Sobre flores e remédios: a maconha na música brasileira

28/06/2024

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Jeff W. e Crystal Weed/ Unsplash/ Reprodução

28/06/2024

Esta matéria foi publicada originalmente na Revista NOIZE #131, em novembro de 2022, integrando o kit NRC#067 – Planet Hemp, “JARDINEIROS”, contando também com LP verde translúcido.

“A maconha vem de longe. Sempre fumaram, né? Como é criminalizada, fica subterrânea, mas os artistas em geral – na área musical, então… – sempre tiveram relação com a maconha”, diz Jards Macalé. Com presença marcante na história do Brasil desde o início da colonização, no século XVI, a Cannabis possui raízes profundas na sociedade do país, e não faltam exemplos demonstrando sua presença no cancioneiro nacional.

Pelo menos, desde os anos 1930, há registros da erva na música brasileira. Ao comentar “A Cocaína”, que Sinhô compôs em 1923, o historiador Luiz Antonio Simas acrescenta: “O aparecimento da maconha na canção popular é posterior. Noel [Rosa], pioneiro, fala em ‘Quando o Samba Acabou’ do malandro derrotado que ‘perdendo a doce amada / foi fumar na encruzilhada / passando horas em meditação’. A canção é de 1935”.

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Nos anos 1940, Wilson Batista e Afonso Teixeira foram mais explícitos com “Chico Brito” (“Dizem que fuma uma erva do norte”), sucesso na voz de Dircinha Batista em 1949 e regravada por Paulinho da Viola em 1979. Na década seguinte, algumas tragadas tiveram protagonismo na gênese da bossa nova. O livro Chega de Saudade (1990), de Ruy Castro, narra em detalhes o primeiro contato de João Gilberto com a maconha, em 1951. Inclusive, o apelido de João era Zé Maconha, conforme depoimento de Carlos Lyra citado por Castro. 

“A bossa nova não existiria se não tivesse a maconha, né? Acho que é verdade. João Gilberto nunca negou que fumasse, e o resultado foi uma música mais tranquila, mais calma, mais soft e ultracriativa. Mas tinha uma coisa interessante: ele fumava muito, mas parava uma semana antes de qualquer apresentação. Porque já estava implícito que a música em si já era o barato”, diz Jards, ou Macala, como seu amigo João lhe chamava.

Entusiasta da Cannabis há cinco décadas, Jards, aos 79 anos, lembra das suas primeiras tragadas: “Não posso dizer o santo que me apresentou pela primeira vez um finório, um cigarrinho bem fininho, mas foi um grande amigo meu. A gente estava fazendo uma música, aí ele: ‘Você fuma?’. E eu: ‘Não. Aliás, posso fumar’. Foi meu primeiro xarinho, e gostei. Comecei a manter uma relação saudável. Como diz no Tapa Na Pantera (2006), fumo há 50 anos todo dia e não sou viciado! Nunca tive uma relação viciante com a maconha, fumo na hora que me dá na telha. E adotei o método do João: uma semana antes [de um show], você mergulha na música e o som já é um grande barato”, diz.

João Donato, que conviveu com João Gilberto desde os anos 1950, não atribui grande influência da maconha na criação musical em si, e também não abre o jogo sobre as histórias canábicas do início da bossa nova. “Eu não lembro de nada. Só lembro que eu fumava, ele [João Gilberto] fumava também. Mas eu não lembro de nenhum episódio especial”, desconversa.

Correio da Manhã/ Reprodução


Hoje, aos 88 anos, Donato ostenta sete décadas de carreira acompanhadas pela Cannabis. A primeira vez que fumou foi com seus amigos músicos: “Foi num ensaio. Eu tinha um conjunto chamado Os Namorados, e a gente ensaiava em Laranjeiras [no Rio de Janeiro], na casa de uns amigos, sempre à noite. Nós éramos cinco. Na saída, foram dois na frente e três atrás. Aí eu vi esse pessoal atrás e: ‘O que estão fazendo aí?’. E eles: ‘Estamos fumando, quer experimentar?’. Experimentei e não parei mais. Eu tinha 18 anos. Tô com 88, isso já tem 70 anos. Nunca parei, nunca me fez muito estrago, nem fiz disso um vício. Sempre fui muito ponderado, muito cauteloso”. 

As faixas que João lançou com Os Namorados e Donato e Seu Conjunto em 1953 compõem a sua primeira safra de gravações após conhecer a maconha. Segundo o já citado livro de Ruy Castro, houve uma mudança nítida no som dele a partir dali: “No novo arranjo de Donato, os baixos do seu acordeão fraturavam o ritmo como uma metralhadora de síncopes e produziam uma batida que antecipava, quase sem tirar nem pôr, a do violão de João Gilberto, cinco anos antes de Chega de Saudade. Era tão moderno que, na época, ninguém entendeu”.

João Atala/ Divulgação


Nas brechas da Censura

A partir dos anos 1960, passaram a florescer menções à erva na música. Em 1961, Roberto Silva gravou “Jornal Da Morte” (“Porque o noivo não comprava / Maconha pra ela fumar”). Na Jovem Guarda, Roberto e Erasmo deixam uma maresia no ar com “É Proibido Fumar”, faixa-título do disco de 1964 de Roberto Carlos. Anos depois, em 1971, a dupla iria além com “Maria Joana”, lançada no LP Carlos, Erasmo. Em 1965, Golden Boys gravou “Erva Venenosa”, regravada em 1982 pelo Herva Doce, em 2000, pela Rita Lee, em 2005, pelo Chiclete com Banana, e em 2006, pelo Inimigos da HP. 

Já em 1969, Serguei citou um baseado em “Alfa Centauro” (“Na mão, o cigarro da onda”). Em 1970, Golden Boys lançou disco Fumacê, cuja faixa título unia acid rock ao baião (“Tem alguém queimando coisa / Tá botando pra quebrar”). Também em 1970, Airto Moreira lançou seu primeiro disco solo, Natural Feelings, com as faixas “Xibaba (She-ba-ba)” e “Liamba” – tanto liamba quanto xibaba são nomes da maconha. 


No mesmo ano em que a Ditadura endureceu o regime com o AI-5, em 1968, Os Mutantes, lançaram “Panis Et Circencis”, de Caetano e Gil, cantando sobre a maconha fumada no Solar da Fossa, um casarão no Rio onde Caetano e outros músicos ficaram hospedado (“Mandei plantar / Folhas de sonho no jardim do solar”). Na esteira da Tropicália, os reflexos da Geração Beat, da cultura hippie, das artes da vanguarda e da luta estudantil no mundo foram fatores que, alinhados à valorização de ideais de subversão ao autoritarismo da Ditadura vigente, adubaram um solo fértil para a semeadura da Cannabis na rotina da classe média e da juventude universitária.

Ryan Lange/ Unsplash/ Reprodução


Hits enfumaçados

Jards Macalé, testemunha desse processo, lembra que houve uma expansão do uso da erva, indo além do consumo das populações marginalizadas. “Ficou uma coisa mais explícita. Apesar de proibido, na década de 1970, entrou na classe média e alta”, diz Jards. Durante esse período, descrito por ele como “aquela época de desbunde total”, Jards e Waly Salomão fizeram “Vapor Barato”, lançada por Gal Costa em 1971 e regravada por O Rappa, em 1996. 

Em 1972, a música também foi gravada pelo próprio Jards, que conta que essa é a sua única composição que cita a diamba (nome favorito de Jards para a Cannabis): “O Waly fez ‘Vapor Barato’ pensando nos dois sentidos. ‘Vapor’ é um barco, que era barato, mas também ‘vapor’ é o cara que vende [maconha]. E ‘barato’ é o que dá barato”. Detalhe: em 1970, Waly havia passado 18 dias preso no Carandiru, em São Paulo, justamente por ter sido pego com uma pequena quantidade de maconha.


O apreço pela planta era um ponto em comum entre vários grupos. Em 1995, Mamonas Assassinas estourou com seu disco homônimo, que trazia “Sábado de Sol” (“Mas que vergonha / Só tinha maconha”); no samba, Dicró lançou “Dava Dois” no disco Os 3 Malandros in Concert, e ainda veio o primeiro álbum do Planet Hemp, Usuário, bradando a legalização. Já em 1996, Chico e a Nação lançaram “Macô”, O Rappa fez “A Feira” e Mundo Livre S/A, “Pastilhas Coloridas” – todas citando a erva. No mesmo ano, Akundum fez sucesso com “Emaconhada” e Barão Vermelho regravou “Malandragem Dá Um Tempo”, hit de Bezerra da Silva: “Vou apertar / Mas não vou acender agora”.


Em 1995, Fernanda Abreu chegou com o disco Da Lata. A faixa “Veneno da Lata” e o título do álbum fazem menção ao Verão da Lata, no fim de 1987 e início de 1988, quando 22 toneladas de maconha tailandesa foram despejadas no mar, em milhares de latas que alcançaram a costa brasileira do Cabo Frio (RJ) ao Cassino (RS). “Estava meio adormecida a história, ninguém se lembrava. Nas entrevistas, tive que relembrar”, diz Fernanda Abreu. 

“Eu já tinha na cabeça este conceito da lata, da música do metal. Mas a história que ajudou a letra foi essa do verão de 1987, quando o navio Solana Star despejou um monte de latas de, reza a lenda, boa maconha. Todo mundo que experimentou falou: ‘Puts, essa maconha da lata é foda!’. E aí começou a virar uma gíria: ‘da lata’. Quando fui compor, queria falar de um som, aí fiz: ‘Swing balança o funk / É o novo som na praça / Batuque samba funk / É veneno da lata’. O ‘da lata’ vem dos dois sentidos”, conta Fernanda.



