Difícil saber se a multidão que lotou o Salão de Atos da UFRGS na noite de ontem imaginava a força do espetáculo que estava para acontecer. Juçara Marçal veio até Porto Alegre se apresentar no projeto Unimúsica, que até o fim do ano trará ainda shows gratuitos como os de Karina Buhr e Elza Soares, e trouxe consigo uma bagagem de mais de vinte anos dedicados a viver os ritmos, acordes e mistérios da música popular de matriz negra do Brasil.
Quando avançou sobre o palco seguida por Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer, Juçara deixou claro que estava abrindo ali uma fenda no tempo e no espaço. Antes de qualquer coisa, a cantora explicou ao público que estava dedicando aquele show à memória de Serena Assumpção, filha do Itamar Assumpção que morreu há poucos meses. Ontem, ao mesmo tempo em que Juçara tocou em Porto Alegre, aconteceu em São Paulo o evento de lançamento do disco póstumo de Serena, Ascensão, que reuniu artistas como Tulipa Ruiz, Céu, Karina Buhr e Anelis Assumpção (saiba mais). Assim como elas, Juçara gravou uma faixa em Ascensão e, se não estivesse no Sul, é certo que estaria nesse outro show.
Já se passaram dois anos desde que saiu o Encarnado, primeiro disco solo de Juçara Marçal, mas suas composições estão tão potentes hoje, ou mais, do que em 2014, quando o trabalho era bem menos conhecido. A primeira música cantada foi “Velho Amarelo”, composição do Rodrigo Campos que abre o Encarnado, seguida por “Damião”, “Queimando a Língua” e “Pena Mais Que Perfeita”. A ordem do show seguiu a lista de faixas do disco e o impacto que essa sequência causou na plateia era tão denso que podia ser visto no ar. A avalanche da massa sonora construída pelas guitarras de Kiko e Rodrigo (que às vezes alternava puxando um cavaco) era algo avassalador, uma rajada incessante de notas dissonantes que, apoiando o canto de Juçara, encaixavam-se perfeitamente em um quebra-cabeças harmônico impossível de compreendido. O raciocínio lógico-analítico não é capaz de dar conta de algo tão passional quanto à interpretação de Juçara e dos três músicos, então a única escolha era relaxar e se deixar atingir por tudo aquilo, sentindo a tensão daquela fritação toda na pele.
Foi o que todos fizeram com prazer. Um silêncio de misto de admiração e espanto imperava entre o público até que, ao fim de cada música, uma explosão de aplausos enchia o anfiteatro de euforia. Era difícil ver um rosto que não demonstrasse estar emocionado e a própria Juçara foi contagiada por essa atmosfera.
O show seguiu com uma versão tão visceral quanto experimental de “Xote de Navegação”, do Chico Buarque e Domiguinhos, unida à “Odoya” e “Ciranda do Aborto”, do Encarnado. Aqui, o canto de Juçara começa mais contido e vai crescendo acompanhado por uma cama de ruídos que culminam na psicodelia afro noise brasileira de “Odoya”. Nessa parte do show, a cantora se senta para operar melhor os pedais de efeitos que deixam sua voz girando em loop por cima das notas e ritmos que se desprendem das mãos dos seus músicos. Esse é um dos momentos em que a veia de improvisação de Thomas Rohrer se torna um show à parte, pois é incompreensível o modo como nascem os sons que ele tira de sua rabeca e de um objeto que se parece muito com uma batedeira manual. Depois de pedir benção à Odoya, Juçara emenda a pesadíssima “Ciranda do Aborto”, que vai crescendo em um desespero absoluto até que a cantora se despedaça em gritos e lágrimas. Abaixo, há um vídeo gravado em 2014 que dá uma leve ideia do que aconteceu ontem:
Depois dessa hecatombe, veio “Canção pra Ninar Oxum”, do Douglas Germano, assim como na ordem do disco. Primeiro, Juçara começa cantando sozinha com sua kalimba (uma caixinha que lembraum xilofone); depois, a banda entra com uma harmonia que transporta nossa mente até à calmaria meditativa de uma cachoeira. Por fim, toda banda diminui em sincronia até que Juçara volta a cantar sozinha, baixinho, convidado a plateia a lhe acompanhar no coro: Chora não, Oxum… Coisa mais linda ver que, ao cantar isso, Juçara Marçal ainda secava as lágrimas que começaram na música anterior.
Em seguida, vem o peso grooveado de “E o Quico?”, do Itamar Assumpção, a hilária (e dramática) “Não Tenha Ódio no Verão”, do Tom Zé, e então uma versão de “Comprimido”, do Paulinho da Viola, que você pode ver como soa na voz dela no vídeo abaixo. A próxima foi “João Carranca”, samba do Kiko Dinucci que encerra o Encarnado.
Então chegou a hora de apresentar a banda, agradecer ao público e à organização do evento e tocar as últimas músicas do set: “A Velha da Capa Preta” e “Presente de Casamento”. Quando acabou a segunda, mal deu tempo de os músicos fingirem se despedir que a plateia já saiu clamando: “Mais um, mais um…”.
E eis que Juçara Marçal diz: “A gente vai fazer uma do Zé Keti que infelizmente continua muito atual”, e aí puxa uma versão de arrepiar da clássica “Opinião” (veja abaixo neste vídeo de 2014).
A sede do público não cessou e então a banda tocou novamente “Velho Amarelo”, mas dessa vez em uma versão bem mais solta do que a que abriu o show. As brechas para improvisações de Thomas, Kiko e Rodrigo, que estiveram presentes ao longo de toda noite, tomaram conta dessa última música. No meio do caos, Juçara entoava notas contínuas em um exercício de canto completamente livre.
Ouvidos apressados (para não dizer conservadores) poderiam sentir aquela malha sonora ruidosa como um barulho agressivo, mas qualquer um que tenha estado lá na noite de ontem sentiu que essa é uma expressão da mais refinada arte.
Obrigado, Juçara.
Ouça (e ouça de novo) o Encarnado abaixo: