Eles vieram, atraíram o melhor da nossa música, gravaram tudo em um navio e zarparam. Assim começa uma longa saga para resgatar Cartola, Pixinguinha & cia. do exílio no estrangeiro.
O bom vizinho yankee atraca seu navio na capital do Brasil. Entre os tripulantes vem o regente Leopold Stokowski, astro internacional neste 7 de agosto de 1940 e velho amigo de Heitor Villa-Lobos. Tudo arranjado no Rio de Janeiro. O maestro brasileiro recrutara 30 ícones do cancioneiro nacional, entre eles Pixinguinha, Cartola, Donga e João da Bahiana, para pescar 40 faixas da “mais legítima música popular brasileira”, como solicitara Stokowski, mestre-condutor da trilha sonora de Fantasia, animação da Disney lançada naquele mesmo ano.
Feito estúdio da Columbia Records, o grande salão do S.S. Uruguay ouviu Donga cantar “Pelo Telefone”, primeiro samba jamais gravado (1916). Foi no navio que, pela primeira vez, a voz de Cartola virou registro físico. Jararaca e Ratinho subiram na embarcação para fazer trava-língua com “Bambo do Bambu” e “Sapo no Saco”. Zé Espinguela, o Pai Alufá, pai-de-santo e pai-fundador da Estação Primeira de Mangueira, pareou sua escola de samba à All-American Youth Orchestra de Stokowski, ainda suada de um dos dois concertos que viera apresentar no Teatro Municipal.
A longa noite de batuque a bordo desaguou no disco Native Brazilian Music, lançado dois anos depois, nos Estados Unidos, em 16 faixas distribuídas por dois álbuns com quatro discos 78-RPM cada. Os bolachões, fatias daquelas oito horas seguidas de embalo, ganharam resenha na Time. A revista fala de “um par de álbuns vivazes” em que “orquestras locais tocam sambas (os mais dançáveis até o momento) e macumhas [sic] com ritmos vertiginosos que se cruzam”.
Mas eis a treta. Para começar, o desfile de talentos embolsou uma merreca. Diz Cartola que a verba deu para três maços de cigarro baratos. Somente cerca de 20 anos depois das gravações, na casa do jornalista Lúcio Rangel, ele se escutaria estreando em LPs, enquanto Aluísio Dias e Dona Neuma esperaram até 1980 para topar consigo mesmos em NBM. Isso porque, contrariando as negociatas epistolares entre Stokowski e Villa-Lobos, o material não foi lançado no Brasil. Qual amante satisfeito, soprando baforadas ingratas, o vapor zarpou para nunca mais, recheado não de açúcar, nem de algodão, nem de café, mas do choro da nossa gente. Se tem repuxo nesse mar, querendo devolver a oferenda, é pelo esforço da pesquisadora americana Daniella Thompson.
Em 2000, Daniella publicou o artigo Caçando Stokowski, em que repõe o álbum no contexto da política de boa vizinhança do governo Franklin D. Roosevelt, então cioso de que Getúlio Vargas se amigasse ao nazifascismo europeu. A madrugada marítima do choro, do samba, da batucada, da macumba, da embolada, do frevo e do maxixe antecipou outros tentos americanos de puxar o Brasil para o barco dos aliados.
Carmem Miranda já saracoteava seu penacho tropical nas principais frequências americanas quando Walt Disney desceu ao Brasil, em 1941, para parir um arremedo de malandro brazuca, nosso herói Zé Carioca. Orson Welles, gênio recém-consagrado por Cidadão Kane, se embrenhará nos confins desta pátria exótica no ano seguinte para filmar um documentário que, no fim, não vingou.
Daniella marcou o X no mapa, cavocou no lugar certo, mas ninguém ainda arranhou o baú. Para localizar os originais de NBM, ela seguiu o rastro de Stokowski, fã confesso dos ritmos brasileiros e célebre, entre outras façanhas, pelos laços amorosos com uma das divas do cinema americano da época, a sueca Greta Garbo. Daniella mergulhou na história da música brasileira. Na biografia de Pixinguinha, assinada por Marilia Barboza e Arthur de Oliveira, leu que as faixas gravadas no S.S. Uruguay poderiam chegar a 40, gordo acréscimo às 16 já conhecidas.
A investigação correu sem a garantia de que os originais estavam preservados, e o texto inaugural de Caçando Stokowski fecha assim: “Ainda estamos esperando”. Em 2002, a Carta Capital conta o caso e dá os fonogramas como desaparecidos. No ano seguinte, por meio de um amigo com contatos na Legacy Recordings, Daniella revela que as matrizes estão trancafiadas nos cofres da gravadora, para onde a Sony mandara o acervo da Columbia, adquirido em 1988. Os originais de NBM, descobre a brasilianista, dividem cela com oito faixas ainda inéditas, incluindo uma trinca de Cartola, cuja voz pela primeira vez se deixava captar em gravação, e as flauteadas de Pixinguinha em “Samba do Urubu”, que embasbacaram um chefe de orquestra ianque: “Este é um dos melhores flautistas que eu já ouvi”, anotou na época a reportagem do jornal O Globo.
Em novembro de 2012, uma matéria da Rolling Stone brasileira volta a atacar o tema. O repórter Cristiano Bastos procura Daniella, consulta outras fontes e narra a mixórdia. Ao dar de cara nas mesmas portas que a pesquisadora, Cristiano resolve “ir além do jornalismo”. Apoiado por Daniella, ele propõe ao Museu Villa-Lobos – postulante à zeladoria e à difusão da relíquia – e ao Instituto Brasileiro de Museus que seja redigida uma carta conjunta ao Itamaraty, instando o ministério a brigar junto à gravadora pelo repatriamento dos fonogramas. Do Itamaraty, o ofício chega às mãos da Embaixada Brasileira em Washington.
“Tive que forçar a barra para que acontecesse. Foram solícitos porque estávamos fazendo um grande trabalho que eles não iriam fazer”, explica Cristiano. O adido cultural da Embaixada, Raphael Tosti, de pronto contata o presidente da Legacy, Adam Block, que nega sequer conhecer o disco, mas que, em 8 de outubro de 2012, confirma ter achado as matrizes. Na resposta, ele não se dispõe a ceder os fonogramas, embora cogite “alguma estratégia de lançamento”, segundo nos relatou Tosti.
Dúvidas pairam quanto às intenções da gravadora em reter as matrizes. Por enquanto, nos restam o YouTube e uma folia.mp3. “Coisa mais difícil é fazer um executivo de gravadora se mover para relançar algo velho, mofado, que ninguém mais quer ouvir”, lamenta Cristiano. Atento ao “forte valor histórico e cultural” das gravações,Tosti reitera a vontade do país em reaver o material: “É de interesse da Embaixada do Brasil que os originais sejam repatriados, mas esse resultado não depende somente de nossos esforços”.
JÁ VOTOU?
O centenário de Villa-Lobos, em 1987, animou o museu que cuida da memória do maestro a lançar o álbum nos mesmos formatos do original. Sem o aval da gravadora, a edição foi produzida através de uma cópia de 1942 doada pelo colecionador Flávio Silva. O violonista Turíbio Santos, diretor do Museu Villa-Lobos à época, hoje afasta as esperanças de recuperar os originais: “Infelizmente, não tenho nada a declarar sobre esse importantíssimo disco”.
Recomenda que falemos com Marcelo Rodolfo, atual diretor-artístico do museu e um dos envolvidos naquela produção nacional de 1987. “Nunca mais tivemos qualquer notícia a respeito”, resume Marcelo. Cristiano acredita que o pedido de trazer de volta nosso filho amado “infelizmente não vai acontecer nessa reencarnação”. Não se atreve a apontar dedos ou razões, mas palpita. “Quem sabe por preguiça? Talvez por se sentirem proprietários disso aí?”.
A última peteca caiu em setembro de 2014. Em uma seção do site da Legacy que consulta o público para eleger um álbum antigo para download no iTunes, Daniella iniciou uma campanha de mobilização, e em poucos dias NBM recebeu mais votos que qualquer outro disco na história da promoção. Mas os critérios de liberação excedem a contagem dos votos.
“Não tenho esperança de que a Legacy responda tão cedo. A campanha é um dos mais recentes tópicos entre 516 não revisados. Se tornou o mais popular em poucos dias, mas o líder anterior, um álbum de Rick Springfield, está esperando há dois anos na lista dos não revisados. Por outro lado, a Legacy lançou álbuns que receberam poucos ou nenhum voto”, explica a brasilianista. Ou seja, depende da boa vontade dos velhos bons vizinhos, mas o rolar dessa toada é conhecido. Expressando apoio à campanha, Raphael Tosti aproveitou que a maré subiu para apertar Block mais uma vez: “Disse-lhe que seguimos interessados em discutir a possível doação dos fonogramas. Ainda não obtive resposta”.
Apesar da boa recepção de suas aproximações diplomáticas, Cristiano Bastos se mostra desiludido com o trato dado à sua contribuição. “Eles não ficaram em cima, não estão nem aí”, critica. O músico gaúcho Maurício Nader preparava um trabalho acadêmico sobre Cartola quando soube da aventura do S.S. Uruguay. “Todo mundo se interessa, mas ninguém quer arregaçar as mangas, a não ser a Daniella. Engraçado que nenhum músico fala sobre isso, mesmo os envolvidos com a história do Cartola. Mobilizam-se para tratar de direitos autorais, mas não para o resgate cultural”, diz Maurício.
Daniella aponta a campanha como a derradeira via aberta, mas releva: “Um LP tem um único original. A remasterização digital não representa um grande desafio, mas remasterizar Native Brazilian Music exigiria trabalhar com 24 matrizes metálicas individuais. Seria custoso, e a Legacy obviamente quer fazer dinheiro, não gastá-lo”.
Apesar de encabeçar o ranking dos álbuns cotados para liberação no site da Legacy, com 357 votos (até o encerramento desta matéria), Daniella não esconde sua opinião sobre a adesão popular à campanha. “Chamaria de patética. Com todos os recursos de mídias sociais, deveria ter recebido milhares de votos até agora. Você já votou?”
Para o pianista Luciano Leães, a repatriação do álbum estreitaria laços do público com a história da música no Brasil. Sem negar a verve blueseira, Leães compara Cartola a Robert Johnson pela relevância de seus estilos na formação da identidade cultural das duas nações. “Estamos perdendo o contato com essa raiz. É importante sermos livres e criativos quando falamos de música, termos a cabeça aberta para promover mudanças sem cair na ditadura do purismo exagerado. Mas isso fica impossível se não soubermos de onde viemos e esquecermos tudo que foi produzido no passado. É como construir uma casa sem alicerces”.
* Reportagem publicada originalmente na edição #66 da revista NOIZE, que acompanha o disco de vinil da Banda do Mar, lançado pelo NOIZE Record Club.