No subúrbio do Rio de Janeiro nasceu um artista que transforma crônicas urbanas em música. Com mais de duas décadas de contribuição ao hip-hop, unindo o rap, o samba e o jazz, Ramonzin se destaca como um dos artistas mais plurais da música brasileira há um bom tempo. Mais do que um rapper ou um sambista, é a fusão dessas duas identidades.
Ramonzin consolidou seu lugar como um dos baluartes do rap carioca. Dono de hits que marcaram gerações e de uma carreira premiada internacionalmente, ele segue reinventando seu estilo sem abrir mão da autenticidade. Dez anos após o lançamento de seu primeiro álbum, Circo dos Motivos (2014), o rapper-sambista – ou o sambista-rapper – revisita o impacto do disco na sua jornada musical e pessoal na entrevista a seguir. Para quem já o conhece ou para quem o encontra agora, este é um convite para sentir o que ele tem a dizer e, mais ainda, como ele diz.
Recentemente, o Circo dos Motivos (2014) completou dez anos. O que significa isso para você? Como você se enxerga hoje após esses dez anos?
Então, cara, você me lembrou de uma coisa boa. Eu estava conversando com um amigo sobre os dez anos do Circo. Lembrei disso e prometi fazer algo, mas não consegui. Comecei a gravar um podcast falando das histórias do disco e fiquei com o material bruto por seis meses. Quando você me ligou, pensei: “Caralho, não revisitei isso, nem fiz uma comemoração”.
O Circo marcou uma época. Lancei em 2014, no fim da era do boombap, antes do trap dominar. Foi um ano de muitos lançamentos clássicos. Como meu primeiro disco, ele condensou anos de pesquisa e vontade. Primeiro disco é sempre uma catarse, difícil superar. Demorei de 2014 até 2020, com o Arteiro, para alcançar algo no mesmo nível. O Circo levou uns cinco anos para ser construído e foi muito marcante pra mim.
Como foi o processo de criação ? Como você escolheu quais seriam as participações, a construção da sonoridade e tudo mais?
Eu já estava muitas músicas, né? Aí, eu acabei conhecendo o Du Brown, não lembro em que ano foi, não sei se foi em 2010, por aí. E tinha a série da TuduBomSessions, né? Tinha feito aqueles acústicos lá e tal. No meio desse processo, conheci o Du Brown. Já tinha “Se Ela Soubesse”, que, inclusive, eu demorei uns três anos pra fazer essa música, né? Então, ela não saiu da noite pro dia. E nem o disco.
Quando comecei a firmar esse acordo com o Du Brown, ele produziu todo o meu disco. Apesar de eu ter feito os instrumentais também, sempre gosto de dar o crédito, principalmente pra pessoa que tá ali, que produziu, né, cara?
Sentava com o Du Brown. Todo fim de semana eu ia pra Toca ficar lá em Olinda, na Baixada. Era um estúdio no quarto dele, muito pequeno. Passava tudo junto ali: calor, frio, fome… Enfim. E trabalhava uma vez por semana.
Eu vinha de uma série de influências que tava acumulando ao longo da vida. Eu queria botar tudo pra fora. Então, o meu processo de pesquisa envolvia samba, black, funk, jazz, muito jazz, MPB.
Tem música que é mais pro jazz, tem música que é mais baile charme, tem música que é mais boombap raiz, tem música que é mais música popular regional. Só que o ponto central era o rap. Então, tudo eu colocava em cima das batidas de boombap, sabe? Depois que eu vim evoluir isso no Arteiro. Mas, tradicionalmente, no primeiro disco, ele era um disco de rap, com elementos musicais diferentes.
E eu acho que o rap tem essa versatilidade que os outros ritmos não têm. Porque qualquer outro ritmo é muito bem definido na sua natureza. O samba tem uma formação, o jazz tem outra. E, no rap, você tem a possibilidade, por causa do sampler, de montar uma orquestra. Você consegue misturar vários ritmos diferentes numa obra só.
E foi isso que eu refleti e tentei apresentar no Circo dos Motivos. Um trabalho de cinco anos mais ou menos. Pá, tá pronto.
Como foi conseguir a bênção e autorização do Chico Buarque para a produção de “O BPM da MPB”?
Essa música do Chico foi uma das que eu mais trabalhei. Assim como “Se Ela Soubesse”, porque tinha uma proposta. Não fiz para lançar e ficar datada. Falei: “Essa música eu vou emplacar o resto da vida”. Então, fiz para tentar ser um clássico.
