Roger Waters relembra sua história, faz críticas políticas e fascina o público com tecnologia e performance

16/11/2023

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Erick Bonder

Por: Erick Bonder

Fotos: Marcos Hermes e Lucas Alvarenga/ Divulgação

16/11/2023

Roger Waters passou pelo Brasil com sua turnê This is Not a Drill [“Isto não é um treinamento], deixando os fãs em êxtase com o espetáculo de música, performance, projeções, luzes e fogos de artifício em estádios de futebol lotados. Revisitando suas clássicas composições eternizadas pelo Pink Floyd, o artista britânico relembrou com o público brasileiro a história de sua vida. As duras mensagens políticas, características da obra e da militância do músico, estiveram presentes ao longo de todo o espetáculo, pela paz, autodeterminação dos povos, igualdade racial, de gênero e liberdade de expressão. O compositor passou por Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo.

Nós conferimos a apresentação em Porto Alegre, na Arena do Grêmio, onde compareceram 30 mil pessoas para assistir à apoteose dividida em dois atos, com intervalo de vinte minutos. Antes do show, os quatro enormes telões, que cobriam o palco inteiro, avisaram, acompanhados pela voz de Waters: “O show começará em 5 minutos”. Passada a contagem regressiva, mais um recado, que viralizou nas redes sociais: “Se você é do tipo que diz: ‘Eu amo Pink Floyd, mas não suporto as políticas do Roger’, você pode muito bem se retirar para o bar agora”. O público vibrou (ao contrário de 2018, quando Waters foi vaiado por um público descontextualizado, ao protestar contra Jair Bolsonaro).

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PRIMEIRO ATO

Recados dados, a galera aquecida, veio o momento que todos esperavam: incorporando um dos personagens de seu musical The Wall, vestido de médico, carregando uma cadeira de rodas vazia, a lenda viva entrou no palco. “Comfortably Numb”, em versão reinterpretada, começou a tocar e a plateia foi à loucura. Os telões mostravam uma cidade em ruínas, com enormes grupos de pessoas moribundas vagando pelas ruas. Não poderia haver canção mais simbólica para iniciar o espetáculo, que busca utilizar o grande alcance da arte de Roger para propagar alertas: “Now, I’ve got that feeling once again/ I can’t explain, you would not understand/ This is not how I am/ I have become comfortably numb” [“Agora, tenho aquela sensação mais uma vez/ Não posso explicar, você não entenderia/ Não é isso que eu sou/ Eu me tornei confortavelmente adormecido”].

É impossível falar deste show sem comentar as imagens que passavam no telão, pois elas não são meros acessórios ou perfumaria. O espetáculo é milimetricamente planejado para que todos os elementos em palco corroborem com o impacto da mensagem. Em alguns momentos, Waters realiza movimentos que coincidem exatamente com o surgimento de frases nas enormes telas. Em outros, o artista opera praticamente como um maestro de máquinas (além da banda, claro) e indica exatamente quando serão disparados novos fogos de artifício e canhões de luzes. Os telões intercalam imagens criadas por computador à captações ao vivo, misturando ambos registros em diversos momentos. Tudo isso, além da emoção dos fãs em assistir ao vivo um dos maiores nomes da história do rock, faz com que o show This Is Not a Drill seja inesquecível. Quer dizer, é emocionante assistir a uma apresentação tão cuidadosamente concebida e produzida. 

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Após cantar as memoráveis, “The Happiest Day In Our Lifes”, “Another Brick In The Wall Part. 2” e “Another Brick In The Wall Part. 3”, Roger Waters iniciou o momento mais político e crítico do show. Foi a hora de performar duas músicas de sua carreira solo, começando com “The Powers That Be”. Enquanto ressoava a letra, que diz que os homens poderosos gostam de medo e ódio e vestem pele de cordeiro (“They like fear and loathing/ They like sheep’s clothing”), os telões mostravam cenas reais de violência, acompanhados de legendas explicativas. Eram cenas de prisões, espancamentos e assassinatos vindas de forças do Estado. O crime das vítimas? Ser negro, ser mulher, ser judeu, ser palestino. Neste momento, aparece o nome de Mariele Franco, política carioca assassinada em 2018 por levantar sua voz contra a violência policial e o poder paralelo da milícia. O público vibrou.