A explanação não rendeu maiores problemas a ela, a artista se incomodou mais quando estava lançando o disco Raio X (1997), que trazia “Bloco Rap Rio”, com participação do Planet Hemp. Fernanda, por sua vez, participava de “Zerovinteum”, no segundo disco do Planet, Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Pára (1997), lançado pouco antes da banda ser presa por apologia às drogas, em Brasília, em novembro de 1997. Dias após esse ocorrido, a casa de shows Palace, em São Paulo, tentou impedir Fernanda de tocar “Bloco Rap Rio”, além de ter aumentado a classificação etária do show dela no espaço. 

“Por ter conteúdos do Planet Hemp, da maconha e tal, eles pediram pra não tocar. Não fazia muito sentido. Na verdade, estavam perseguindo tudo que era do Planet Hemp. Provavelmente algum bobinho lá foi achar que estava arrebentando a boca do balão indo fazer algum tipo de censura. Mas eu até toquei”, diz Fernanda.


Como vimos, a Cannabis já havia passado pela boca de muitos artistas, mas ninguém tinha chegado perto de criar uma banda com “hemp” no nome e levantado tanto a bandeira da sua legalização. Assim, a mera existência do Planet Hemp na mídia esticou os limites do que poderia ser dito sobre o assunto. E o ano de 1997 foi chave: além do grupo ter sido preso, Gabriel, o Pensador estourou o hit “Cachimbo da Paz”, Virgulóides fez sucesso com “Bagulho no Bumba”, Rita Lee lançou “Obrigado Não”; Raimundos, “O Toco”; Pavilhão 9, “Cada Um Cada Dois”; Charlie Brown Jr., “Festa”; e Lulu Santos regravou “Chico Brito”, todas mencionando a planta. 

Após a prisão do Planet, algo mudou. Grupos de grande projeção, como o Charlie Brown Jr., por exemplo, seguiram citando a erva sem gerar maiores polêmicas em diversas músicas (“União”, “Fichado”, “Pra Mais Tarde Fazermos a Cabeça”). E novos artistas mantiveram a chama acesa na virada do milênio: em 1999, Comunidade Nin-Jitsu fez “Just”; O Surto lançou “A Hempadura”, em 2000. Já Ventania e a banda Mukeka di Rato gravaram músicas chamadas “Maconha” em 2001.  


Novas colheitas

Hoje, ao digitar “maconha” na busca de uma plataforma de streaming musical, a pessoa se depara com mais de 400 músicas que trazem o termo no seu título, boa parte no gênero do funk, que há tempos fala da planta (vide “Funk da Maconha”, do Furacão 2000, “Cadê o Isqueiro”, do Mr. Catra, e “Nunca Vendeu Maconha”, do Mc Daleste). Mas nos últimos anos, há menções à Cannabis em artistas tão diversos quanto Ludmilla (“Verdinha”), Ava Rocha (“Joana Dark”), Russo Passapusso (“Matuto”), Shevchenko e Elloco (“50 Viciados em um Baseado”), Luísa e Os Alquimistas (“Olhos de Tocha”), Black Alien (“Que Nem o Meu Cachorro”), Flora Matos (“Sonho Gangsta”), Gloria Groove (“Sedanapo”), Melim (“Maju”), Filipe Ret (“Maconha”), IZA (“Brisa”), Heavy Baile (“Maconha e Pente”) e Anitta (“Onda Diferente”). 


São reflexos de um contexto geral mais amigável à planta. A partir dos anos 2000, o debate sobre a revisão da proibição da Cannabis só avançou. Para João Donato, é questão de tempo até legalizar: “A maconha está proibida sei lá por quê. Na Califórnia, Holanda, Uruguai, todo mundo compra se quiser. É só ter supervisão e cobrar uma taxa, como fazem com a bebida. Ainda é cedo. A gente tá em 2022, daqui a 200 anos vai ser outra história”. 

João compara a planta com a sua experiência com o álcool: “Quando bebia, queria subir na janela e pular, dizia que ia aguar as plantas lá embaixo. Eu sentava na janela com as pernas pro lado de fora. Tinha umas questões estranhas, me deixava aborrecido, zangado. Era uma coisa horrível, aí parei. O álcool te deixa muito valente. É muito perigoso. E a maconha, tudo certo. Ela te deixa mais generoso, mais precavido, mais concentrado. Entre o álcool e a maconha, é 10×0 pra maconha, claro. Recomendo 100% a maconha e condeno o álcool 100%”.

“Eu não sou uma pessoa maconheira, mas tenho amigos que curtem, e acho a maconha uma droga das mais leves que têm, comparada com esses remédios tarja preta, cocaína, álcool, cigarro”, diz Fernanda Abreu: “Sempre me posicionei a favor da liberação. Não é uma apologia, é trazer essa reflexão. Acho tão atrasado o Brasil proibir”. 

“A maconha não é droga, é uma planta”, diz Jards Macalé: “E tem a coisa medicinal, se faz roupas, cordas, mil utilidades. Agora, o preconceito leva à proibição”. João Donato tem uma sugestão: “Música e maconha devia se comprar em farmácia. São remédios. Música faz bem ao espírito, a maconha faz bem à alma”.

Crispin Jones/ Unsplash/ Reprodução

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28/06/2024

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Ariel Fagundes

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