Fotos: Maciel Goelzer, DDC UFRGS
Desde que Mestre Ambrósio deu por encerradas suas atividades, Siba passou por duas revoluções. Primeiro, em 2004, mudou-se para Nazaré da Mata, cidade interiorana de Pernambuco com 30 mil habitantes na qual impera a tradição da Ciranda e do Maracatu de Baque Solto. De lá, saiu sagrado mestre. Com a Fuloresta do Samba, formada com músicos locais, lançou dois álbuns cuja matéria-prima é a tradição da Zona da Mata, Fuloresta do Samba (2002) e Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (2007).
A outra reinvenção veio em 2012, com Avante. Produzido em parceria com Fernando Catatau, o álbum nasceu com o desafio do retorno ao rock e à guitarra, escanteada desde os primórdios da Mestre Ambrósio, e de experimentações com batidas diferentes das tradicionais pernambucanas, como a eletrônica. Além disso, exigia uma nova abordagem de sua musa original, a poesia, distanciando as letras e estruturas melódicas do modelo repentista com o qual estava acostumado como mestre maracatuzeiro.
Em uma referência à música que abre o disco, é possível dizer que, depois de preparado, o salto continua sendo dado: Siba, hoje, vê os conflitos mais severos, de contraste entre mundos e intenções, já superados. Avante, depois de prensado, permanece em mutação – e após tantas diferentes apresentações ao vivo aproxima-se justamente da lógica mais orgânica da Fuloresta e da música de rua, confirmando a teoria do próprio Siba de que ele é um pêndulo que vai, mas sempre volta.
Na carona das metamorfoses do palco, Siba criou um projeto em parceria com Antônio Loureiro em que canta suas canções ao vivo em formato minimalista, apenas acompanhado de sua guitarra e da bateria e do teclado (tocados simultânea e ninjamente por Loureiro) – dando à poesia, no destaque da voz em meio a ausência de mais instrumentos, um novo protagonismo.
Conversamos com ele após a primeira grande apresentação do projeto, em Porto Alegre, e ganhamos uma aula de maracatu. Mas a maior sorte foi o papo ter rolado logo depois do carnaval: descobrimos se a festa foi comprometida em um estado que, como vários outros do Brasil, começa a ver as restrições de horário impostas pelo governo prejudicarem a cultura popular.
Em Pernambuco, semelhante ao que já aconteceu em outros estados brasileiros, o governo está impondo uma restrição de horários para festas públicas que, pelo que vimos, prejudica o maracatu. Como isso está impactando a tradição e a cultura popular?
Na verdade, isso é uma coisa muito específica do Maracatu de Baque Solto, que é uma tradição que funciona de um jeito único e que precisa dessas festas que viram a noite. Há dois anos esse movimento tem sido feito, mas ele nunca foi explicado e agora está aparecendo com mais clareza. Tem um projeto do governo relacionado à segurança pública que se chama “Impacto pela Vida”, e que tem como objetivo diminuir os índices de violência, mas cuja ação, até onde eu entendo, consiste em mandar os pobres pra casa mais cedo, um toque de recolher. E isso atinge o Maracatu de Baque Solto há dois anos, lentamente foi chegando e agora deu uma geral, não prejudica todos os cento e tantos grupos da região, mas uma boa parte da tradição. É uma imposição de restrição de horários para uma festa tradicional, centenária, celebrada pelas pessoas mais pobres de uma região inteira. E uma restrição aplicada sem nenhum tipo de discussão, não se ofereceu nenhuma justificativa, e que juridicamente também não é aplicável, não há nenhuma lei que embase a restrição – a não ser uma recomendação do Ministério Público embasada em uma lei de grandes eventos que regula limites com uma série de detalhes pra eventos acima de mil pessoas, que é uma coisa que não se aplica no Maracatu a não ser nas grandes Samabadas, que são encontros de dois mestres. Então, realmente, é uma situação bem autoritária, e de imposição simples sem discussão. Recentemente entramos com uma denuncia no Ministério Público [é possível ler o texto aqui].
E como são as Sambadas e os Ensaios?
O Maracatu é um cortejo no carnaval, mas é fora dele que acontece o principal, as festas onde as pessoas se reúnem e onde tudo de mais importante da tradição acontece. Essas festas são duas, e a gente chama de Ensaio e Sambada. Ensaio não é bem um ensaio, não se ensaia nada, é uma festa que dura a noite inteira e não tem fantasia, só a música e a poesia. O mestre canta, improvisa, tem toda uma coisa da estética da poesia que é bem específica também. Há uma circulação bem grande de poetas, já que vários mestres da região visitam, e a poesia se mantém viva nessas situações.
No documento enviado pro Ministério Público é possível entender que é nos ensaios que se experimenta, testa, decide o que fica, o que vai, a tradição evolui…
É algo que exige tempo, sem tempo não se completa o processo. Então existem os Ensaios, que são essas festas abertas, e as Sambadas, mais complicadas, que envolvem dois grupos em um duelo. É combinado um dia e um lugar e há uma disputa de poesia cheia de regras, de protocolos, de marcações, mas não é algo fechado. É como um jogo de futebol, cada maracatu tem uma torcida – e as pessoas que estão na rua complementam a torcida. Podem ter Sambadas pequenas, com duzentas, trezentas pessoas, e podem ter Sambadas grandes, com mil, 2 mil pessoas. Os mestres visitantes geralmente não cantam, são apenas os dois mestres que vão cantar e, eventualmente, um ou dois vão ajudar no meio da noite enquanto um descansa, mas é uma tarefa de um mestre só, uma noite inteira, e tem que ser até de manhã – e aí entra a importância da resistência pra Sambada. Você tem que aguentar cantar até de manhã, o que é tão importante quanto cantar bem, cantar certo.
