Marcelo D2 divide processo criativo do álbum “ATMT”, produzido na Twitch

03/02/2025

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Por: Isabela Yu

Fotos: Divulgação/ Caiano Midam, Ronaldo Land, Wilmore Ferreira

03/02/2025

Marcelo D2 vive de olho no futuro. Há 20 anos, quando lançava A Invasão do Sagaz Homem Fumaça, terceiro disco do Planet Hemp, ele já dava a ideia de como a vida seria na segunda década do novo milênio. Ao longo da edição da revista, descobri que a faixa “Stab”, uma das minhas letras favoritas, também é a que o autor mais se orgulha do período com a banda. Não vamos entrar no instrumental impecável, o foco aqui é a letra que profetizou o processo de Assim tocam os MEUS TAMBORES: “Revolução? Quem sabe faz na hora e fica antenado/ Nem tudo o que reluz é ouro e nem televisionado”. 

Em 2020, o currículo do artista ganhou a adição de streamer após ele se jogar no projeto mais ousado da carreira: gravar um disco durante um mês e transmitir o desenvolvimento ao vivo. “Não adianta nada ter uma ideia boa e o disco ficar uma merda. Acho que ele honra minha carreira, é maneiro pra caramba”, diz. Em pouco mais de um mês, trabalhou 12 músicas durante várias horas de lives. Logo, o universo online não poderia ficar de fora das composições, lapidadas com referências e ideias que surgiram no chat. Com mais de 25 anos de carreira, uma dezena de discos na bagagem, Marcelo D2 está mais afiado do que nunca. 

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Sem dúvidas, ATOMT, o oitavo solo, é o trabalho mais colaborativo que já fez: há o papel fundamental da Luiza Machado, sua esposa e parceira criativa, da comunidade online, carinhosamente apelidada como Crias, e do time precioso de colaboradores. Fora a equipe de backstage, entre produtores, músicos e cantores, são mais de 20, então o trabalho só seria possível com o comprometimento de muita gente excelente. Além de cantor e compositor, D2 atua como diretor criativo, algo tendência na gringa, no pop (Beyoncé) ou no “alternativo” (Frank Ocean e Blood Orange), porém temos algo que eles nunca vão ter – a incomparável música brasileira. 

A personalidade do artista está em todos os detalhes desse manifesto artístico para nova década, na estética, na linguagem e nos sons. Sua missão de vida, reverenciar os grandes arquitetos da música nacional, aparece renovada quando propõe o encontro de turmas, gerações e ritmos. “Quero esculpir, mas eu não sei fazer isso, então vou chamar alguns escultores, pegar uma máquina 3D e fazer a minha escultura”, diz o artista.

O novo disco tem faixas assinadas pelos colaboradores, como Ogi e Jorge Du Peixe, onde explora o lado cantor, ou até mesmo não participa, algo inédito na sua trajetória. O rapper acompanha o progresso das coisas, sem temer o passado, ao passo que não abandona velhas amizades e está aberto a acolher novas pessoas em sua família expandida. Da mesma forma que tem seu lado combativo, não perde jamais a capacidade de se emocionar, inclusive, os Crias costumam contar quantas vezes ele chora durante uma live. 

Como é buscar a batida perfeita na era digital? Produtores explicam

Logo na primeira faixa, “BEM-VINDO MEUS CRIAS”, já deixa claro qual é a mensagem: “O que seria dessa porra sem vocês?”. O processo devolveu a inspiração para os dias do casal, que como todo mundo, sente profundamente o peso das notícias que acontecem todos os dias. Como disse no passado, “entra Fernando e sai Fernando, quem paga é o povo”, no contexto atual, adiciona que “poemas vão sempre esmagar ideais fascistas”. Como cronista, traduz o cotidiano com honestidade e a sua inconfundível sagacidade. Entre versos seus e de seus parceiros, fala sobre o problema de ser omisso, ou de não achar estranho a ausência de família negra no prédio, e algo perguntado com frequência avassaladora: “de onde saiu essa gente ruim?”. 

Como o próprio D2 costuma dizer, “a chapa tá quente”, as coisas estão pegando fogo na política, na rua e na internet. Mais do que nunca, as mentiras que estão sendo contadas não servem para quem busca a verdade em tudo que faz. Por conta desse processo encontrou, na sua comunidade online na Twitch, um espaço seguro para se expressar. Seja para pesquisar a história dos tambores, ou falar de bagulho, de som, processos de gravação, skate, comida, família, o negócio dele é falar de vida. 

Marcas e memórias alimentam a rima 

As quase três décadas de caminhada na música foram cheias de conquistas, e muitas pessoas participaram dessas vitórias. Por isso, ATOMT também representa o poder das amizades. Uma das tracks mais especiais, “É MANHÃ (VEM)”, conta com vocais da esposa e do Don L, base do Jorge Dubman, baterista da banda Ifá, e scratch do Zegon. “Todo mundo está frágil emocionalmente com tudo que está acontecendo, estamos nos apegando às amizades, então essa coisa com o Zé tem sido importante, ele foi um padrinho na minha entrada na Twitch”, conta D2. Um scratch não é apenas um scratch, depois de trabalhar 10 horas durante o dia, o produtor continuou na madrugada até chegar no resultado perfeito, um gesto de carinho com o parceiro e amigo. 

