Ava Rocha divide como os afetos permeiam as músicas do novo disco “Néktar” 

13/07/2023

Powered by WP Bannerize

Isabela Yu

Por: Isabela Yu

Fotos: Cacá Meirelles/ Divulgação

13/07/2023

Em seu quarto álbum, Néktar, Ava Rocha canta sobre afetos, desejos e amores. O registro une o samba a timbres eletrônicos, em um encontro entre popular e experimental, tudo bem amarrado com a identidade da artista. Criado ao lado dos produtores musicais Jonas Sá – repetindo a parceria de Ava Patrya Yndia Yracema (2015) – e Thiago Nassif, o registro conta com onze composições autorais, com exceção de “Baby, É Tudo um Sonho”, garimpada no acervo de Negro Leo.  

Além deles, o disco traz composições em parceria de Saulo Duarte e Iara Rennó, e um grupo de músicos e cantores convidados – Alberto Continentino, Analimar Ventapane, Bella, Cláudio Brito, Eduardo Manso, Munik Namour, Pedro Dantas, Pedro Mibieli, Pedro Sá, Nina Becker e Tetê Sá. “Essa é a minha primeira entrevista, ainda estou entendendo outras camadas do processo, a descoberta é infinita. É quase uma sessão de psicanálise”, brinca Ava Rocha.  A própria capa, assinada pela artista plástica Maíra Senise, colaboradora nas capas dos últimos dois discos, e pelo arquiteto americano John Yurchyk, brinca com as noções de onírico e surreal por meio de símbolos cotidianos.

*

A princípio, a artista, ao lado de Jonas Sá, faria um disco em 2020, mas que precisou ser abortado. A dupla retomou o projeto no final de 2021, mas algumas músicas da primeira tentativa não faziam mais sentido e foram substituídas por composições mais recentes. “Eu tenho uma produção bem intensa. Quando estava nos shows do Trança (2018), já estava pensando no próximo disco, então em 2021, eu não tinha 15 músicas, mas mais de 30″, conta a compositora. Inclusive, ela já está com um próximo trabalho engatilhado com algumas composições que ficaram de fora. E nos próximos planos, há uma turnê com o repertório de Néktar sendo preparada para o segundo semestre. 

Qual foi o pontapé do novo trabalho? 

Penso como montadora, de uma forma cinematográfica, então não parto de verdades absolutas, mas de um desejo, de uma pulsão, ao ir montando e costurando os fragmentos. Eu tinha algumas intenções e elas permaneceram. A primeira era fazer um disco mais popular, mas com doses experimentais. Popular no sentido de me colocar de uma forma mais aberta, porque o meu popular vai ter a minha cara, não acho que as coisas sejam padronizadas. O conceito de popular e experimental hoje em dia são chapados, totalmente destituídos de emoção e de sentimento. Não querem dizer nada. Quando falo de um disco popular, isso não é contra o experimentalismo, muito pelo contrário. Quando me lanço no projeto, sempre existe o dever inventivo, então não é porque a gente chama alguma cosia de popular, que ela está destituída de invenção ou emoção. O meu popular quer dizer que ele é um disco mais direto, que está mais arraigado a uma alma cultural brasileira mais facilmente identificável. Mas nem sei se ele é popular, eu acho que tenho essa intenção: de me aproximar mais das pessoas, fazer com que a minha música chegue a mais pessoas e me colocar como uma cantora popular de uma vez por todas. 

Ao longo do processo de gravação, você levantou mais de 30 composições, como rolou a seleção do que entrou para o disco? 

