Por que o Festival Coquetel Molotov merece se espalhar pelo Brasil

17/10/2016

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Por: Luciano Viegas

Fotos: Thiago Rodrigues

17/10/2016

O Festival No Ar Coquetel Molotov veio desbravar novos ares, se estendendo por Belo Horizonte nesse final de semana, dias antes da sua 13ª edição em Recife, onde ocorre tradicionalmente. Não é por acaso que a iniciativa veio a ter abrigo no Espaço Cultural 104, a antiga fábrica de tecidos ao lado da Praça da Estação, hoje consolidado como um dos redutos culturais independentes de maior importância, seja por sua programação permanente, seja por se abrir também a eventos de outra natureza, como recentemente com o Música Mundo. Esta primeira edição do Molotov atesta que se trata de um dos lugares mais preparados na cidade para receber um evento com essa característica, matinê que se prolonga madrugada adentro. E quem abriu caminho pra isso tudo foi o Acre Recife abrir o evento com o desfile da coleção Salve Exu Motoboy, ainda quando era dia.

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Foram projetados três espaços com som rolando simultaneamente, o Palco Cine, com os confortáveis pufes do 104 na linha de frente das cadeiras, pra galera assistir aos shows na mordomia. Quem abriu foi a banda local Pequeno Céu, que já anunciava qual seria a tônica do ambiente – atrações com uma pegada um pouco mais intimista, instrumental, de fruição suave, deleite sonoro e visual, com as projeções detrás das bandas, no telão de cinema. O Palco Quente (ou principal), na área espaçosa do galpão, abriu também com uma banda mineira, Congo Congo. Formado no ano passado, o grupo está preparando um primeiro disco pelo selo La femme qui roule. Com um teclado ao centro, conduzindo, em tom meio psicodélico, alguns vocais em inglês, eles deram as boas vindas ao público que estava chegando. Além dos palcos, tava rolando discotecagem no espaço do Café e há relatos contundentes (!) de que o set da Mc Ririca a.k.a Catarina Dee Jah, que rolou lá, foi intenso e já valeu a noite. Mas tinha muita coisa ainda pela frente.

Na sequência foi a vez de Sofia Freire se apresentar no palco do cinema, ela que despontou na cena recifense em 2012, lançada pelo selo Joinha Records, musicou em 2015 no disco Garimpo uma série de poemas do pai, Wilson Freire, e tem expectativas de já começar a trabalhar no próximo, caso seja escolhida pelo voto popular no edital de financiamento da Natura Musical, cuja seleção termina na próxima sexta-feira. Se na época em que seu nome começou a se tornar conhecido ela tinha apenas 19 anos, hoje já é nítido como seu trabalho tem ganhado consistência e, sozinha no palco com o piano elétrico, criando camadas de voz e loops, sua apresentação tem um contorno muito singular e por vezes lembra Björk. Infelizmente, o horário do show de Sofia coincidia com o de Jam da Silva no palco principal, então foi preciso escolher. Consegui dar uma espiada no que estava rolando por lá quando ele tocava “Gaiola da Saudade”, versão sua para a música de Maciel Salú que consta no seu último trabalho, o disco Nord.

Quando os potiguares do Mahmed assumiram a frente no Palco Cine, a sala estava abarrotada de gente. Eles tocaram um repertório variado entre as faixas do primeiro EP, Domínio das Águas e dos Céus, e do segundo, Sobre a Vida em Comunidade. O show mais esperado e encarregado de fechar a programação do palco foi o de Constantina, banda local que atravessou um hiato de algum tempo sem gravar nos últimos anos até o lançamento de Mexido, agora em 2016. Desde a retomada do grupo foram poucas as oportunidades de vê-los em BH, se não me engano houve apenas uma pequena amostra do disco recentemente no bairro Savassi. Então o público cativo que já conhecia o som instrumental dos caras desde álbuns finíssimos como Haveno (2011) e Pelicano (2014) estava lá guardando poltrona muito antes de começar. A estratégia foi começar na maciota pra depois arregaçar tudo numa espécie de catarse progressiva, sendo que a música de abertura se prolongou por quase quinze minutos, com destaque para o xilofone de Viquitor Burgos que caracteriza o som do grupo.

Enquanto isso, lá fora o pau tava comendo com o Deerhoof, a atração internacional que não teve comedimentos pra mostrar a que veio. Quem não conhecia a formação da banda, radicada em San Francisco desde 1994, teve uma surpresa grata com a heterogeneidade dos integrantes, o carisma da japonesa Satomi Matsuzaki nos vocais, a pinta meio mexicana meio sioux de Ed Rodriguez na guitarra e, claro, a (falta de) postura enlouquecida de Greg Sauniers na bateria, sua entrega total que conquistou o público na hora. Sem dúvidas a performance do Deerhoof, que apresentava algumas faixas novas de seu último trabalho lançado este ano, o disco The Magic, foi das mais enérgicas entre todas ao longo da noite. Ao final, Satomi interpelava o público a aprender alguns trechos da música enquanto o outro guitarrista, John Dieterich, fazia o papel de porta-voz exercitando seu escasso vocabulário em português.

Não bastasse a pancada que foi o Deerhoof, ainda tinha Ava Rocha. Ela subiu ao palco logo em seguida e arrematou a noite com um espetáculo daqueles sem nenhum parâmetro, força plena e visceral. O que ocorre exatamente? Tentamos decifrar (e é inútil). Parece que a pura presença do seu corpo sobre o palco mobiliza forças invisíveis, que por vezes ela própria invoca, e a atmosfera se modifica – lá fora já chovia nessa hora. Sua postura em cena revela uma atenção minuciosa para cada gesto, cada movimento frame a frame é crucial e traduz a força expressiva da ancestralidade inscrita em seu corpo. Em um momento à parte do repertório conhecido dos discos, ela conclama o povo Avá-Canoeiro, sobretudo, sabe a dimensão do nome que carrega. Mais para o começo do show, “Transeunte Coração” e “Você não vai passar”, a esta altura dois hits consagrados, foram cantados na companhia do público. Sim, boa parte das pessoas foi ao 104 especialmente para vê-la. Quando Ava Rocha coloca o cocar indígena sobre os olhos e começa a se mover pelo palco às cegas, fica claro que não importam tanto os olhos de ver quanto o seu corpo aberto e aquilo que ele canaliza e irradia, são outros os olhos que mostram o caminho. Qualquer esforço racionalista ou descritivo é insuficiente para dar conta de sua magnitude – e sorte nossa.

Depois de Ava desnortear o publico, houve ainda o fechamento do palco principal com a banda goiana Boogarins, que atingiu as expectativas extasiando a galera. Houve ainda a participação especial de Vitor Brauer, integrante da Lupe de Lupe, que há um bom tempo não se apresentava em BH, desde que a banda anunciou que ia dar um tempo com as atividades. Foi uma chance de apreciar a clara afinidade entre as marcações de guitarra do Boogarins e a sonoridade que a Lupe desenvolveu ao longo do tempo – esperamos que um dia breve eles retornem. No mais, a organização do Coquetel Molotov está de parabéns pela fluidez com que os shows foram acontecendo, concatenando-se uns aos outros e sugerindo ao público circular entre os espaços para uma melhor fruição sonora. Que venham os próximos!

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17/10/2016

Luciano Viegas