Desde a Quartabê, banda instrumental que despontou com a mistura de jazz, pop e influência da Vanguarda Paulista, Maria Beraldo mostra intimidade com as bricolagens sonoras: a progressão das músicas surpreende um ouvido mais desatento, com um jogo de recorta-e-cola interessantíssimo, fruto de uma vasta pesquisa musical e de uma mente fora da zona de conforto que impõe padrões e outras tantas limitações.
Foi com toda essa experiência — agregada, ainda, a tocar junto a nomes como Arrigo Barnabé, Elza Soares e Iara Rennó — que a artista lançou ao mundo seu primeiro trabalho solo, Cavala (2018). O termo “solo”, aqui, vai além do lugar-comum. O processo de composição das músicas foi duramente solitário, pois foi também um processo de entender e aceitar sua própria sexualidade. Quando o trabalho ficou pronto para outros ouvidos, agradou de cara. A artista recebeu muitas mensagens de pessoas que, para além de admirá-la, também se identificavam com suas canções.
Questiono a ela se as perguntas em torno de sua sexualidade chegam a irritar — imagino que deva receber várias delas em entrevistas, ironicamente, inclusive de mim. Mostrando-se sempre coerente com suas respostas, ela diz: “Acho que ninguém sai ileso de fazer uma obra de arte, não tem como. É um negócio de atravessamento puro, de muita exposição, de fato.”
Enquanto maturava Colinho, seu mais recente trabalho, lançado em outubro pelo selo Risco, Maria Beraldo se enveredou por outras vertentes musicais. Dedicou-se à composição de trilhas sonoras para o cinema e teatro. O mergulho em outros estudos incentivou no processo criativo de forma natural. Para além dos autores que a marcaram — como James Baldwin e Jorge Amado — e das músicas que ouviu – que passa pelo funk, pelo pop de Rosalía, pela música confessional de Frank Ocean e por inspirações de toda a vida, como o Clube da Esquina —, o álbum chega ao mundo em outro contexto, celebrando a coletividade e a força de uma comunidade.
Convidou para o projeto os amigos e artistas que a inspiravam, como Ana Frango Elétrico (com quem canta “Masc”, uma das melhores do álbum), Zélia Duncan (em “Matagal”) e Negro Léo (em “Quem Sou Eu”), para além do resgate de “Baleia”, com Juçara Marçal e Kiko Dinucci, lançada no álbum Delta Estácio Blues (2021). Repete a parceria de sucesso com Tó Brandileone, que também coproduziu Cavala. Os Fita assinam o beat envolvente e experimental do funk minimalista que se ouve na faixa-titulo, que faz explodir cabeças já no primeiro minuto de audição do novo álbum.
Colinho passeia pelo jazz, vanguarda pop e até por uma inspiração riot grrrl em “I Can’t Stand My Father Anymore” — Is this why i’m lesbian? — , para além das letras que tematizam a sexualidade de forma criativa e questionadora, consagrando-se como um dos melhores lançamentos deste 2024.
Confira o bate-papo completo abaixo:
Você esta lançando um novo álbum após seis anos do Cavala (2018). Como foi esse processo?
É um babado isso, né? Venho respondendo a essa pergunta, e acho que isso tem a ver com a nossa dinâmica de mercado. O fato de 6 anos ser “muito” já é um ponto que nos leva a pensar no modo de fazer música, que é muito padronizado, de alguma maneira. Então, sim, é bastante tempo… esses dias, alguém tuitou “Maria Beraldo finalmente voltou a trabalhar!” [risos].
O Cavala foi um disco que atravessou muito a minha vida. Não foi um plano, eu fiz um disco porque eu comecei a compor canção. Enfim, foi acontecendo, eu comecei a compor, mostrei para algumas pessoas, elas gostaram… E aí eu comecei a compor mais, descobri como se compõe canção. Porque, desde a infância, sou instrumentista, comecei tocando clarinete. E aí, minha chegada em São Paulo, em 2013, me colocou em contato muito íntimo com a canção, tocando com Arrigo Barnabé, com a Iara Rennó. Isso ficou muito forte em mim.
Então, o Cavala me transformou. Ele foi me revelando coisas sobre meu modo de viver e de me entender. Fiquei um ano e meio fazendo shows. Aí entrou a pandemia e algumas pessoas já me perguntavam de disco novo. E eu pensava, ‘nossa gente, não tenho o que dizer’. Eu não sentia que era o momento. Além disso, eu tava ainda entendendo o que é ser cantora, o que é estar no palco sozinha. Aí, me chamaram para fazer trilha de cinema, e senti que foi o momento perfeito.
