“Nasci sabendo que eu ia ser cantora”, declarou Gal Costa, em 2021 

26/09/2023

Powered by WP Bannerize

Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos: Roncca/Rafael Rocha/ Carol Siqueira/ Divulgação

26/09/2023

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 110 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de “Nenhuma Dor”, de Gal Costa, em 2021.

Entrevista: Ariel Fagundes e Peu Araújo

*

Desde que nasceu, ela já sabia que seria cantora. Não havia em sua trajetória a dúvida clássica entre ser astronauta, bailarina ou bombeira. E no que dependesse de sua mãe, o destino musical de Maria da Graça Costa Penna Burgos fora traçado ainda na gestação, quando passou nove meses sendo embalada pela música clássica que tocava repetidamente em sua casa.

Mesmo antes de começar sua carreira, a música chegou para Gal Costa como uma premonição. João Gilberto foi sem dúvidas o seu grande professor e a loja de discos onde trabalhou na adolescência foi, para ela, uma segunda escola junto com o catálogo do selo Elenco, que lançava o que tinha de mais fresh da Bossa Nova. 

(Foto: Carol Siqueira/Divulgação)

Quando a violência da Ditadura expulsou do Brasil seus amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil, ela resistiu por aqui tornando-se um ícone da contracultura. No auge da repressão do governo militar, Gal era uma revolução. Sua mera presença provocava a ira conservadora e, inclusive, rendeu-lhe agressões na rua. A vida libertária que ela vivia e representava ia contra toda e qualquer caretice e, quanto a isso, talvez muito pouco tenha mudado e os caretas continuam a apontar seus dedos mesmo em 2021.  

Aos 75 anos, enfrentando como todos nós o isolamento social necessário devido à crise global da Covid-19, Gal não se intimida. Pelo contrário, tira do desafio de criar um disco à distância o combustível para celebrar as trocas proporcionadas pela música. E faz isso ao lado de uma grande geração de artistas bem mais novos que ela: Jorge Drexler, Seu Jorge, Rodrigo Amarante, Criolo, Silva, Tim Bernardes, Rubel, António Zambujo, Zeca Veloso e Zé Ibarra. Convidados que, apesar de sua grandeza, tornam-se humildes coadjuvantes do espetáculo que Gal protagoniza.

“Nenhuma Dor”, canção com letra de Torquato Neto, não poderia ser uma escolha melhor para dar nome ao disco que nasceu em meio ao sofrimento coletivo de uma pandemia que atinge a todos. No Brasil do início de 2021, em que a contagem de óbitos frutos da Covid-19 ultrapassa a trágica casa das centenas de milhares, a música é um alento. Seja como um anestésico emocional, um vetor que coagula sentimentos difíceis de se nomear ou até mesmo uma ferramenta de cura para as mazelas da alma. Mas não há dúvidas: hoje, a música é mais importante do que nunca. 

Nesse novo álbum, Gal homenageia sua própria trajetória, mas também o seu público, e faz isso sem medo de se arriscar. Na conversa que você lê aqui, ela faz uma avaliação da importância que teve e tem para a cultura brasileira, refletindo sobre seu legado sem esquecer da responsabilidade que assumiu, e assume, perante seus fãs e seu país. Como parte de uma geração de jovens que ousou sonhar com um futuro mais igualitário para o Brasil, Gal insiste nessa ideia e lembra: “Sempre é bom lutar”.   

Como nasceu esse projeto Nenhuma Dor? Qual foi o gatilho?

Esse projeto nasceu de uma ideia de fazer regravações de canções minhas justamente porque, nesse período da pandemia, uma vez eu liguei pra Marcus [Preto, diretor musical do álbum] e falei que, por causa do isolamento, as pessoas estariam ligadas em um repertório mais do passado, não do passado, mas da minha geração, vamos dizer assim, mais ligado a memória afetiva das pessoas. Então, daí veio a ideia de fazer esse projeto. Quando eu liguei, ele disse: “Olha, você está certa, porque eu conversei com pessoas que me disseram que nunca se vendeu tanta música de catálogo como agora”.

E como foi a experiência de gravar um disco com o isolamento social, sem contato e uma relação mais próxima de estúdio e com os outros músicos?

