Qualquer show de Caetano Veloso ou Gilberto Gil já é motivo para parar as máquinas por algumas horas e prestar atenção no que acontece em cima do palco. Com os dois no mesmo lugar, então, tudo se transforma num grande evento, daqueles que já nos deixam com ansiedade vários dias antes. Lembro dos momentos anteriores à Copa do Mundo de 2014, quando fui relembrar histórias clássicas do futebol só para entrar ainda mais no clima. Minha reação ao show de Porto Alegre da turnê Dois Amigos, Um Século de Música foi muito parecida. Revisitei a discografia de ambos, com uma atenção especial aos encontros entre eles (Doces Bárbaros, Tropicália e Tropicália 2), pesquisei os setlists dos primeiros shows da tour e revi algumas performances antigas que também uniram os dois artistas. Era por volta de 9 e 15 da noite da última sexta, 28 de agosto, quando Caê e Gil subiram ao palco do Araújo Viana, e o que aconteceu em pouco mais de duas horas fez jus a toda a minha expectativa.
Os dois sentaram lado a lado enquanto o auditório inteiro gritava e aplaudia, e sem demora começaram a tocar os acordes de “Back in Bahia”. Foram 30 músicas, levadas somente pelas vozes e os violões das duas lendas, fazendo um panorama geral da carreira de cada um. Deu a impressão de que teve um pouco mais Gil do que Caetano, mas isso talvez venha do fato de Caê ter ficado mais quieto durante as interpretações de Gilberto, enquanto Gil sempre buscava um bom papel coadjuvante domando o violão em canções como “Odeio” e “Nine Out of Ten”. A segunda faixa de “Transa”, aliás, foi um dos grandes momentos de Caê no espetáculo, junto aos coros de “Terra” e ao enceramento do primeiro bis com “A Luz de Tieta”.
Gil esqueceu uma parte da letra “Super Homem (A Canção)”, mas o público ovacionou o músico e não deixou o pequeno tropeço afetá-lo. O pedido de desculpas veio com performances embasbacantes de “Drão”, “Não Tenho Medo da Morte” e “Expresso 2222”, em sequência. “Não Tenho Medo da Morte”, em especial, mostrou todo o poder da voz do cantor junto às poucas notas e às batidas feitas com o violão.
Das parcerias antigas entre os músicos, não poderiam faltar a clássica “Tropicália”, “São João Xangô Menino”, dos Doces Bárbaros, e “Nossa Gente (Avisa Lá)”, do Tropicália 2. Mas também teve uma composição nova dos dois, “As Camélias do Quilombo do Leblon”, escrita por Gil e Caetano na madrugada anterior do show do dia 20, em São Paulo. Os músicos introduziram “As Camélias” brincando com o fato da canção tocada antes, “É De Manhã”, ser a faixa mais antiga da noite, enquanto eles estavam prestes a interpretar uma música que tem pouco mais de uma semana de vida. No vídeo, dá para ouvir uma gravação amadora da primeira performance da música, no show de São Paulo.
Já perto do fim do show, Caetano se levantou para dançar pela primeira vez enquanto Gil tocava “Andar Com Fé”, e a primeira despedida veio com “Filhos de Gandhi”, som clássico do disco Gil & Jorge: Ogum, Xangô (1975). O bis esperado por todos veio com “Desde que o Samba é Samba” e “Domingo no Parque”, e os músicos voltaram de novo para encerrar de vez com “O Leãozinho” e “Three Little Birds”, entoadas quase como um mantra por toda a plateia, enquanto Gil e Caetano dançavam e deixavam seu tchau.
No meio do show, esquecem-se os altos preços e todas as polêmicas da turnê. Estamos olhando para dois dos melhores músicos da história do nosso país fazendo centenas de pessoas cantarem e dançarem, e eles só precisam de voz e violão para isso. E os dois, depois de mais de 50 anos de carreira cada um, demonstram um profissionalismo absurdo, que talvez nem precisasse ser comentado. Mesmo já ultrapassando os 70 anos, Caetano e Gil parecem estar vivendo sua melhor fase. Ou pelo menos uma boa fase eterna, que já vem há meio século. Como em todo show de artistas mais velhos, fica a dúvida se um dia eles voltarão aos palcos de Porto Alegre. Se não voltarem, pelo menos teremos uma boa lembrança de ter visto duas lendas fazendo um espetáculo.
Fizemos uma playlist com o setlist do show, sem, claro, a nova faixa “As Camélias do Quilombo do Leblon”. Dá para ouvir aqui embaixo: