Modupé: Faylon entrega EP ancestral e futurista em sua estreia

02/02/2022

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Gabriel Bernardo

Por: Gabriel Bernardo

Fotos: Divulgação

02/02/2022

Os caminhos para a emergência de um artista, para a materialização de uma obra, são certamente diversos – muitas vezes tortuosos. Ninguém nasce artista, e todos temos potencial para nos manifestarmos através da arte. No entanto, como sabemos, questões relacionadas a acesso, possibilidades de afirmação ou suporte são decisivas no processo de gestação de um artista. Assim, Faylon, DJ e produtor musical de Porto Alegre, trilhou um bonito caminho, superando os obstáculos com leveza.

Seu álbum de estreia, Modupé – lançado pela Goma Rec. –, reúne seis composições suas e três remixes, traduzindo nas linguagens do House e do Techno memórias musicais que passam pelas experiências no terreiro, festivais de Psytrance e sua intensa vivência na noite de Porto Alegre. Além de DJ, com circulação pela cena pop e no rolê de música eletrônica underground da cidade, Faylon também já foi hostess, e é produtor cultural na Turmalina, coletividade de artistas pretos de POA.

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Em Modupé, transparece de forma nítida uma escuta atenta, metabolizada e materializada em paisagens sonoras complexas e muito bem amarradas. O disco é tridimensional, tem profundidade, trabalhando com várias camadas de pads, jogos de pergunta e resposta, condução percussiva envolvente, orgânico e ao mesmo tempo digital. A primeira faixa, “AGÔ” – “com licença” em iorubá –, funciona como um convite, abrindo os caminhos com uma brisa leve e adocicada para o percurso ancestral e futurista do EP, palavras usadas no review oficial por Mari Gonçalves – DJ e pesquisadora das manifestações festivas afro diaspóricas. Sobre “AGÔ”, ele comenta:

“Eu quis trazer nesse álbum a minha ancestralidade, um pouco de onde começou minha música, minha casa de matriz africana, que vem com muito tambor, batuque, agogô. Essa música foi feita no final do processo, então eu acho ela a mais rica em questão de elementos, tudo nela é em atmosferas mais etéreas, muito espiritual. De todas as músicas, ela tem a pegada mais espiritual, por pedir licença pra estar falando do que eu tô falando, do que eu quis trazer nesse álbum”.

Mesmo tendo começado a produzir música recentemente – Faylon iniciou suas experimentações com o software Ableton Live durante a pandemia –, há memórias musicais muito intensas em Modupé. Seja em suas vivências na casa de matriz africana, seja em sua presença nos fronts das festas de música eletrônica, a escuta atenta e altamente comprometida com as manifestações musicais deu a bagagem necessária para a concretização de seu primeiro álbum:

Faylon sentia vontade de produzir a própria música desde o final de 2018 (Foto: Divulgação)

“Eu não toco nenhum instrumento e nunca tive formação musical, tudo o que eu sei de música vem do ouvido, do tambor. Eu era pequeno e ficava do lado do tambor escutando ele bater na minha cabeça o tempo todo, tocando agê”, conta. 

Mas, para realizar a travessia, transformar a paixão pela música em criações musicais próprias, um longo caminho foi percorrido. Iniciado com a discotecagem em 2015, num primeiro momento nas pistas da cena de música pop de POA, depois transposto pro rolê eletrônico, Faylon já sentia vontade de produzir suas músicas desde o final de 2018. Mas não sabia como fazer, não compreendia o funcionamento da linguagem musical tradicional. Foi a música eletrônica underground que deu o click na sua cabeça, onde a composição evidencia a manipulação dos objetos sonorosconceito de Pierre Schaeffer, conhecido por inventar a música concreta nos anos 1950. Trabalhar com blocos de sons liberta os artistas da rigidez tradicional da composição ocidental, baseada na notação, e abre o caminho para as colagens e loops típicos da música eletrônica.