O repertório foi escolhido e todos gravaram, inclusive quero agradecer, todos gravaram na minha tonalidade. Isso realmente é complicado, eu sempre reclamava que as pessoas me chamavam para gravar e não pensavam em perguntar qual o meu tom. E eu fiz a mesma coisa com eles, mas enfim. (Risos) O fato é que… agora eu já me perdi, tava respondendo o quê mesmo?

Sobre o lance da pandemia…

Ah, sim. Do distanciamento. Cada um fez sua produção, os arranjos de cada canção, já me mandaram as gravações com as vozes dos convidados e eu coloquei a voz durante o período da pandemia. Foi um trabalho tranquilo, porque eu acho que ao fazer um disco, mesmo com distanciamento, pode sair uma coisa integrada, bonita, como saiu esse. Eu não acho que prejudique de maneira alguma. 

Sobre a escolha do repertório, como é pra ti revisitar músicas tão marcantes?

É, graças a Deus, o disco saiu. Porque foram canções que marcaram muito, são canções que fizeram muito sucesso, como “Meu Bem, Meu Mal”, por exemplo. De certa maneira podia ser um risco fazer essas canções, mas saiu tudo tranquilo, saiu tudo bonito. Eu acho que você não ter medo de arriscar é um fator importante. O disco não foi pensado para ser um disco de carreira, foi pensado para ser apenas um registro de coisas que eu já fiz. É mais uma celebração do que um disco de carreira, é um disco de gravações da minha história como cantora.

Como é seu diálogo com os músicos dessa geração que participou? O que você aprende com as gerações mais novas?

Eu acho que eles aprenderam mais com a gente do que a gente com eles. Eu aprendo sim, neste caso, são pessoas que gostam do trabalho que eu fiz, são jovens compositores que, de certa forma, foram influenciados pelo meu trabalho como cantora, pelos discos que eu fiz, pela minha história. Então, é muito gratificante fazer um trabalho assim, olhando uma galera mais jovem se espelhando no que você fez, na sua história. É maravilhoso. E ao mesmo tempo a gente aprende, eu acho que música é sempre uma troca. Eu aprendo a fazer as coisas vendo essa garotada fazendo, e é bom saber que eles beberam da nossa fonte. Assim como, quando comecei a cantar, bebi muito da fonte de João Gilberto, da bossa nova. 

Você comentou que as pessoas nunca lhe perguntavam seu tom, como foi fazer isso num tom mais confortável e porque a escolha de dueto e não de você revisitar sozinha as canções neste disco?

Olha, se a tonalidade é minha é confortável para mim, não tem mistério. Poderia não ter sido confortável para os convidados, mas eles fizeram muito bem, a maneira como cantaram e fizeram as produções. O Marcus me falou uma coisa que eu achei muito interessante. Essa garotada, esse pessoal mais novo, que já não é nem tão garotada, mas é um pessoal jovem que se inspirou muito no meu trabalho. Ele quis dizer que eu sou uma cantora que não somente influenciou as mulheres, mas também os homens. Eu sempre gostei do canto “joãogilbertiano”, do [Rodrigo] Amarante. Na verdade, é a ponte que eu fiz entre a bossa nova e essa galera. 

Gal Costa e Maria Bethânia. (Foto: Arquivo Nacional/Divulgação)

Olhando para sua carreira, você teve duetos importantes com homens, como Caetano Veloso, claro, mas depois com Cazuza, Jorge Ben, Milton, Caymmi. E teve também com cantoras como Maysa, Elis, Rita Lee. Tem alguma diferença pra você fazer dueto com uma cantora ou um cantor? 

Não tem. A coisa mais interessante com os cantores é que o meu grande ídolo foi o João Gilberto, que é um homem. Então, foi interessante esse contraponto. Como eu fui influenciada pelo João Gilberto, pelo canto dele, é interessante os homens terem sido influenciados de alguma maneira pelo meu trabalho, pelo meu canto. 

Teve alguma cantora que inspirou você no começo, que você era mais fã, que queria cantar junto?

Eu ouvi muito rádio quando eu era criança. E rádio era o grande veículo divulgador de música popular, então eu ouvi muito rádio e por certo eu ouvi as grandes cantoras da época, que eram Dalva de Oliveira e aquelas grandes cantoras da época, mas a minha grande influência foi realmente João Gilberto. Quando eu comecei a carreira, a grande influência foi este homem, mas muitas cantoras me inspiraram, como as grandes divas da canção, as cantoras americanas, homens, mulheres, todos. Não tinha distinção. Você vê que Milton Nascimento fala principalmente das cantoras que inspiraram ele quando ele era jovem e ele é um homem. Acho interessante esse contraponto.

Como você vê o cenário atual de cantoras brasileiras?

Acho que temos cantoras ótimas, cantoras extraordinárias. O Brasil tem grandes cantoras, e acho que o trabalho das cantoras é importante, de todas elas. Música é um bálsamo para as pessoas. A música, a arte, é importante para a cultura de um povo e a arte nunca foi tão necessária como nesse momento de pandemia. Nunca foi tão necessária em um governo como a gente tem, que quer massacrar a cultura. Isso é difícil de ver.

Você tem consciência, tem memória, da primeira vez que você se viu cantando, que entendeu que você cantava?

Eu já nasci sabendo que eu ia ser cantora, eu já nasci sabendo que eu queria ser. Coisa que é muito difícil, né? Uma criança já nascer sabendo o que quer fazer. Eu já sabia. Eu sempre quis, nunca tive nenhuma dúvida em nenhum momento. Ainda tive uma intuição grande de saber que o meu trabalho seria vitorioso, que eu ia conseguir fazer essas coisas. Mas essa intuição, essa premonição, foi muito incrível. É assim que eu me sinto e é assim que é. 

É verdade a história de que sua mãe ficava ouvindo música clássica quando estava grávida de você pra tentar fortalecer seu lado musical?

É o que ela me dizia, ela me dizia que, quando estava grávida, colocava diariamente um disco de música clássica que ela gostava de ouvir e ouvia para o filho nascer musical, para influenciar na gestação. Ela pessoalmente me disse isso. 

Antes de ser cantora profissional, você chegou a trabalhar em Salvador em uma loja chamada Roni Discos, como era esse trabalho?

Era uma loja de discos, eu vendedora de discos e o Roni era um patrão muito legal. Uma pessoa muito legal, eu gostava muito de trabalhar lá porque chegavam aqueles discos da [gravadora] Elenco, na época, que eram discos da bossa nova, da elite da música carioca. E eu me deleitava, gostava de ouvir todos aqueles discos. Eu devorava. Eu ficava ouvindo quando não tinha movimento na loja. Era uma loja bem pequena, só tinha eu de funcionária. Isso eu devia ser adolescente, final da adolescência, não me lembro [da idade que tinha]. Mas eu trabalhava um período pra ajudar na minha casa, não era um trabalho que me tomava o dia inteiro, era um trabalho pra ajudar nas despesas em casa.

Lembra de algum disco que conheceu na loja e lhe marcou muito?

Não especificamente, não me lembro de “um” disco, mas lembro de vários. Esses que falei, os discos da Elenco, eram maravilhosos. Na época, era uma gravadora muito prestigiosa. E os discos de Edu [Lobo], de João Gilberto, da turma da bossa nova… Eu lembro de ouvir e devorar esses discos. 

E teve uma história que, depois, quando você gravou seu primeiro compacto com “Eu Vim da Bahia” e “Sim, Foi Você”, o Roni comprou vários, como foi isso?

Sim. Aí eu gravei um compacto simples [em 1965, assinando como Maria da Graça], era uma música de um lado e a outra de outro lado. Quando eu fui receber meus direitos autorais de cantora, eu vi que tinha vendido um número X de discos. E ninguém me conhecia, né? E eu fiquei muito animada com isso, fiquei feliz. Depois, o Roni me falou que foi ele quem comprou. Ele comprou todos esses discos! Não sei se pra vender ou o quê. 

Você manteve uma coleção de discos ao longo do tempo?

Não, infelizmente, quando chegou o CD, eu me desfiz de tudo. Eu tinha uns discos de vinil muito bacanas. Mas eu me desfiz. Não tenho mais coleção de vinil. Aliás, eu quero que a NOIZE me dê o meu disco, viu?

Com certeza! Gal, avançando no tempo, quando teve o exílio do Gil e do Caetano, você permaneceu no Brasil e foi trabalhar com artistas como o Jards, o Waly Salomão, e a estética do seu trabalho foi indo para um outro ponto, de contracultura. Você representava ali um ideal de liberdade de comportamento num período tão rígido. Como era pra você, naquele momento, ter essa posição?

Bom, naquela época… Era uma época difícil, né? Porque eu, com aquelas roupas que eu usava… Eu usava aquelas roupas normalmente, roupas tropicalistas, meio hipponga. E aí eu, às vezes, fui agredida na rua. As pessoas me olhavam com uma cara estranha. Era difícil, eu sentia angústia, angústia física mesmo, naquela época que tudo era difícil. Tinha uma energia muito ruim no ar. E eu sentia angústia física, mas fiquei ali fazendo o meu trabalho. Eu nunca fui importunada, não cheguei a ser importunada pelos militares, só uma ou duas músicas que gravei foram censuradas. Era um momento muito difícil, mas eu sobrevivi, né? Graças a Deus. 

A partir da estética que você estava fazendo, você estava levantando um discurso muito forte, mesmo que não fosse panfletário.

Exato. Era uma coisa muito original e muito verdadeira. Então, eu atuava ali, naquele momento, de uma forma revolucionária. Pela estética, pelo comportamento, pela vida que eu levava, pelo meu jeito de viver a vida. Era bem libertário. Então, tinha uma importância grande naquela época de grande repressão do governo aqui no Brasil de Ditadura. 

Havia também um olhar de parte da esquerda que acusava de alienado quem não tivesse uma postura mais panfletária. Você sente que era compreendida na época?

Olha, se não compreender… Eu acho que eu nunca tive uma história de militância, eu nunca fui de me envolver muito em política. Eu, sim, acho que é importante você se posicionar. Por exemplo, agora é um momento em que o governo de Bolsonaro é horroroso, então as pessoas tem que se posicionar porque é um governo que, além de incompetente, é um cara que admira um torturador, é uma coisa horrorosa. Então, eu acho que você tem que se posicionar, mas eu nunca fui política militante. Se a esquerda ou a direita não entendeu, a história tá feita e mostra que eu sempre estive do lado certo. 

Qual é a sua avaliação sobre o legado hoje dessa “utopia hippie”, que de alguma forma você viveu lá atrás e representou? O que sobrou hoje daquele espírito de liberdade, de transformação?

Ah, eu acho que é importante, o espírito de liberdade que a gente teve naquele momento foi uma visão dada importante pra História. Hoje, há muito racismo, há muita desigualdade social, mas a gente tem que continuar lutando, seja como for. Então, eu acho que esse espírito de liberdade, todo o movimento que houve na época da minha geração, acho que foi importantíssimo. Porque mostrou um lado, um desejo da juventude daquela época de quebrar todas essas estruturas racistas, de desigualdade e tudo mais. Não deixou de ser uma atitude, é importante ter atitude, mostrar. Então, eu acho que foi importante porque a gente sonhou em ter alguma coisa. Pode não ter sido um discurso militante político, mas foi um discurso muito importante pra abrir novas visões. Eu acho isso, lutar é sempre bom. 

Como você se sente hoje, qual é o seu sentimento artístico? Você tem mais uma satisfação de dever cumprido ou você ainda tem uma urgência de criar discos, conhecer novos artistas? 

Eu quero trabalhar, eu preciso, porque me faz muito bem cantar e trabalhar com as minhas coisas. Eu ainda tô cantando bem, vou até quando eu não puder mais, aí eu paro de fazer. Mas eu continuo firme e eu quero seguir trabalhando porque me faz bem e faz bem às pessoas. Eu acho que o trabalho de um artista não é só satisfazer a si próprio, mas principalmente, a gente vê nesse período de pandemia como é importante levar música para as pessoas. Como a música é um alento para as pessoas. Como é importante levar conforto em um momento tão difícil da vida da humanidade. Então, não é só pelo próprio prazer, mas pelo prazer dos outros. O artista tem um trabalho, nesse sentido, muito importante. 

E você tem escutado música ultimamente na quarentena?

Não, eu não tenho escutado música ultimamente, não. Mas eu gravei e foi muito bom, né. Me gerou um alívio enorme cantar, gravar. Mas não tenho ouvido música na pandemia, não.

LEIA MAIS

Tags:, , , , , ,

26/09/2023

Revista NOIZE

Revista NOIZE