Em seguida, vem a canção “The Bravery Of Being Out of Rage” (crítica à Guerra do Golfo) e surge em tela Ronald Regan, ex-presidente ultra-liberal dos Estados Unidos da América, fazendo um discurso. A imagem é congelada e surge o letreiro: “Criminoso de guerra”. Depois disso, é a vez de George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump, seguidos por Joe Biden, sobre o qual Waters afirma, categórico: “Está apenas começando”. Waters teve a vida marcada pela guerra: aos cinco meses de idade, perdeu o pai, morto durante a Segunda Guerra Mundial lutando contra o Eixo nazifascista. O público ainda pode conferir Waters sentando-se ao piano e tocando uma canção composta recentemente , “The Bar”, que trata sobre a vergonha da humanidade pela sua própria situação e da necessidade de nos sentarmos, todos juntos, em uma mesa para rever os nossos rumos. O bar para o qual Roger mandou a galera no início, é esse bar metafórico ou o bar de verdade dos estádios? Talvez ambos. 


Logo depois de cantar “Have a Cigar”, crítica contumaz à indústria musical, foi a vez de homenagear seu amigo de infância e cofundador do Pink Floyd, Syd Barrett. É traçada a história de quando os amigos, ainda adolescentes, foram de Cambridge à Londres para ver Gene Vincent e os Rolling Stones tocar. Na volta, combinaram de fazer uma banda. Depois disso, é história. Roger ainda relembrou o momento em que percebeu que Barrett não estava mentalmente saudável (motivo que o fez abandonar a carreira). “É muito fácil se perder”, disse. O público cantou “Wish You Were Here” a plenos pulmões do início ao fim e se emocionou com a performance de “Shine On You Crazy Diamonts (Parts. VI – IX)”, enquanto imagens dos integrantes da banda inglesa passavam nas telas (além de Waters e Barrett, Richard Wright e Nick Mason, com exceção de David Gilmour).

Os clássicos escritores ingleses George Orwell e Aldous Huxley, consagrados por suas narrativas distópicas “1984” e “Admirável Mundo Novo”, também foram lembrados pelo compositor. Waters disse que eles tinham razão em seus apontamentos para o futuro, que tornam-se cada vez mais reais, e que ele mesmo também estava certo na letra de “Sheep”, música do álbum Animals – conceitualmente inspirado no livro “A Revolução dos Bichos”, de Orwell. “Harmlessly passing your time/ In the grassland away/ Only dimly aware of a certain unease in the air/ You better watch out/ There may be dogs about” [“Inofensivamente passando o seu tempo/ Na pastagem distante/ Apenas vagamente por dentro de um descontentamento no ar/ É melhor você se cuidar/ Podem haver cães por perto]. Com essa mensagem contra a alienação, o primeiro ato do show termina com letras garrafais no telão: “Resista à guerra”, “resista ao fascismo”, “resista ao capitalismo”, “resista”.


SEGUNDO ATO

Após vinte minutos de intervalo, Roger Waters voltou ao palco. Desta vez, não vestido de médico, mas sim em uma inversão de papéis: paciente, confinado em uma camisa de força, arrastado para um canto do palco, atordoado. Com as mãos presas, canta “In The Flesh?”. Quando a turnê This Is Not A Drill começou, passando pela América do Norte e Europa, a roupa era outra: sobretudo de couro, óculos escuros e faixas vermelhas nos braços. As roupas remetem propositalmente às vestimentas nazistas, em uma crítica feroz do artista contra as ditaduras e o totalitarismo. No já citado musical The Wall, é o momento em que Pink, o personagem principal, enlouquece e acredita ser um ditador. A letra simula suas falas: “And that one looks Jewish, and that one’s a coon/ Who let all this riff raff into the room?/ There’s one smoking’ a joint and another with spots/ If I had my way, I’d have all of you shot” [Aquele lá parece judeu e esse outro é macaco/ Quem deixou essa gentalha entar na sala?/ Tem um fumando um baseado e outro é manchado/ Se eu pudesse, teria todos vocês baleados].