“A música entrou pra mim primeiro através do DJismo, e foi depois desse click que eu decidi que estava na hora de eu percorrer essa trajetória, de fazer meus sons. A primeira vez que eu abri o Ableton foi em janeiro de 2021. É muito recente. É um processo de dedicação, de estar na frente do PC, dando essa energia. Eu li um texto muito legal, que dizia que não é sobre a qualidade da música, que é sobre fazer música, porque é sobre a execução da ideia, não é sobre a idealização que a gente cria. Depois que eu li esse texto, eu entrei em um mês e meio de produções. Eu produzi todas as músicas em um mês e meio. Despretensioso”, diz Fayon.

Além de experiências musicais marcantes e o desejo de produzir sons, é fundamental na trajetória de um artista o suporte necessário para a concretização do trabalho. Nesse aspecto, a Goma Rec., label de música eletrônica independente de Porto Alegre, foi pivô na afirmação de Faylon como artista. Kika, DJ e integrante da gravadora, conta que já havia desejo de uma aproximação por parte da label, que começou com um convite para que ele gravasse um set para o Gomacast, série e mixes distribuídas pela Goma com artistas emergentes do cenário nacional. Percebendo que ele já tinha faixas lançadas em sua página no Soundcloud, veio o convite para o lançamento de um EP. Faylon reconhece a importância da Goma em sua trajetória: 

“Num primeiro momento eu fiquei em estado de choque. Depois do convite eu fiquei num hiato de uns dois meses sem mexer nas músicas, mas, na medida em que ele foi se tornando mais sério, eu voltei nas músicas, porque achava que elas precisavam de mais tratamento para serem lançadas. A Goma foi muito importante no processo. Eles estavam genuinamente satisfeitos com o material, não participaram da produção, mas me deram mais alguns meses para que eu ficasse satisfeito. A Goma já tinha lançado meu primeiro set, é um selo conhecido, e foi quando eu me senti mais DJ, as pessoas comentaram sobre o set, então a Goma já vinha numa trajetória de ir me buscando, me trazendo, então foi muito importante para esse processo de empoderamento, artista DJ e artista produtor. E agora eu faço parte da Goma, e pra quem vem do front sabe como é importante essa validação, participar desse momento que a gente tá vendo, participar de coletivos é muito importante”.

E a experiência do Faylon no front, aquela região crítica em frente ao DJ, onde os fãs mais assíduos se posicionam para acompanhar as apresentações, certamente contribui com a consistência de seu EP de estreia. Pedro Peixoto Ferreira – professor de sociologia da Unicamp – destaca a reciprocidade entre produtor musical e pista de dança na composição de música eletrônica. A pista fornece ao produtor musical os indícios que orientam a composição, o que funciona e não funciona. E a experiência do próprio produtor ao dançar é incorporada em suas futuras composições. Faylon comenta sua experiência no front:

“O front foi muito importante para eu ter a minha sensibilidade de pista. Eu não crio as minhas músicas com uma música de referência, eu imagino o que aquela construção vai produzir, é tudo muito de ouvido, eu não sou o maior pesquisador musical, mas eu sou um grande ouvidor de música, eu me dedico a escutar música. Então, ter vindo do front é muito importante para quem eu sou como DJ e produtor, não só estar atrás da pick up, mas estar ali no front, até pra ter essa humildade com a pista, para entender que não é só sobre o meu ouvido, é também sobre o ouvido de quem tá ali na frente”.

Faylon é amante de festivais de Psytrance (Foto: Divulgação)

Essa dedicação na escuta fica evidente ao acompanharmos o desenvolvimento do álbum. Além das características tridimensionais do som, com inteligente uso do estéreo e mixes delicadas, com cada elemento em seu lugar, é possível perceber como o disco cresce em urgência ao longo das faixas. Começando leve e acolhedor, na medida que o EP avança o baixo vai se tornando mais presente, deixando pouco espaço nas camadas mais graves, enquanto os synths mais médios e agudos trabalham com loops curtos e hipnóticos. Faylon é amante confesso dos festivais de Psytrance, e comenta como a rave comparece no disco:

“Essas foram as maiores referências do trabalho: buscar minha ancestralidade e trazer a minha referência do Psytrance. A cabeça viaja, mas o corpo sente reto. Foi na vivência trance que eu percebi o quanto eu podia elaborar em uma música. Quando eu comecei a tocar, eu tocava muito em festas pop. Fui muito bookado, por causa da minha leitura de pista, mas era algo limitado. Eu precisava experimentar um pouco mais. Precisava me reinventar. Aí entrou o Psytrance, fiquei anos indo em festivais. Mas eu queria produzir um som mais urbano, então eu fico muito feliz em conseguir trazer essas referências pro meu álbum, porque é um som que eu gosto muito, mas não tenho tanto interesse em produzir, mas tenho interesse em trazer esses elementos como referência”.

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Agora, no final de 2021, Faylon conseguiu testar as faixas de seu EP de estreia como produtor no soundsystem de uma festa. A Goma, que passou a pandemia realizando várias ações de fomento do cenário nacional, como o lançamento de mais de 150 Gomacasts, programa semanal na Twitch da Pornograffitti, um VA duplo e 4 EPs lançados, finalizou o ano com uma festa de lançamento de Modupé, que consolidou a entrada de Faylon e Chico (compositor também de Porto Alegre) no coletivo. Inclusive, Kika destacou que, depois de tanto trampo, a gravadora está em um momento de introspecção, voltado à produção musical e à ampliação de seu leque de artistas, buscando maior diversidade do cast. Ainda assim, o pequeno respiro que a pandemia deu no final de 2021 permitiu ao selo produzir uma festa, e Faylon comenta a sensação de tocar suas tracks em um grande sistema de som:

“Surreal. Eu nem sabia que meu grave podia fazer aquilo. A resposta foi muito boa. A galera sentiu muito, eu senti muito. Sentir o grave, esse grande tambor que a gente tem. Eu nunca tinha imaginado essa experiência. Eu pensava que tinha lançado um EP e que as músicas ficariam ali na internet. Ali, aquela música pequeninha se transforma em uma coisa enorme, uma confirmação da trajetória, várias afirmações e empoderamentos muito massa. Porque é isso, né: tô na cena desde 2015 e foi em 2021, pandemia, que eu conseguir chegar, é uma trajetória muito longa, e eu tô muito feliz que isso tá acontecendo”.

Sobre a importância do tempo de amadurecimento, ele enecerra:

“Foi importante o tempo, porque a gente percebe que às vezes quer estar nos lugares, mas talvez ainda não esteja pronto. Mas aí, a minha questão é: não estava pronto, mas quem está disponível para deixar as pessoas prontas? Como a gente dispõe do nosso tempo para ajudar: ‘Sei que tu não tá pronto, mas vem cá, vamos acelerar esse processo’. Eu fico muito feliz que foi nesse momento, porque eu sinto que foi com as minhas pernas, sabendo que é uma exceção, mas sabendo que é a minha trajetória, a minha construção. Foi tocando lá na festa que eu lembrei que tocava com CD. Tem um caminho que foi percorrido que me deu uma segurança para permitir eu estar ali me divertindo, nem tendo tempo pra ficar nervoso. E agora não tem como voltar atrás, é daqui pra frente. Então, eu fico feliz com esse processo, que poderia ter sido mais rápido, poderia ter sido mais acolhido, mas é isso, a vida tem seus poréns, e a vida acontece no tempo que ela tem que acontecer. E agora eu quero ir pra outro nível, produzir em alto nível, estudar, pra técnica não ser uma limitadora, como ela foi, e juntar a técnica com essa vontade de fazer. E é por isso que eu fico muito feliz com o projeto que a gente tá fazendo na Turmalina, que é diminuir essas distâncias, de ferramentas, de lugares, mostrar que é possível, e é isso que a gente tá fazendo com a Feijoada [projeto contemplado pelo edital da Natura musical voltado a transmissão de conhecimento e tecnologias musicais para pessoas pretas]. Eu sinto que eu tô subindo mas tô puxando mais gente comigo”.

Apoie e ouça os lançamentos do Goma Rec. através do Bandcamp do selo.

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02/02/2022

Gabriel Bernardo

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