E é só depois de passar por uma Sambada que um mestre é considerado mestre, de fato?
Ser mestre é ter um ofício, é como um ofício. É hierárquico, mas não é metafísco, é pé no chão. Ser mestre de maracatu é algo que você aprende. Você começa cantando nos Ensaios, cantando fraquinho, erradinho, e vai melhorando. Demora um tempo, um ano, dois, três, tem gente que já começa bem… e aí você começa a cantar em algum maracatu, alguém vai te chamar um dia pra cantar, e você já começa a ser mestre, cantando, o que implica em não só cantar, mas entender todo o funcionamento do grupo, coordenar ele junto com as outras pessoas, ocupar uma função de comando. E aí a Sambada, com um mestre mais conhecido, é um tipo de rito de passagem pra você ser reconhecido como um mestre mais completo. O simples fato de você cantar no maracatu já te transforma num mestre, mas quando você passa por uma Sambada, duas, três, você começa a falar sério em termos da posição que você ocupa dentro da tradição.
É possível dizer que se tornar mestre em Nazaré da Mata foi como um grande processo e que, depois dos trabalhos com a Fuloresta, Avante foi uma nova revolução? O formato minimalista apresentado hoje no palco, aliás, é como uma continuação desse processo de reconstrução?
Eu não entendo mais tanto como reconstrução, já me sinto superando aquilo tudo, os conflitos mais severos, de contraste, de outras coisas, eu me sinto conseguindo juntar o que eu estava sentindo como partes desconexas. Hoje me sinto mais livre, não tenho mais uma questão a resolver dentro daqueles termos. O próprio Avante é bem mutante, tá bem diferente, se você ver ele agora. Eu cultivo muito a minha arte como processo e não como fim, não tem uma coisa que eu cheguei – chega num ponto que é aquele possível daquele momento, que você dá por acabado não porque acabou, mas porque você tá partindo pra outra coisa. Então é isso, é uma possibilidade, é um campo de experimentação, são encontros que eu fui me vendo obrigado a fazer por vontade e também pra poder ocupar espaços em que não cabia uma banda, como hoje, aqui, dava para chegar em Porto Alegre mas não dava pra trazer uma banda, pô, vou deixar de ir pra Porto Alegre? O que eu faço pra ir pra Porto Alegre? Como é um trabalho que eu não pretendo tão cedo gravar, é meio levado assim, não tão a sério, meio soltão, não combinamos muita coisa, fazemos as marcações, depois esquecemos as marcações, fazemos meio na hora. Hoje foi nossa primeira apresentação com um palco, um som mais alto, foi até estranho porque a gente nunca tinha cantado tão alto. Mas é um trabalho pra ir meio soltão, assim, sempre na informalidade. Eu entendo como um momento em que eu posso chegar com o texto nos lugares e que a música pode só dar uma ajudinha ali, pra não ficar tão chato. E não é um show de música na verdade.
Você já disse que não pretendia registrar o Avante ao vivo porque tinha outras ideias em mente. Dos projetos pra essa ano, o que está rolando e o que dá para adiantar?
Tem o Azougue Vapor, que é uma colaboração com poetas da Mata Norte, nesse momento é João Limoeiro e João Paulo, mas virão outros. É uma retomada… uma desculpa pra cantar Maracatu e Ciranda sem ter que estar lá porque nem sempre eu posso. Na verdade é isso. E eu tô elaborando um trabalho novo que vai ter muito a ver com isso, mas não vai ser isso. Em algum momento sai.
Vimos que o Azougue Vapor também enfrentou problemas de restrição de horários ao tocar em Nazaré da Mata, no Carnaval…
Voltando para o assunto da restrição, essa coisa do Ministério Público expedir as recomendações de horário bateu muito forte no interior durante o Carnaval, mas em Recife não, o que é engraçado, né, porque aí não tem visibilidade. No interior foi sério o negócio, o carnaval teve que parar as duas da manhã, o que é uma oportunidade pra todo mundo que está ali sem querer fazer nada adiantar o trabalho e acabar a festa à uma. Em Pernambuco, eu senti que no interior, nos lugares em que fui e pelo o que ouvi, essa foi uma tônica geral: este carnaval que o governo promove no interior foi um carnaval muito de se ganhar sem trabalhar. No geral, nada funcionou, a parte técnica não funcionou, tudo deu errado, e quem foi como eu, circulou, ou não fez quase nada, ou fez um pouco a pulso, essa foi a tônica. O carnaval no interior foi sempre um pouco complicado mas a gente sempre conseguiu fazer e pra mim sempre foi uma oportunidade especial de chegar lá, o que às vezes é difícil, e esse ano eu fui e nem sequer consegui fazer, o que foi bem complicado mesmo.
3 discos para entender Siba:
Mestre Ambrósio – Mestre Ambrósio (1996)
O primeiro e autointitulado disco da Mestre Ambrósio, lançado em 1996 de forma independente. Ao lado de Mundo Livre S.A e Chico Science e Nação Zumbi, a banda completa a tríade fundamental do famigerado Manguebeat.
Siba e a Fuloresta do Samba – Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (2007)
Segundo e mais bem sucedido álbum com a Fuloresta do Samba, formada com músicos da Zona da Mata pernambucana.
Siba – Avante
Após cinco anos com a Fuloresta, Siba se reinventa com Avante, juntando os fragmentos de tudo que já havia sido, tocado e ouvido em um novo arranjo. Também já conversamos com Siba sobre o disco aqui.