A montagem e a ordem do disco leva em consideração algumas camadas da sonoridade e da narrativa poética. Como as músicas vão se amarrando ao longo da escuta? Como elas podem conduzir o ouvinte nesse passeio? Então é como pensar a montagem e o ritmo de um filme. Como costurar esses elementos, mas também criar tensão, conexão e contraste entre eles. A ordem foi pensada dessa forma para ele ter um ritmo que funcione e que você não se desconecte dele. Acredito que seja uma boa ordem, não sei, só quando ele for lançado que o público vai poder dizer. Mas para mim, ela faz total sentido. O disco abre com “Baby, É Tudo um Sonho” porque acho que o disco é um sonho também, um espaço totalmente onírico. A gente vai entrar em um outro território, então acho que ela apresenta alguns elementos que aparecerão ao longo das músicas. É um disco amoroso. É um disco que começa, digamos assim, nesse roteiro na minha cabeça, é como se ele mergulhasse fundo nessa dialética do amor e do que poderia ser um disco mais popular, mas que ele vai se contorcendo, né. Ele vai se contorcendo até chegar ao auge, na música mais pop, mas ele quebra e entra “Seringueira da Veia”. Por que? Porque nós somos muitos estados de espírito, não existem emoções fixas. 

De certa forma, você sentiu vontade de falar sobre outros assuntos? 

Não tenho isso, de querer falar sobre nada, eu falo sobre tudo porque as canções nascem de forma livre. Eu não tenho uma intenção por trás, é raro fazer música para falar de determinado tema. Eu sou um reflexo do mundo, então o que eu faço é um reflexo de como olho para mim em diferentes estados de espírito. Posso ser política, assim como romântica. Posso chorar, amar, odiar, lutar, afinal, somos todos múltiplos. Então, às vezes, é preciso cantar com as vísceras, experimentar com a voz porque ela é um canal espiritual. Acho que o disco é sobre isso: liberdade total. Mesmo quando você faz as coisas mais simples, a liberdade é necessária para conseguir executar com integridade e manter uma conexão real com quem você é. Todos os meus discos são filhos. Néktar, o meu quarto filho, trouxe características minhas que os outros ainda não tinham mostrado. A minha relação com o samba, com a música brasileira, a música popular, com a canção e a emoção. Junto com as características que já tenho muito claras – inventividade e experimentação. Esse é o mais doce, mas tem o outro que é mais rebelde. Estava sentindo falta disso, fiquei marcada por coisas que sou, mas não sou apenas isso. Ao construir uma obra, você vai se colocando paulatinamente no mundo, é difícil porque você não se coloca por inteiro em um projeto. 

Além de que cada disco depende de quem são os colaboradores. Como você avalia a influência dessas trocas? 

Tudo e todos fazem parte do disco. Cada álbum é reflexo dos encontros, do momento histórico e das escolhas estéticas. Eu chamei o Jonas porque sabia que ele poderia construir isso comigo com muita qualidade, sofisticação e invenção. Falava para ele que queria um disco clássico porque eu não tinha feito um assim, até porque a gente é a gente. Estamos sempre indo em frente, mas sem uma visão romântica do futuro ou depreciativa do passado. Néktar é um disco que trança e está trançado de várias maneiras. Um popular que dialoga com o que está sendo feito hoje na música contemporânea, na música pop, mas bebendo das nossas águas mais profundas, das nossas memórias relacionadas a canção. 

Como esses encontros geralmente acontecem? 

Sou muito solta, posso fazer uma música com uma pessoa que conheci na esquina ou com um grande compositor. Não tenho preconceitos. Em muitos dos casos, ela nasce de uma diversão, mas precisa partir de algo que te liga a outra pessoa. Raramente fiz canções em que, digamos, marquei hora para isso. É muito raro isso acontecer. “Lilith”, com a Tulipa e o Gustavo (Ruiz), nasceu assim. A gente se encontrou, comeu algo e fez a música, tudo muito no fluxo. “Joana Dark” nasceu depois de um show, no momento em que estava com os amigos, e a minha cunhada, a atriz Gabriela Carneiro da Cunha, me deu um verso para a música. As músicas são vivas, então eu funciono de muitas maneiras. Não precisa de muito para ser meu parceiro, acho que ser uma pessoa tranquila, fluída e que não pense tanto, que se permita. Aprendi isso com o Zé Celso (Martinez Corrêa): a gente precisa se permitir.  

