O Marshall Allen é como se fosse um Hermeto Pascoal da psicodelia afro-futurista. Um iogue do Free Jazz – e o maior discípulo de Sun Ra -, o lendário saxofonista americano é o responsável por conduzir a Sun Ra Arkestra desde 1993.
Regendo seu combo de 13 músicos de maneira extremamente enérgica, o multi-instrumentista – também versado na flauta, oboé e EVI – assusta pela vitalidade, mesmo aos 95 anos de idade. Talvez o mantra “space is the place” seja o segredo para tanta criatividade e longevidade. Imerso nos dogmas que criaram o mito interplanetário da música, Allen conduz seu grupo como um fenômeno que parece alinhar os planetas sob a ótica do Jazz.
Sempre visceral, improvisado e vívido, o som da Sun Ra Arkestra tem luz própria. Brilha mais do que as roupas com um quê de Parliament-Funkadelic utilizada pelos músicos. É um retrato fidedigno da essência de Sun Ra e também uma amostra de todo o brilhantismo, lealdade (e por que não dizer genialidade) do próprio Marshall Allen frente à filosofia que ele acredita nos fazer levitar.
Pois bem. Durante 2 horas foi isso que aconteceu na Comedoria do SESC Pompéia. Alternando suas inserções entre o saxofone e o EVI, Allen parecia pintar uma miragem. Como em uma luxuriosa viagem a Saturno – terra que Sun Ra dizia ser o CEP da sua nave mãe – o músico que teve a honra de tocar ao lado do alienígena negro desde o final dos anos 1950 inaugurou a edição 2019 do SESC Jazz com um show primoroso.
Intenso e com tempos pouco ortodoxos, Marshall comandou a parede sonora da Arkestra com um brio quase telepático. Contando com um brasileiro no time (Elson Nascimento) que há mais de 30 anos faz a percussão para o grupo, a ensemble mostrou seu groove de tempos quebradiços enquanto criava climas instrumentais capazes de se alternarem entre um standard e o mais absurdo Free Jazz, tudo em questão de segundos.
Foi uma experiência exuberante. Observar como funcionava a interação do músico e ver a forma cerebral com a qual Marshall guiava tudo aquilo foi um exercício grandioso. Uma aula de dinâmica, assistir aos embates da orquestra cósmica nos faz repensar os limites do som e mostra o poder da música uma vez que ela tenha um objetivo, que, no caso desse seleto grupo de excelentes músicos, é expandir a linguagem e a percepção de quem capta essas ondas.
Mais do que seguir um padrão, no primeiro momento pode parecer que a música da Arkestra é puro experimentalismo sem contexto, mas a essência das vibrações é muito mais profunda do que isso e nos faz questionar a nós mesmos. As raízes dessas músicas e conceitos é tão profunda que hoje é praticamente impossível classificar o que é feito sob o palco.
As músicas duram dezenas de minutos. O tempo chega a ser relativo, mas a leveza e a liberdade criativa são o maior presente que esse espetáculo pode dar ao público. Os músicos respeitam tanto a imagem e obra de Sun Ra que parecem não ligar se o som vira um Hard-Bop ou um Fusion do mais cabuloso.
Eles só querem fazer música para continuar contando essa história e isso é muito belo, nota-se claramente como eles entenderam a mensagem e sabem que são instrumentos de transmissão desse tratado universal. O poder do som é muito maior do que qualquer coisa.
O Sun Ra ficaria muito orgulhoso disso tudo. A elevação espiritual é o caminho. O mantra “space is the place” ainda ecoa na imensidão do universo.