Waters provavelmente trocou a vestimenta no meio da turnê para evitar problemas. Inacreditavelmente, a polícia alemã abriu uma investigação contra o músico, por suposta apologia à indumentária nazista. Um total absurdo, pois, na verdade, trata-se do contrário: um alerta de repúdio. Qualquer pessoa em sã consciência, que conheça a obra de Waters, ou mesmo que não conheça, mas tenha a mínima capacidade de interpretação de texto, compreende a figura de linguagem.


De camisa de força, na cadeira de rodas, Roger recebeu uma injeção. “Run Like Hell” começou a tocar. No final da canção, apareceram em tela imagens do massacre aéreo realizado pelos EUA em 2007, em Bagdá (onde foram mortas 12 pessoas inocentes, incluindo trabalhadores da imprensa, e que tiveram imagens vazadas pelo WikiLeaks). Waters lembrou, falando no microfone, sobre a luta pela liberdade de Julian Assange, jornalista australiano perseguido internacionalmente desde 2010, preso desde 2019, por conta do vazamento das imagens. Chelsea Manning, a militar responsável por passar as informações internas do exército norte-americano para Assange (que também foi presa, mas já está em liberdade), também foi homenageada.  

Waters é um conhecido militante pró-palestina e inclusive já entrou em desacordos com Caetano Veloso e Gilberto Gil, após estes realizarem show em Israel, em 2015, não aderindo ao boicote proposto através de uma carta. O músico milita pelo fim da ocupação israelense na Cisjordânia há anos, bem como contra as sistemáticas violações de direitos humanos que acontecem na área, alegando que o povo palestino vive sob um sistema de aparteid. Vestindo um keffiyeh (manto típico de povos do Oriente Médio, utilizado por árabes, judeus e curdos), Waters cantou “Déjà Vú/ Lay Down Jerusalém”, enquanto os telões mostravam a frase: “Stop the genocide” [Parem com o genocídio], fazendo referência direta ao atual conflito na Faixa de Gaza.

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Recentemente, Roger lançou seu The Dark Side Of The Moon Redux, em comemoração aos 50 anos do clássico álbum, que marcou gerações consecutivas ao longo das décadas. O disco traz novas versões para canções já eternizadas, com o compositor, hoje aos 80 anos de idade, cantando de forma falada, com andamentos mais lentos e sem solos de guitarra. Depois de interpretar mais uma das canções de sua carreira solo, “Is This The Life We Really Want?”, Waters tocou uma sequência de músicas do disco. O hino “Money” abriu os trabalhos, sendo cantada pelo guitarrista Jonathan Wilson. É de impressionar que algumas pessoas se espantem com as mensagens políticas durante o show, visto que elas estão em toda a sua obra do compositor. A canção é uma crítica ao capitalismo e ao mundo do consumo: “Money/ It’s a gas/ Grab that cash with both hands and make a stash/ New car, caviar, four star, daydream/ Think I’ll buy me a football team” [Dinheiro/ É um gás/ Agarre essa grana com as duas mãos e faça um estoque/ Carro novo, caviar, quatro estrelas, sonho acordado/ Acho que vou comprar um time de futebol para mim].


Na sequência, a banda tocou “Us and Them”, canção que aponta que, apesar de divididos entre “nós” e “eles”, somos todos pessoas normais, partes de um mesmo todo. No telão, retratos começam a compor, pouco a pouco, um grande mosaico de rostos, buscando a maior diversidade possível. Enquanto Roger cantava “Any Colour You Like”, “Brain Damage” e “Eclipse”, os telões ficaram repletos de retratos. Simultaneamente, canhões de luzes fizeram surgir no palco diversos triângulos, simulando o prisma newtoniano que ficou marcado enquanto capa do The Dark Side. Como se não bastasse isso para impressionar o público, os canhões ainda dispararam luzes com as cores do arco-íris, completando a sensação de estar praticamente dentro da capa do clássico álbum da banda inglesa. Neste momento, o mosaico de fotos se transforma em bandeiras dos povos andinos, representando as lutas dos povos originários.

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Encaminhando o show para o final, Waters alerta para os perigos reais de uma guerra nuclear e da aniquilação da humanidade. “Two Suns In The Sunset”, que fecha o álbum The Final Cut, o último de Waters com o Pink Floyd, descreve a cena de uma pessoa voltando para casa de um dia normal, no início da noite, quando de repente surge algo no céu que parece um sol: é a bomba nuclear. “You stretch the frozen moments with your fear/ And you’ll never hear their voices/ And you’ll never see their faces/ You have no recourse to the law any more” [“Com seu medo, você estende os momentos, congelados/ E você nunca ouvirá suas vozes/ E você nunca verá suas faces/ Você não tem mais recursos na lei”]. Enquanto Roger cantava, os telões mostravam uma animação que simulava a mesma situação narrada na letra da canção.

Novamente Waters sentou-se ao piano, agradeceu o público brasileiro e tocou “The Bar (Reprise)”. Dedicou a música para sua esposa, seu irmão e Bob Dylan (no qual alega ter se inspirado para compor um verso da canção). O artista prestou homenagem aos seus familiares, com uma foto na qual aparece com pai, mãe e irmão mais velho. Pouco antes, todos os músicos haviam se reunido em volta do piano para realizar um brinde. “Outside The Wall” veio para encerrar a noite. Waters levantou-se do piano, apresentou os Jonathan Wilson e Dave Kilminster (nas guitarras e vocais), Jon Carin (nos teclados, guitarras e vocais), Gus Seyffert (no baixo e vocais), Robert Walter (nos teclados), Joey Waronker (na bateria), Shanay Johnson e Amanda Belair (nos vocais) e Seamus Blake (no saxofone). Todos, ainda tocando seus instrumentos, retiraram-se do palco, atrás de Roger. Já no backstage, acompanhado por uma câmera transmitida no telão, Waters conta os últimos compassos da música e os telões apagam. O show acabou.

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O QUE NÓS ACHAMOS

Um espetáculo. Compositor de algumas das canções mais marcantes do século XX, Roger Waters criou um show que retrata perfeitamente sua obra, vida e militância. Todos os recursos tecnológicos empregados na apresentação estão a serviço da música e da performance. Waters é um artista que caracterizou-se por criar obras conceituais e homogêneas e This Is Not A Drill não foge disso. Além de emocionar os fãs com seu repertório, cantando e tocando baixo, violão e piano, o músico impacta profundamente com suas mensagens políticas. Roger Waters é um dos maiores nomes da arte a usar sua fama em nome das causas sociais. Nesta passagem pelo Brasil, o britânico inclusive foi condecorado pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro e visitou, junto com Paulo Miklos, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As versões redux de canções eternizadas pelo Pink Floyd não procuram substituir as originais, mas sim contextualizá-las. E servem muito bem para este fim, com um Waters octogenário cheio de energia e vontade de expressar-se. Quem quer ouvir as músicas tais quais foram gravadas há cinquenta anos, não precisa ir em um show para isso, pode colocá-las para rodar em um tocador online, cd, fita ou disco de vinil. O que presenciamos no show foi um artista completo, que segue, até hoje (mesmo tendo todas as condições de ficar acomodado), pensando sobre sua obra e sobre o mundo à sua volta. Saudamos Roger Waters, sua luta, seu legado e sua inventividade. Sua música é agora mais atual do que nunca.

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16/11/2023

Erick Bonder

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