelo ficou paraplégico.

Depois do episódio, Yuka não pôde mais tocar bateria. Recuperado, focou na composição e no ativismo político. Desde o início d’O Rappa, o músico participou ativamente de diversos projetos sociais como o Afroreggae, fazendo parte da criação da FASE (Federação de Órgãos para Assistência e Educação do Rio de Janeiro), da B.O.C.A (Brigada Organizada de Cultura Ativista) e do F.Ur.T.O (Frente Urbana de Trabalhos Organizados). Além disso, também se tornou grande defensor das pesquisas com células tronco e, em 2012, concorreu à prefeitura do Rio de Janeiro como vice de Marcelo Freixo nas eleições municipais.

Em 2001, meses após ser vítima dos tiros, Yuka saiu d’O Rappa, por conflitos internos. Em 2005, gravou com a banda F.Ur.T.O, que carregava o mesmo nome do projeto social ao qual fez parte, o álbum Sangueaudiência, que tem entre os destaques as faixas “Caio Pra Dentro de Mim” e “Não Se Preocupe Comigo”. Apenas em 2017 lançaria um novo álbum, o último em vida, chamado Canções Para Depois do Ódio

“Me tornei próximo do Yuka por volta de 2004, gravei com ele o disco do Djangos, fizemos um trabalho com o Xê Casanova e também participei do álbum dele, Canções Para Depois do Ódio, desde a fase de pré-produção”, lembra Jomar Schrank, guitarrista e produtor musical.

“Uma coisa que me chamava atenção no Yuka é que o processo de criação dele não partia de nenhum instrumento, era intuitivo, espontâneo. Um método que ele fazia muito era ligar pra gente do celular dele, ainda muito rudimentar, avisar que iria ligar de novo e pedir para deixar cair na caixa postal para ele gravar uma melodia que estava na cabeça. Depois a gente gravava a ideia no computador através de um microfone e começava a trabalhar na música. Ele adorava usar tecnologia e criava de uma forma muito livre”, diz Jomar.

Além de se adaptar a novos instrumentos, tocando teclados e baterias eletrônicas, depois de sua saída d’O Rappa o artista passou a realizar outras atividades, ministrando palestras, realizando discotecagens e atuando com produção musical. Yuka passou a conviver com dores incessantes e, além dos tratamentos médicos, contou com a meditação para sua recuperação. 

Em diversos depoimentos, o artista sempre deixou claro que não culpava os bandidos pelo episódio de violência que sofreu, mas sim a sociedade, que produz a injustiça. Em 2009, também no bairro da Tijuca, o músico sofreu uma outra tentativa de assalto, em que os assaltantes desistiram de roubar seu carro por não conseguirem dirigi-lo, uma vez que o veículo era adaptado para deficientes.

Marcelo Yuka faleceu no dia 18 de janeiro de 2019, aos 53 anos, após uma infecção generalizada. Sua vida e obra foram marcadas por uma incessante luta pela defesa dos direitos humanos. Seu legado segue vivo e, em 2023, familiares e amigos estreiam o bloco Pescador de Ilusões, que desfilará no carnaval carioca levando a música do “poeta da paz” às ruas do Rio de Janeiro.

“O Marcelo foi um artista que soube falar de forma poética sobre os problemas que a gente vive na nossa sociedade. Ao mesmo tempo que sua obra é objetiva, ela não é monótona, as pessoas conseguem ouvir e pensar. Ele odiava ser taxado como pop, mas ele acabava usando o pop para projetar a arte dele. Mesmo morto ele continua sendo muito influente no sentido de composição, e ainda existe um monte de letra dele inédita, de coisas para serem produzidas. As ideias do Yuka são imortais, independente dele estar aqui ou não, e essa mensagem vai continuar sendo passada”, afirma Pedro Yuka.

“Se eu fosse definir o Yuka em uma palavra seria revolucionário”, resume Marcelo D2: “Para mim revolução é isso, ele era um cara super do amor, preocupado com o próximo, e é nisso que eu acredito, é por isso que ele está lá no começo do disco do Planet, porque é exatamente esse jardim que os jardineiros propõem, um jardim tão diverso que o Yuka nos ensinou lá atrás”.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 131 da revista NOIZE, lançada com o vinil de “Jardineiros”, do Planet Hemp, em 2022.

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02/10/2024

Lucas Vieira

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