Era uma batida que dava muito trabalho, com os graves bem fortes, e os instrumentos também se destacando. Aí tinha a voz, tinha muita coisa. Todo fim de semana, eu ia lá no Du Brown e falava: “Du Brown, aumenta isso aí”. No outro fim de semana: “Du Brown, abaixa isso agora. E aumenta aquilo”. Acho que a versão final dessa música foi a 35ª, sei lá, alguma coisa assim. Passei a mão nesse som umas 35, 40 vezes.
Enfim, a música ficou pronta. Quando fui registrar, ela foi a última, porque eu tinha que pedir autorização pro Chico. Pô, e a gente não faz isso todo dia, né? Eu tava com medo. Falei: “Cara, vai dar merda”. Então, mandei a música para a editora.
E aí, nessa, o Chico autorizou e saiu como “O BPM da MPB”. Adoro esse nome também: “O BPM da MPB (Incidental Samba e Amor de Chico Buarque)”. Fiquei super feliz, assim. Hoje, olhando para trás, acho que não deveria ter ficado tão preocupado, porque, quando você ouve a música, você pensa: “Caralho, essa música é foda”.
Isso me ensinou a entender a importância de trabalhar uma música. Não vou ficar com o discurso chato de que as pessoas têm que ficar trabalhando a música a vida toda, porque sei que a gente não tem mais esse tempo. Mas, pô, as duas músicas que mais emplacaram foram as que eu mais demorei a trabalhar. Ou seja, quando você tem algo que é incontestavelmente bom, as pessoas não têm como negar.
Penso em regravá-la, fazer uma versão mais atualizada, né? Mas isso é para frente.
Tem alguma música pela qual você tem um carinho especial? Alguma que bate diferente pra você até hoje?
Uma música que sou apaixonado nesse disco é “Os Donos da Rua”. É uma música que acho… elegante, sabe? Tem um toque jazzístico. Não é agressiva. A instrumentação é bem inteligente, algo que tive cuidado em fazer. E a letra fala do subúrbio de uma forma muito poética, entende? Isso me pega.
Eu tô falando das minhas músicas, João, mas analiso minha obra de fora. Jamais fico fantasiando sobre as músicas que faço, porque senão paro de criar. Mas eu reconheço. Reconheço a qualidade artística de cada música que faço. É um produto, né?
Esse produto é bom. Eu gosto de ouvir. No começo da minha carreira, não gostava de ouvir minhas músicas, o que acho super natural. O Circo dos Motivos, foi o primeiro álbum em que pensei: “Porra, eu gosto de ouvir isso”. Foi o início desse processo. Hoje, praticamente amo todas as músicas que faço. Mas tudo começou ali. Essa paixão por entregar um trabalho bom começou ali.
Olhando um pouco pro futuro e pensando no seu legado, qual foi o principal aprendizado que você carregou do Circo dos Motivos nesses dez anos para a produção do Arteiro (2020)?
Cara, então, Arteiro foi o divisor de águas pra mim. Foi um disco que me reposicionou no mercado. Ele não me consagrou, mas me reposicionou, tanto pelas participações quanto pela qualidade artística do disco.
De 2014 até 2020, foram seis anos sem lançar nada. Cheguei a lançar um EP antes, mas ficou meio no escuro. Em 2017, entrei para a Universal Music e fiquei lá uns quatro anos. O primeiro trabalho que entreguei foi o EP Made in Madureira (2017). Esse EP foi como um laboratório para o Arteiro.
Antes disso, eu trabalhava com um selo em Madureira e conheci o Rafael Tudesco, que foi meu produtor durante anos. É um cara que eu amo de paixão, um grande produtor brasileiro. Ele vem de uma escola que sempre admirei, a do Mario Caldato Jr., que trabalhou com Beastie Boys e todos os discos do Planet Hemp, do D2 e tal. Era muito próximo do que eu sempre estudei.
O Rafael e eu tivemos a ideia de fazer um EP com músicas bem variadas, mas sem misturar muitos elementos numa só. Então, no Made in Madureira, fizemos um EP de quatro faixas com afrobeat, rap, samba e bolero. Foi um teste. Uma das músicas, chamada “Valei-me”, é uma das mais lindas que já fiz na minha vida.
Depois desse EP, comecei a trabalhar no Arteiro. Queria um disco plural, com ritmos diferentes, mas com coerência musical. No Arteiro, tem música com influências regionais, MPB, bossa, rap e samba de raiz, sabe?
Esse disco me reposicionou no mercado porque mostrei que ainda estava em movimento e amadurecendo. Quando me redescobriram, perceberam que eu não voltei fazendo o que fazia antes. Eu evoluí, continuei estudando e apresentando algo relevante.
O Arteiro também teve um cuidado especial com a identidade visual, com capa feita pelo artista Mulambo. Ele conectava o subúrbio com algo maior, trazendo protesto, provocação e diversidade artística.
Tenho muito carinho por esse álbum porque não tenho críticas sobre ele no sentido de me punir. Acho que fiz tudo o que podia naquele momento. Ele me levou onde eu deveria estar, mesmo que a ambição fosse maior.
As participações de BK, Djonga, Luedji Luna e L7nnon ajudaram muito. Mas isso não teria o mesmo impacto se o disco não tivesse sido bem trabalhado. Você pode gravar com a Anitta, mas, se a música não for boa, mais atrapalha do que ajuda. Sou muito satisfeito com o Arteiro.
O que você sente que mudou desde o começo da sua trajetória até hoje? E como você enxerga a cena do rap atualmente?
Cara, o que mudou foi a narrativa, além da estética. Claro, do boombap pro trap, muda muita coisa. Mas acho que o que mudou mais foi a narrativa e os motivos pelos quais as pessoas se interessam e entram no rap.
Acho que esse conceito tem mudado um pouco. Com a popularização e mais gente fazendo, vejo jovens buscando uma estética do rap mais raiz. Tenho visto isso, especialmente com o boombap, além das novas vertentes como o drill. Mas isso também não garante uma narrativa ideológica mais séria. Tem muita gente séria no trap e em outras vertentes. De fato, essa mudança de narrativa se consolidou muito no trap.
A música urbana também cresceu rápido, fazendo sincretismos com o pop e outras vertentes. É como uma teia, não funciona em extremos. Isso complica explicar tudo, porque, ao focar em uma percepção, deixo de abordar outras. Mas o fato é que mudou muito.
Sempre fui camaleão e tive a sorte de passar por essas fases. Muitos artistas amigos não conseguiram porque é difícil. Eu consegui porque trabalho com vários ritmos. Ainda há ritmos que não sei trabalhar, mas o que me fez sobreviver foi a adaptação às mudanças. Se dependesse só de audiência, não estaria fazendo rap hoje. Encontrei formas criativas de continuar no mercado. Acho que isso foi essencial para eu ainda estar trabalhando.
Falando nisso, você sente que a cena de hoje é mais inclusiva e aberta a novas pessoas, trabalhando novos temas, ritmos e tudo mais? Qual a sua percepção sobre isso?
Sim, ela é inclusiva. Claro que é. Mas, se você tiver um olhar fechado, vai achar que o novo sempre está pior. Eu vejo o rap hoje muito mais inclusivo, tanto pela quantidade quanto pela diversidade. No entanto, “inclusivo” não quer dizer “participativo”, porque há muita gente boa fazendo, mas a audiência não está dando atenção a isso. A diversidade ainda não está inclusa na prática.
Como bom aquariano, sou muito a favor do novo, e é interessante ver como as mulheres estão fazendo rap hoje. Pra mim, está muito melhor, inclusive, que o rap masculino. Mas a audiência do rap ainda não compra essas ideias, como também acontece com artistas trans. Antes, essas pessoas não fariam rap devido ao preconceito, mas agora podem. O problema é que a audiência ainda não abraça. Não existe um público para o rap feminino que não seja o próprio público feminino, nem para as artistas trans que não seja o público LGBTQIAP+. Isso ainda é um problema.
Eu adoro uma cena musical diversa. Acho que esse é o caminho, o futuro. Mas isso depende de uma série de fatores culturais. Então, é claro que o rap hoje é mais inclusivo. Mas, na prática, ele é diverso. Inclusivo, eu não sei. A palavra “inclusivo” não impede que artistas diversos se tornem grandes, como muitas mulheres que fazem sucesso hoje. Mas vivemos em um regime capitalista, e, nesse mercado, não tem espaço para todo mundo. Aí já não é mais uma questão de diversidade, mas de critério de escolha dentro do capitalismo.
Achei interessante essa questão do “inclusivo, mas não participativo”. Meus amigos foram a um festival recentemente, com o show da Duquesa, uma das maiores no rap feminino, mais ouvida e com presença em festivais. Mesmo assim, durante o show dela, eram as mulheres que estavam cantando, enquanto os homens estavam parados.