As referências afetivas permeiam a sua trajetória e não poderiam ficar de fora do registro. Da mistura do hip hop com samba, do rap ao rock, da nova geração com lendas da música nacional, o idealizador sabe equilibrar com maestria esses encontros. Em “A VERDADE NÃO RIMA”, uma base do NAVE em cima da faixa “Onze Fitas”, lançada em 1979 pela cantora Fátima Guedes, ganhou bateria do João Parahyba, conhecido pelo trabalho no Trio Mocotó.

A sonoridade dessa música… Não faço algo tão intenso, que me orgulhe de verdade desde Desabafo“, diz o autor sobre a faixa. O clima é de respeito mútuo entre todos os envolvidos, o lendário baterista também celebra a conexão: “O D2 é um garoto mas ele conversa como se fosse alguém que começou com a gente”. Além de Parahyba, outro nome fundamental para a música nacional, Ivan Conti, o “Mamão” do Azymuth, toca bateria em “PELA SOMBRA”. 

Para começar pelo título, Assim tocam os MEUS TAMBORES, também é uma semente que existe há algum tempo. A primeira vez que proferiu as palavras foi para saudar o DJ Primo em 2006. Como uma alusão aos toca discos, a frase virou recorrente na abertura das apresentações ao vivo, antes do DJ começar o set. “Quis usar esse nome porque tinha certeza que ele ia me ajudar a ter um conceito, gosto de ter um norte e não um bando de músicas juntas”, comenta sobre o processo que partiu do zero. Duas bases já existiam desde Amar é Para os Fortes (2018), mas todo o resto foi se desenvolvendo com o tempo limitado. 

O conceito começou a tomar forma após a live “O Mito Bakongo da Criação” com o historiador Luiz Antonio Simas, sobre o papel sagrado do Ngoma, o primeiro tambor do mundo. O pesquisador assina o texto interpretado por Criolo na faixa “TAMBOR, O SENHOR DA ALEGRIA”, uma narrativa emocionante nas palavras e na musicalidade, e que carrega um forte simbolismo no álbum. O multi-artista e produtor paulistano, Kiko Dinucci, que participou de algumas tracks do disco, teve papel decisivo na construção da faixa, que era uma vinheta e se tornou um acontecimento por si só. O conto terminou com uma duração maior do que algumas outras faixas mais “tradicionais”, mas também marca o momento que dá início ao Lado B. A narrativa propõe uma reflexão, uma viagem para outro lugar, e termina com um recado importante: “bênção, Ngoma, pai tambor, nós estamos no mundo para celebrá-lo”. 

Há uma riqueza sonora em detalhes, eles podem aparecer como samples, flautas, baterias, scratchs e vinhetas. Por exemplo, o disco começa e termina com áudios “de cinema”. Para o início, a ideia original seria uma contagem regressiva de um foguete em inglês. A galera não deixou barato e falou que o trabalho precisava começar em português – algo que fez toda a diferença: “O Barba Negra, um cara que conheci no chat e produziu no disco, me mandou o trecho da chegada do homem a lua, brincando com a ideia do disco – atenção, Brasil, grande passo para o homem, gigantesco para humanidade”. A dinâmica na Twitch deu tão certo que o artista planeja uma parte dois do álbum, assim como um registro em vídeo, ao passo que trabalha no novo material do Planet Hemp. 

Residência artística 

Em paralelo a tudo isso, Marcelo tem projetos ao lado da companheira Luiza, um deles é focado em artes visuais, e será um respiro após a rotina agitada de ATOMT. “Vai soar muito piegas: a gente não só sonha juntos, como estamos realizando essas ideias. Pode soar super cafona, música de pagode, mas é verdade”, diz a parceira. O casal oficializou a união apenas um mês antes do início da quarentena, cheios de viagens marcadas e desejos a realizar, quando se depararam com a nova realidade. Então sem pensar duas vezes, tornaram a casa em uma espécie de Big Brother das artes e dividiram os momentos da rotina. O programa de sábado virou o tradicional “Almoço dos Cria”, já as conversas sobre arte se tornaram o quadro “Segunda sem lei”. “A gente vê as notícias, a galera está longe dessa onda de amor, então é legal compartilhar isso”, conta Luiza sobre o início das transmissões.

Experiente no mundo da música, com diversos projetos e parcerias na conta, Marcelo D2 se vê em um novo momento para trabalhar, compor e até mesmo cantar. O seu último grande colaborador criativo foi responsável por mudar o curso da sua vida. “Ninguém faz nada sozinho nesse mundo, tive vários colaboradores. Desde que conheci o Skunk, nunca tive tanta cumplicidade com alguém, de mostrar as minhas obras, pedir opinião e me importar com essa troca”, diz sobre a dinâmica com a esposa. Mais do que pedir ajuda, criaram uma relação de confiança, que vai além do relacionamento. 