“Beijando Todos Vocês”, prévia lançada em junho, surgiu quando você estava com a sua filha. O que desencadeou esse estalo? 

Não racionalizei essa música. Fui botar a minha filha para dormir e comecei a cantá-la exatamente como foi gravada. Eu estava imbuída de sentimentos, em um momento ainda na pandemia, então ela parte de uma angústia. Queria que ela tivesse bons sonhos, que estava feliz na rua, comendo planetas, beijando as pessoas. E nem são beijos sexuais, são beijos de amor, de afeto. Quando falo que é um disco amoroso, ele ultrapassa a anedota do amor porque são muitas camadas. 

Como a música ajudava a apaziguar a angústia pandêmica? 

Posso ficar um tempão sem pegar no violão, mas nessa época eu tinha tempo para fazer isso. Acho que o disco carrega isso: o nosso poder de transformação através da imaginação. A pandemia me trouxe a convicção de que o poder da arte vai além do que está publicado em um livro ou registrado em um disco, mas a sua potência como expressão espiritual e um instrumento vital para todos. Nós temos um dever vital com a nossa imaginação e a ideia de inventar e reinventar o seu cotidiano. “Asas de Aluguel” fala muito disso. É como se eu estivesse dentro da minha casa alugando asas para voar, para sair dali. Eu pensava não só na transformação social, mas também na transformação interna. 

De uma forma em que a poesia faz parte do dia a dia. 

Desde que nasci, a minha vida foi assim, sem contorno entre vida e arte. Para mim, é muito natural que eu faça uma música lavando a louça, mas na pandemia isso se intensificou pelo período em casa. “Barco nos Pés” é uma música que fiz de madrugada, a capella, enquanto preparava um pão. O ímpeto nasce integrado ao meu cotidiano. “Longe Longe de Mim” surgiu no avião, quando estava indo para o Rio gravar o disco. Eu tinha um samba, mas escrevia algumas coisas soltas, quando pedi para o Thiago puxar um samba, ela foi sozinha. Estou sempre escrevendo, é como um exercício porque não me considero uma compositora. Até que, hoje em dia, me considero mais nesse sentido. O próprio disco se impõem dessa forma. Venho construindo a minha liberdade como compositora ao longo desses anos, antes mesmo de me tornar cantora. Eu falo que componho muito, mas não quer dizer que todas as músicas são boas ou adequadas para mim, tenho autocrítica e desapego para olhar com certa frieza e entender o que faz parte desse filme, projeto e momento. 

Quero perguntar algo que não tem a ver com o disco. Li em uma entrevista antiga que a sua tia avó era cantora na Colômbia. Você poderia compartilhar essa história, por favor? 

Sylvia Moscovitz. Ela e a minha avó, Dina, se casaram com colombianos. A Sylvia casou com Gustavo Vasco, um advogado importante, e a minha avó que se casou com o meu avô, Jorge Gaitán Durán, que foi um poeta, um intelectual muito importante na América Latina. Ele é pouco conhecido no Brasil, mas bem importante fora, então elas ficaram na Colômbia. A minha tia avó viveu até o final da vida por lá. Elas estudaram música e cinema em Paris, mas acabaram conhecendo esses colombianos. A Sylvia era pianista e professora de canto, que não se consolidou como uma cantora de discos, mas como uma grande professora. Inclusive, ela formou a Shakira e várias outras pessoas importantes. Além de ser pioneira nas montagens operísticas para crianças. Mais ou menos isso, ela queria me dar aulas de canto, falava que eu cantava bem e que tinha uma voz bonita. Mas naquela época, eu tinha preguiça porque ela era da moda antiga e eu era adolescente. Fiz duas aulas e ela me deu várias broncas, mas era uma pessoa muito doce, muito querida, me incentivou, falava que eu tinha que cantar. 

LEIA MAIS

Tags:,

13/07/2023

Isabela Yu

Isabela Yu