Yopo (2024) marca uma fase distinta na trajetória de Nego Gallo. Mais que apenas um disco, trata-se de uma construção meticulosa de identidade, um espaço de tempo e liberdade criativa no qual tradição e inovação se entrelaçam. Para quem acompanha sua caminhada desde os tempos do Costa a Costa, projeto que fundou com Don L, fica evidente que essa obra não se limita a uma sequência de faixas bem produzidas – é uma resposta à violência autoritária, uma afirmação de resistência e autonomia artística.
Ao longo dos anos, o artista consolidou sua marca ao explorar a dimensão cultural dos ritmos urbanos e das sonoridades da diáspora negra. Entre as ruas de Fortaleza e a pulsação do trap contemporâneo, sua música sempre dialogou com questões sociais e espirituais, guardando suas características mais essenciais. Yopo leva essa premissa a novos territórios, ampliando a perspectiva sobre o rap nordestino e latino-americano, e buscando responder à inevitável pergunta: “Aonde está indo o rap?”.
Parte do encanto do álbum está nas colaborações que o tornam ainda mais relevante. Don L, parceiro de longa data, Rico Dalasam, Diomedes Chinaski e Emiciomar não apenas emprestam suas vozes, mas também compartilham visões que convergem para um projeto coeso e inventivo.
O resultado é um som que não se submete às amarras do mercado e das tendências efêmeras, mas que, paradoxalmente, conversa diretamente com o presente. As composições flutuam entre estilos, como que sem gravidade, carregando um misto de melancolia e celebração. É exatamente essa a beleza delas: permitem que cada ouvinte encontre um significado único, uma conexão pessoal.
Se no álbum anterior, Veterano (2019), a tensão urbana de Fortaleza se fazia presente em cada verso, aqui notamos um olhar mais introspectivo. A cidade continua sendo pano de fundo, mas agora as inquietações se voltam para dentro, refletindo sobre ancestralidade, identidade e pertencimento. Entre os impactos da pandemia e a dura realidade política do país, o Nego Gallo se reinventa sem perder de vista suas raízes e seu compromisso com a arte como ferramenta de transformação.
Nesta entrevista, ele compartilha os bastidores desse processo, revelando as inspirações e desafios por trás do novo trabalho. A conversa transita entre sonoridades, espiritualidade, política e resistência, sem perder de vista o que sempre impulsionou sua trajetória: a busca por novas formas de existir na música e no mundo.
O álbum Yopo mistura elementos tradicionais da música brasileira com trap e beats contemporâneos de maneira que as melodias e os ritmos não fogem à harmonia. Houve um cuidado para não deixar essa fusão sonora se transformar em uma simples “colcha de retalhos”?
Com certeza. É sempre um desafio trazer o que se ouve nas ruas de Fortaleza e mesclar com influências de outros lugares que me alcançam, como o som das aparelhagens do Pará, o brega-funk e a percussão. Passei alguns anos equilibrando essas percepções. Ao mesmo tempo, o reggae, o trap e o rap sempre estão presentes nesse processo criativo. Contar com Emiciomar, que tem uma bagagem vinda do cinema, e Léo Grijó, com quem já trabalho, trouxe uma segurança maior na busca por uma identidade própria para o álbum.
Seu trabalho sempre dialoga com questões sociais e espirituais. Você buscou trazer esses temas nas músicas? Acredita que a espiritualidade é importante para a arte?
Sim, e esse foi um processo que surgiu de muitas conversas com Wellington Gadelha. O álbum me alcançava de uma maneira que não se tratava de um hinário, mas sim de composições que refletem a vivência de quem tem contato com a ancestralidade dentro da quarta maior capital do país. Acredito que tudo é frequência e gostaria de oferecer, a quem me ouve, uma outra forma de sentir. Mesmo quando abordo questões sociais, a preocupação está em acessar novas formas de fazer arte que transcendam o que é imposto pela indústria.
Você já afirmou que sempre buscou imprimir sua latinoamericanidade no rap. Essa identidade se traduz de algum modo conceitual nas faixas do novo álbum?
Com certeza. Yopo é um espaço de tempo e liberdade criativa onde pude explorar essa identidade de maneira mais profunda. Mas também enfrentei desafios para alinhar isso aos valores que carrego, especialmente pela fragilidade de ser um artista independente. Mesmo vencendo a SIM São Paulo, adentrar novos conceitos e possibilidades gera insegurança. Para lidar com isso, procuro me cercar de outras vozes e olhares em que confio.
A parceria com Don L vem desde os tempos do Costa a Costa. O que essa colaboração representa para você e como ela se reflete no novo álbum?
Don L é um dos grandes nomes da música brasileira hoje, apesar da resistência do mainstream em reconhecer isso. Ele segue em um caminho incrível e ter sua participação no álbum é uma oportunidade de conectar quem nos acompanha desde os tempos de Costa a Costa com quem está chegando agora. Suas letras construíram pontes entre esse pedaço de Brasil que eu vivo e que ele leva consigo por onde passa.
Além de Don L, você trouxe Rico Dalasam e outros artistas para o álbum. Como foi o processo de construção dessas colaborações e o que elas acrescentaram ao disco?
Rico esteve conosco durante o processo que nos levou à vitória na SIM, e ali surgiu a vontade de tê-lo no álbum. Ele é um artista singular, e percebi a importância de dialogar com a arte que ele traz. Diomedes Chinaski é outro artista que admiro, um dos maiores de sua geração. Para esse álbum, abri mão da segurança de condicionar o texto à minha razão para me abrir ao sentir do outro. Foi arriscado, mas vi necessidade nesse movimento de compartilhar. E vale lembrar: Emiciomar é uma grande aposta da nova geração cearense, em sintonia com a vanguarda da cena local.
Qual é a sua visão sobre a cena do rap nordestino hoje e qual o papel do novo álbum nesse contexto?
É muito bom ver novos artistas e as múltiplas possibilidades de traduzir a riqueza musical do Nordeste, mas ainda é pouco. O problema não é o que eu gosto ou não, e sim o que a indústria deixa de reconhecer como potência. Promover produções do Norte e Nordeste poderia revolucionar o mercado da música brasileira. Yopo busca romper esses limites artificiais, criados por quem sabe do potencial desses trabalhos, mas tem dificuldade de lidar com o que não conhece ou domina.
Seu álbum anterior, Veterano, refletia muito das tensões de Fortaleza. Yopo também carrega essa atmosfera ou tem um olhar diferente sobre a cidade e o momento atual?
Em Yopo, o percurso é mais interno. A cidade é o palco onde essas sensações, sentimentos e desafios se desenrolam. O álbum foi gestado durante o golpe e a pandemia, que, ao que parece, não ensinou nada para muita gente. Redescobri valores, forças e o preço de afirmar quem sou. Também quis lembrar que os “faria-limers” seguem sendo um dos grandes problemas da nação e que preto pobre de direita é capitão do mato.
Você tem uma trajetória que passa pelo funk carioca, pelo rap e por outras influências musicais. Mostrar essa diversidade sonora é intencional em sua forma de compor e produzir?
Sim, e isso tem a ver com territorialidade. O que toca nas ruas é o que os vizinhos ouvem, e o que está fora desse círculo é o que é massivamente propagado. Nem tudo é ruim. O desafio é traduzir o que é íntimo para essas linguagens.
Você tem um histórico de forte atuação em projetos sociais. Essas experiências dialogam com sua música e sua visão de mundo?
Sim. Trabalhar com pessoas que enfrentam suas lutas existenciais exige cuidado. Tento traduzir isso na minha música, mas certas questões só podem ser explicadas pelas políticas (ou pela falta delas) e pela sensibilidade (ou total ausência dela).
O que você espera que Yopo represente para quem ouve?
Espero que seja um espaço novo, diferente do que é imposto pela indústria. Quero oferecer força e confiança a partir de um lugar de luta, mas também de felicidade nas pequenas vitórias diárias. Estamos vivos.