O homem do samba quente: o legado e a trajetória de Wilson das Neves 

14/06/2023

Powered by WP Bannerize

Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos: Fernando Schlaepfer

14/06/2023

Esta entrevista foi publicada originalmente na edição 41 da revista NOIZE impressa, lançada em março de 2011.

Cabeça lisa, bigode branco, chapéu da Velha Guarda do Império Serrano. Nas mãos, o tamborim inseparável; na voz macia, o bordão que o marcou: “Ô sorte”. Um hipster desavisado poderia achar que esse senhor de 74 anos não tem nada a ver com a música pop que se faz hoje no Brasil. Mas o baterista Wilson das Neves é também parceiro de Marcelo D2, tocou com Sean Lennon e é um dos pilares da Orquestra Imperial, ao lado de Rodrigo Amarante e Pedro Sá.

*

Nada de extraordinário para quem, ao longo de 57 anos de carreira, foi (e ainda é) o baterista preferido de alguns dos maiores nomes da música brasileira. De Cartola a Chico Buarque, de Jacob do Bandolim a Wilson Simonal, Das Neves tocou com Deus e o mundo. Marcou o ritmo de discos fundamentais como Elza Soares, Baterista: Wilson das Neves (1968) e África Brasil (1976), de Jorge Ben Jor. Suas baquetas ajudaram a temperar a mistura do samba com o rock, o jazz e o soul – desde o tempo dos bailes na Praça Tiradentes, no Centro do Rio, até o nascimento da bossa nova, do sambalanço e do suingue.“Ô sorte!”

Todo mundo samba, até sem querer

Cada um faz o seu. O ritmo é o mesmo, tocado por instrumentos diferentes. Se você olhar, no Olodum tem samba. Tem bossa nova. Se você prestar atenção, a batida do Olodum é a da bossa nova, só que com tambores. Pra mim, tudo no Brasil é samba. Cada um faz o seu samba. Porque não existe um baterista no Brasil que toque samba igual a outro. Eu, por exemplo, com 57 anos de profissão, nunca vi ninguém tocar igual a ninguém. Cada um tem o seu feeling, o seu suingue, a sua pronúncia. Porque qualquer instrumento você toca como fala. Um trompetista que é um cara calmo, que fala manso, também toca manso. Outro, que fala muito, toca com mais notas.

O ritmo vem da pronúncia

Porque é aquele negócio: o americano jamais vai tocar samba igual a um baterista brasileiro. E o baterista brasileiro jamais vai tocar a música deles do mesmo jeito. Toca parecido. Porque o americano não inventou a bateria para tocar samba, foi para tocar a música deles. O resto do mundo é que se adaptou, cada um com seu ritmo. A bateria tem tudo o que é preciso para o samba: o chocalho, o surdo, o pandeiro, o tamborim, o agogô, o ganzá; com isso tudo o baterista procura resumir o samba. Mas se for falar de influência, tudo é samba. Eles tocam a música americana pensando em dois, que é o ritmo brasileiro, e não em quatro, que é o ritmo americano. A acentuação do ritmo brasileiro é ao contrário. Para eles, o tempo forte é o primeiro. Você faz UM, dois, três, quatro, UM, dois, três, quatro. O samba é ao contrário, é um, DOIS, um, DOIS.

O tempo forte do samba é o contrário do deles.Teve um maestro americano fabuloso, Les Baxter, que veio aqui e me chamaram para gravar com ele. Quando começamos a tocar, ele mandou o intérprete me perguntar por que a minha acentuação era no tempo fraco. Eu respondi: não sei, não posso explicar, quando eu nasci já era assim. É a acentuação do samba. Na escola de samba você vê isso muito bem, o segundo tempo é que é o forte. Então, isso assusta. O americano quando vem aqui sambar faz tudo ao contrário. Ele acentua o primeiro tempo.Você tem que nascer ali para ter aquela pulsação, aprender a pronunciar daquela maneira. Isso você não aprende na escola, isso nasce com você. Depois você aprimora, como qualquer arte. Alguns desistem no meio do caminho, outros tocam maravilhosamente.

Ser humano é ter seu próprio estilo

É difícil você explicar a sua pronúncia. Alguém fala igual a alguém? Então, ninguém toca, ninguém faz nada igual a ninguém. Meu pai dizia: se não fosse necessário, não tinha tanta gente. Cada um é diferente.Você gosta de coisas que eu não gosto e vice-versa. Por isso não estamos ligados na tomada. Por enquanto.

De onde nasce o samba

Uma vez perguntaram a Louis Armstrong o que era o jazz. Ele respondeu: se você não sabe, você nunca vai saber. É sentimento. É difícil de traduzir, como é que eu vou dizer o que eu sinto? Você traduz palavras,mas as ideias não. Samba é tudo o que você sente quando ouve um ritmo brasileiro.

Uma questão de observar o bem e o mal

Estamos aqui pra aprender. Meu compadre Marçal dizia:“eu nasci sem saber nada e vou morrer sem aprender tudo, porque não dá tempo”. Você aprende todo dia, é só observar. Aprende até como não ser. Se você vê alguém fazendo uma coisa deprimente, e diz “eu não posso fazer isso”, já aprendeu. Aprende a respeitar e respeitar os outros. Eu chamo todo mundo de “senhor”, até meus filhos. Eu sou senhor dele porque ele é meu senhor. Você tem que entender a pessoa como ela é, não como você quer que ela seja, porque ninguém é como o outro quer.