Fiz seis longas durante dois anos, e várias séries. Em 2019, comecei a trabalhar com o Felipe Hirsch no teatro, e isso foi muito importante para mim. Esse mergulho no teatro e no cinema mudou minha relação com a composição e como arranjadora. Comecei a observar as estruturas narrativas, a relação da música com as outras artes, comecei a estudar música de concerto.
Eu também acho que tava um pouco cansada do mundo dos músicos. De repente, entendi a música através do olhar de um diretor de cinema, de teatro. Tenho também uma relação muito forte com a literatura, com a palavra. Então, eu fiquei esse tempo todo mergulhada em pesquisa musical. Depois de um tempo, falei: ‘acho que agora eu tenho algo a dizer’, em termos de semântica e de estrutura mesmo.
E como foi esse processo no estúdio? A criação musical é algo que acontece naturalmente para você?
Cheguei no estúdio do Tó com o Cabral e o Serginho, com um primeiro material, para depois entender o que eu queria e não queria.
Fui buscando referências. O caminho das canções tem muita relação com a minha elaboração emocional, do entendimento do meu corpo no mundo, de pesquisa de voz. Foi realmente muito espontâneo. Chegar no estúdio é como chegar no meu quarto.
Em muitos momentos, a gente não sabia o que fazer. Isso é uma fagulha muito importante da criação, que é você se entregar à busca, a estar perdido mesmo. Foi muito visceral. Quando o Negro Léo, que é meu ídolo, foi na audição do disco, ele disse: ‘esse disco é 80% coração e 20% pensamento’. Eu nem separaria, acho que o meu pensamento é muito movido pela emoção.
E você retoma essa parceria com o Tó, né. Como é esse fluxo com ele e com os outros artistas que integram o disco?
Nossa parceria vem de longa data. Fomos criando uma intimidade muito grande, porque fazer música junto é um negócio muito íntimo, né? Ainda mais do jeito que a gente faz, de poder tá perdido junto. É um processo quase de psicanálise, de topar suas ideias antes de entender se é legal ou não. O Tó é um profissional sem igual, eu acho ele muito incrível, um engenheiro de áudio fenomenal. Ele tem um ouvido de ouro, não só tecnicamente, mas também como produtor. Ele quer sempre entender o que eu quero fazer, ele embarca nas minhas ideias mais malucas. Ele fala ‘eu confio em você, vamos fazer’.
Acho que esse disco tem essa riqueza para mim. O Cavala é sobre solidão, né? Eu me descobrindo lésbica, foi uma solidão muito intensa. O próprio fato de você ter que contar para alguém que você é lésbica é você se colocando à parte da sociedade.
Foi um álbum fruto da solidão, eu e Tó sozinhos, e que transformou tudo da água pro vinho.
Esse disco me deu uma comunidade, porque a gente não tá sozinho. No fundo… todo mundo é lésbica [risos], brincadeira! Mas, no fundo, você se sente só. Quando você descobre que tem outras pessoas na mesma, fala ‘caramba’.
E aí, nesse disco, não queria cantar sozinha, porque não me sinto mais sozinha. Então chamei a Aninha [Ana Frango Elétrico] para cantar e compor comigo [em “Masc]. Chamei os amigos. Acho que é um disco que celebra alegria de estar junto.
Você falou da solidão, e me faz pensar nesse processo de produção de uma obra, que passa, principalmente na música, por um entendimento do público de que aquilo é autobiográfico. Como você lida com isso, especialmente com um álbum que aborda a sexualidade e outros temas tão pessoais e profundos?
Tem esse questionamento, sim, essa curiosidade. É um desafio se abrir, mas é minha única opção [risos]. Eu acho que a minha relação com a música passa muito pela pelo meu entendimento do mundo, né? Acho que é um pouco a minha natureza.
Acho que ninguém sai ileso sabe de fazer uma obra de arte, não tem como. É um negócio de atravessamento puro, de muita exposição, de fato. Mas, ao mesmo tempo, por que a gente está aqui, né? Eu acho que eu encontro é a coisa mais importante que a gente pode ter na vida. Se você não se molhar, se você não colocar os dois pés inteiros, é muito difícil que você viva esse encontro. Acho que a gente tem que tirar um pouco essa proteção, se abrir para o encontro.
Inclusive, o fato do meu disco ser muito sobre sexo, é um viés político. Porque parece que não pode uma pessoa não binária, lésbica, falar de desejo. A gente não tem referência ou representatividade.
É a mesma força motriz que me faz tentar descobrir uma nova sonoridade. Existe um desconforto na escuta, talvez por parte de algumas pessoas. Ter um corpo não binário pode ser desconfortável, pode ser lindo e pode ser algo que vai te transportar para outro entendimento de mundo. Acho que é tudo muito conectado.
No fundo, neste disco, eu tô abrindo o meu coração. Espero que ele toque as pessoas.
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