Ocupação IBORU: Marcelo D2 inaugura experiência imersiva itinerante

A conexão é mútua, trabalhar com o marido está sendo um momento transformador na vida da companheira de rotina. Mesmo com experiência em projetos ligados a arte, nunca viveu algo parecido: “Tive a sorte de trabalhar com equipes pequenas, então sempre consegui muita liberdade artística, mas, no fundo, era produtora e não dividia um cargo criativo. Nada perto disso, são coisas distintas mas que se alimentam”. Formada em administração, nunca chegou a trabalhar em empresas, a sua vontade sempre foi em busca da transformação e emoção que a arte pode provocar. 

A programação variada do canal de D2 na Twitch tem tudo a ver com as ideias da produtora cultural, mas além de contar com o apoio incondicional da esposa, os quatro filhos também participam do dia a dia. Por dentro do universo streamer, Luca Peixoto, filho do rapper, teve papel fundamental como produtor executivo e agiu como guia da família na plataforma. As filhas Lourdes e Maria Joana também acompanharam de perto a mudança na rotina do pai. Já Sain, que conta com a sua própria trajetória musical, foi braço direito, gravou versos e se tornou figurinha carimbada das lives desde o início. 

O ambiente fértil para experimentações criativas é capaz de influenciar a família e a turma que acompanha o artista online. A Magrela87, username da Luiza, faz a moderação da página ao lado de mais 10 pessoas que conheceram no chat e fica de olho em tudo que é falado ao longo da transmissão. Nesse tempo ao vivo, já receberam inúmeras mensagens de pessoas que decidiram retomar projetos engavetados, e pelo estilo sem papas na língua, acabam dando uma força para quem está emperrado na hora de criar: 

“Antes de começar com produção, eu não fazia a menor ideia de como entrar nesse meio, sempre achava que não tinha estudado o suficiente. Entendi que é na porrada e na vida, então é legal quando alguém se propõe a abrir o processo porque realmente surgem dúvidas. Quando você vai ver, todo mundo passa pela mesma parada, não é nenhum bicho de sete cabeças, então acho legal poder compartilhar isso porque aproxima e empodera as pessoas. O Marcelo gravou em casa, sentado na sala, com um casaco por cima da cabeça. E os moleques ‘caraca, vou fazer assim’. Outros falaram ‘já voltei a falar com a minha banda’. Rola uma descontração e desconstrução”. 

Como já dizia Raul Seixas, “sonho que se sonha junto é realidade”, ATOMT representa algo coletivo e especial para quem se envolveu da sua concepção até o seu lançamento, e que você recebe agora em formato de vinil translúcido. “Esse projeto foi super novo e diferente de fazer. Posso ser um pouco centralizador, então ele me colocou em um lugar mais calmo”, diz D2. 

O desejo por processos mais tranquilos já vinha sendo ensaiado em Nada Pode Me Parar (2013) e Amar é Para os Fortes (2018), que também contaram com o espírito do it yourself e foram feitos com o que tinha nas mãos: “Claro, na minha posição tenho mais ferramentas, mas acho que todo mundo pode fazer, dá pra fazer filme no celular e disco no computador”. Quem tem confiança no que faz, pode transmitir – ou não – porque isso não muda a sensação de orgulho de ver um trabalho pronto. Entre todas as coisas cotidianas que podem derrubar o astral, a resistência e persistência são fatores cruciais para quem deseja fazer cultura no país. 

Até alcançar o lugar de privilégio na indústria fonográfica, foram necessárias muitas brigas e desconstrução. A maturidade artística conquistada com o tempo trouxe uma maior serenidade com o fazer musical, porque há sempre uma pessoa antes de qualquer obra. “A música é mais do que mega produções. A ideia de fazer música é muito mais simples do que se pensa. Vejo dois caminhos: música como arte e como entretenimento. As duas me interessam muito, mas acho que em ambos caminhos é possível ser simples e chegar em um resultado muito satisfatório”, reflete sobre as transformações do meio do caminho. 

Afinal, tudo depende da intenção, de uma forma ou de outra, a honestidade deve prevalecer. O tempo também trouxe a certeza de que todas as experiências possuem valor: “No começo, era super uma questão, até entender que eu também posso fazer entretenimento. Venho do punk, o Planet Hemp é contra o status quo, quer derrubar tudo isso. Então, quando cheguei em uma grande gravadora, vendemos dois discos de platina nos dois primeiros discos, olhava para aquilo e brigava com todo mundo”. 

Contrariando as estatísticas e sem nunca deixar de colocar o dedo na ferida, aproximou os processos de sua carreira e partiu para o independente. Hoje embarca em projetos que podem trazer energia para seus versos, sem jamais perder o contato com a sua trajetória. Como declara no início do disco, “nois é rua até dentro de casa”, de certa forma, também quer dizer que, sem sombra de dúvidas, a vibração da cultura de rua não está restrita ao asfalto. 

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 104 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Assim Tocam os MEUS TAMBORES, em 2020.

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Isabela Yu