Massa! Sabe o que é isso? O cara, a galera que estava lá, não pagou para ver o show da Duquesa. Ele pagou porque sabia que teria mulher no evento. Olha que doideira! A lógica ainda é essa, né? O cara não paga para ver o show da Flora [Matos], ele vai porque vai ter mulher. E, com isso, ele deixa de consumir a qualidade artística da MC. É foda, cara. Por isso que eu falei que isso é cultural, não é simples. O rap hoje é diverso, mas não é inclusivo.
Eu estava lendo uma matéria do Globo, acho que de 2015, que fala sobre o álbum e sobre você. Nela, te chamam de “O Maestro do Subúrbio”. Queria saber o que esse título representa para você e como essa vivência no subúrbio influenciou sua formação musical e a construção do Ramonzin como artista.
Eu estava em um programa do Chico Pinheiro, e ele me chamou de “maestro do subúrbio” durante uma entrevista com o MV Bill. Por que isso? São duas coisas: o lugar de onde eu venho e o fato de eu sempre orquestrar minhas músicas. Minha marca sempre foi esse rap diferenciado, com instrumentais mais elaborados, incluindo muitos músicos. Eu sempre tratava minhas músicas como uma orquestra, e até hoje faço isso, com direção musical.
O subúrbio faz parte da minha formação, tanto como ser humano quanto como artista. Como sou um cara que consome muita arte e tem um olhar artístico sobre a vida, o subúrbio me encanta. Eu vejo o cotidiano, a estética e a arquitetura do subúrbio de forma diferente, e tento trazer isso para as minhas músicas, mostrando o dia a dia das pessoas. Acho que isso faz toda a diferença na minha forma de fazer rap.
Dentro dessa construção, quais artistas e movimentos musicais mais marcaram sua vida e sua trajetória, tanto como pessoa quanto como artista?
Comecei produzindo, então ouvia muita coisa. Mas, sem dúvida, tem artistas que sempre estiveram comigo e que foram minha principal formação. Artistas próximos, meus amigos, como Marechal, essa galera. E, claro, Mano Brown, que é unânime.
O que posso te dizer é que, depois de anos, descobri minha maior inspiração musical: Gonzaguinha. Não sei porque demorei tanto, mas sou apaixonado por ele. Acho que Gonzaguinha tem muito de mim, e só percebi isso tardiamente. Minha forma de escrever e a narrativa provocativa da minha obra são muito parecidas com as dele.
Isso me despertou outras inspirações, incluindo outros gêneros musicais. Gonzaguinha sempre foi muito plural, então, depois de conhecê-lo, comecei a explorar mais coisas, como sua discografia e o samba. O samba, aliás, faz parte da minha vida, talvez até mais que o rap. E, dentro do samba, um dos maiores compositores para mim é Arlindo Cruz. O cara é sinistro. Essas são, fundamentalmente, as minhas inspirações. Não todas, mas as principais.. D2 também, né? Nossa! D2 também. Tá vendo? Vou esquecendo.
Muito bacana. E o que podemos esperar do futuro do Ramonzin? Tem algum projeto em vista para 2025?
Então, cara, trabalhei muito este ano. Estava vendo minha retrospectiva e percebi que produzi bastante, principalmente focado nas redes. Não com entretenimento em si, mas com música. Lancei muito conteúdo direcionado pras redes.
Fiz um movimento contrário ao mercado. Deixei de anunciar nas plataformas principais e passei a divulgar diretamente nas redes onde meu público já me acompanha. Quando as coisas começavam a crescer, eu subia para o YouTube ou Spotify.
Essa estratégia me aproximou mais do público. Percebi que as pessoas não iriam me descobrir no Spotify e depois me seguir nas redes. Era o contrário: elas me viam nas redes e depois iam para as plataformas.
Esse trabalho deu certo. “Tú tá no RJ” foi uma música que fez bastante sucesso, por exemplo. Então, para o ano que vem, quero continuar lançando singles, trabalhando nas redes e começando a preparar um álbum novo.
Estão dizendo que 2025 será o ano do boombap. O boombap nunca saiu, né? Mas espero lançar um álbum disruptivo. Quero criar algo que me faça morrer e renascer com uma nova proposta, mostrando o que o Ramonzin de 2025 quer ser e dizer.
O artista vive de coisas novas. É onde eu respiro e me realizo no meu processo de criação. Então, pra quem já me acompanha ou está conhecendo agora, digo que ainda há muita novidade pra descobrir no que estou produzindo atualmente. E mais: o que faço hoje continua bom. Talvez até melhor. Então, espero que deem uma chance ao Ramonzin de hoje.