Aprender, ensinar, viver todo dia

Alguma coisa eu passei como todos eles vão passar também. Observe, preste atenção, porque cada um é diferente. Então, você passa para uns, não passa para outros, mas no fundo vai passando e eles também vão passando, porque eu também peguei de alguém que passou. É uma coisa natural. Não vou dizer que alguém é seguidor meu, porque eu também estou seguindo alguém. Eu aprendi e vou evoluir. Se me dizem que eu sou uma referência, ótimo. Mas faça com que você também seja uma referência; não pode deixar morrer. Nós somos referência sempre. Beethoven morreu há quinhentos anos e todo mundo fala no cara hoje. Mas ele aprendeu com quem? Não foi sozinho. Alguém falou, alguém mostrou. Às vezes, um aprende com o outro sem nem saber, ouvindo. Meu professor me dizia: veja todos. Eu sou um resumo de tudo o que eu ouvi.

Até aí, tocou o Neves

Elza Soares, Clara Nunes, Cyro Monteiro, Ataulfo Alves, Cartola, Chico Buarque, Jacob do Bandolim, Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Alcione, João Nogueira, Zeca Pagodinho, Doris Monteiro,Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Djavan,Wilson Simonal, Elis Regina… Foram mais de 700 solistas, somando cantores, instrumentistas, orquestras, nacionais e estrangeiros. Cada um é uma história. Cada um tem o seu estilo e você tem que adaptar a sua maneira de tocar. Não pode chegar lá e dizer: eu toco assim e pronto. Se for assim, só vai tocar quando for do jeito dele. Agora, um músico que se propõe a ser profissional e gravar com todo mundo, como eu…

Músico tem que brilhar 

Eu trabalhei com muitos artistas, mas só encontrei três que me trataram da maneira como um músico deve ser tratado, na minha opinião: Elizeth Cardoso, Ney Matogrosso e Chico Buarque. Os outros que me desculpem, mas estou falando a verdade.Tem artista que nem viaja junto com o músico, mas esses três me trataram como gente. Eles dividiam o palco com os outros músicos, porque ninguém sobe no palco sozinho. Se for subir para cantar 12 músicas sozinho, tem que ter saco para aturar. Então, eles dependem dos músicos. Não é questão de dividir o dinheiro, mas dividir o palco.Você está lá atrás acompanhando, mas é parte importante. Sem a música não tem voz. Só se fosse a Yma Sumac.

Pra gente fazer mais um samba 

Agora mesmo, semana passada, fiz uma música com Nelson Sargento. Ainda não sei de cor. Nem o nome eu lembro. Eu só memorizo a letra depois de gravar o disco. Ontem estive com ele e agradeci pessoalmente. Disse que não gostei da letra: amei. Imagina, uma honra ser parceiro de Nelson Sargento. Agora mesmo levei três músicas para o Paulo César Pinheiro, que é meu parceiro mais constante. Vamos gravar o novo disco do conjunto Os Ipanemas – é o quinto, para sair na Inglaterra. Só lançam lá, não sei por que não sai aqui. E continuo tocando com a Orquestra Imperial. Se eu for falar dos meus parceiros, não acabou. É só vir alguém e perguntar:“das Neves, tem música pra mim?”.

Nos bailes, o primeiro professor 

Tinha uma jazz band que tocava nas festas ali na Praça Tiradentes. A minha tia fazia festa nesse salão e eu ficava ali. A bateria já me fascinava, era daquelas que tinham luzes. Era na década de 40.Tinha um baterista chamado Suruba, e eu ficava ali vendo ele tocar. De vez em quando meu dedinho ia lá no tambor e ele dizia: “Menino, não mexa no meu ganha-pão”. E ele tinha razão, porque eu não tinha nada que meter a mão ali. Então, eu fui crescendo. Ali a banda tocava as mesmas músicas que nos salões da elite, mas chamavam de gafieira porque era lugar de crioulo e pobre. Ia muito branco. Mas gafieira era uma coisa pejorativa, no fundo, colocando o pobre no seu lugar: “Tem lá a gafieira pra ele se distrair”. Mas era música normal, porque o baile é parada de sucessos. Então tem música daqui, dali, de todo lugar. Você tem que tocar o que está na moda, o que as pessoas querem dançar. 

Fui crescendo, minha tia se mudou para Vila Isabel e continuou fazendo as festas, mas o conjunto já era outro. Era do Edgard Nunes Rocca, o Bituca, um grande baterista. Ele era meu ídolo, e foi ele quem me inventou o baterista. Eu continuava ficando ali do lado, já com 16, 17 anos, aí eu dizia pra mim mesmo: eu sei fazer isso, eu só não sei como. Eu tinha a ideia do ritmo, mas eu não sabia como. Nunca tinha estudado. Isso era 1952, 53. Se hoje a informação já é pouca, imagina naquela época. Não tinha escola. Aí eu comecei a acompanhar o Bituca nos bailes. Eu ia arrumado, de terno e gravata, mas não tinha dinheiro para entrada. Então eu esperava na porta, ajudava a carregar o instrumento, arrumava, e quando a orquestra começava a tocar eu ia dançar. Quando acabava o baile eu ia lá de novo, ajudava a desmontar o instrumento, levar para fora. Um dia ele me perguntou: você não gosta de bateria? E ele me levou para uma escola, no Méier. Isso já era em 54, eu estava servindo ao Exército. Eu saía do quartel, ia para a minha lição de bateria às segundas, quartas e sextas e depois para casa. Depois ia no baile com ele mas já não ficava dançando. Sentava do lado dele e ficava olhando. Ele me ensinava, mostrava a partitura. E foi assim, até que um dia ele saiu dessa orquestra e eu fiquei tocando. Não parei mais até hoje. Esse é o resumo da minha história.

Tags:, ,

14/06/2023

Revista NOIZE

Revista NOIZE