Depois do lançamento dos singles “Dentes Amarelos” e “Estaremos Lá” no final de 2023, o álbum Labirinto da Memória chegou às plataformas digitais em 12 de janeiro deste ano. O décimo álbum de estúdio do Dead Fish, apresenta recortes da história do vocalista Rodrigo Lima. Ao longo de 13 músicas, o disco apresenta uma paisagem sonora enérgica e harmoniosa, típicas do punk e do hardcore melódicos.
Após um período sem shows, ensaios e reencontros durante os anos da pandemia de COVID-19, o grupo sentiu a necessidade de se recolocar no mundo um novo trabalho de inéditas. A fagulha nasceu com Rodrigo e contou com toda a criatividade de Ric Mastria, na guitarra, Marcos Melloni, na bateria, Igor Tsurumaki, no baixo, e também do músico amigo Álvaro Dutra nas composições.
A banda está em turnê com o repertório do novo registro, que inclui uma passagem pela Europa e uma apresentação em São Paulo no sábado, 22/6, no Cine Joia. Ingressos disponíveis aqui. Na passagem do grupo por Porto Alegre em abril, convidamos o vocalista para um papo em uma loja de discos. Conversamos sobre o novo álbum e também criamos uma espécie de labirinto da memória a partir de vinis que marcaram a trajetória do músico.
O álbum foi concebido nos últimos dois anos. Já era um plano ter um novo disco de inéditas ou foi uma coisa mais orgânica?
Eu tenho meu parceiro de escrita, que é o Álvaro Dutra. Ele fez três músicas do antepenúltimo, penúltimo, e nesse álbum a gente fez uma parceria. Eu e ele estávamos desempregados, a gente só falava por WhatsApp [risos]. Pelos caras da [editora] sobinfluencia, eu descobri um cara chamado Mark Fisher, que escreveu Realismo Capitalista (2009), uma leitura importante durante 2022. Na sequência, caiu o Roteiro Para Aïnouz (2021), do Don L, na minha mão, na edição que a Noize lançou. Pensei “cara, eu preciso fazer um registro disso”. Eu fiz 50 anos. A pandemia me deu uma destruída fisicamente, e eu me sentia muito afetado por isso. Eu acho muito ruim envelhecer, estou achando uma merda o processo de envelhecimento, uma bela bosta! Falei: “eu preciso contar uma história, preciso contar a minha história, nortear até para mim mesmo”. Pra mim e pro Álvaro: o que a gente fez, o que a gente vive e o que a gente pode vir a fazer.
A grande inspiração para essa criação, a faísca, foi “Realismo Capitalista”, do Mark Fisher. Como foi o processo de expressar o que foi digerido em uma leitura sobre um assunto tão denso em música?
Eu preciso de alguma coisa que remeta à minha história! E para remeter à minha história, nada mais do que punk melódico, e hardcore melódico dos anos 1990. Os caras da banda são barulhentos, eles não estavam mais numa onda de fazer a estrutura de punk melódico que a gente fez. E eles falaram: beleza, vamos fazer! Eu fui pedindo e eles foram seguindo um roteirinho musical, e em cima disso, eu e o Álvaro começamos a escrever textos e mais textos. Ao contrário do Ponto Cego (2019), que era uma fotografia daquele momento, bem detalhada, bem na cara, o Labirinto da Memória é para dentro. Você vai buscar na tua vivência. E sonoramente, eu queria que fosse um disco de punk melódico, como eu acho que é – a grosso modo, é. E eu queria ser mais capixaba que eu pudesse.
E na parte musical, o que inspirou e foi referência pro Labirinto da Memória?
Cara, nos dois anos de pandemia, eu ouvi muito pouco hardcore. Voltei numa onda de ouvir Sérgio Sampaio, que é meu conterrâneo. Entrei numa onda de Lupicínio Rodrigues, que meu pai ouvia. E Lupicínio tem uma coisa da memória muito forte. Eu lembro que, no primeiro ano de pandemia, eu estava ouvindo um cara inglês chamado Billy Bragg, que é só voz e violão. Foi em cima dessas referências, não tinha nada em cima da escrita do punk melódico. Talvez no final, que eu fui explorar umas coisas dos Descendents, Inocentes, Cólera, que eu ouvia quando eu tinha 13 anos. Tinha mais coisas rolando, porque eu passei um ano e meio só ouvindo música, lendo loucamente, e criando minha filha. Eu ouvia as músicas dela. Ela saiu do Mundo Bita e foi cair na Anitta. Ela ama o Show das Poderosas (2013), eu ouvia o álbum de cabo a rabo com ela, dançando, e ela criando a memória dela.
Não imagino você ouvindo Anitta.
Eu também não me imaginava também [risos]. E eu ouço! E eu gosto daqueles álbuns mais lo-fi dela, menos produzidaços e tudo mais. E se agradava minha filha, eu ficava muito feliz. Ela dançava e eu dançava com ela.
Com “49”, “Aos Poucos” e “Dentes Amarelos”, a gente consegue perceber esse viés bem íntimo do álbum. Era uma necessidade olhar um pouco mais pra dentro e expressar o que estava rolando no momento?
Algumas pessoas falam que é um álbum com um quê de nostalgia. Eu falo que não, é um registro histórico. “49” é uma música sobre o meu pai, que era um funcionário público, alcoólatra, que morreu cedo. E “Aos Poucos” é aquela coisa de estar preso com uma menina de quatro anos dentro de casa, que tinha acabado de descobrir que é surda, e eu dentro da minha estrutura de honra, de punk, de cara da rua, do skate… E ela dando toda uma suavidade para aquele nosso cativeiro. Eu acho que é um registro meu, mas que fala para as pessoas da minha idade.
Labirinto da Memória é íntimo mas se conecta com o imaginário coletivo. Como foi traçar esses paralelos com o restante da banda?
Eu os convidei, porque seria muito interessante ter uma memória do Marcos na linha do trem, em São Caetano. E ele vem de outro nicho no rock. Eu queria que o Ric falasse da Mooca dos anos 1980. Por isso que tem “Avenida Maruípe”. Aquilo que a gente viveu ali é uma coisa que não é só minha. Tem gente que eu não conhecia, mas que viveu na minha vizinhança nos anos 1970, em Vitória, montando uma visão coletiva do momento. Todo mundo tem a sua avenida, tem a rua de trás, tem a casa do vizinho, tem o cara do outro lado da rua que você tinha medo porque tinha cara de mau. E tudo isso inserido numa realidade brasileira, de hiperinflação, ditadura. E tem muitas camadas que eu fui descobrindo depois do álbum pronto: alguns tons de voz saíram muito mais suaves do que em outros álbuns. Apesar de ser melódico, eu era do berro, gritava muito alto. E foi na criação do álbum, senti a necessidade de ganhar uma certa suavidade para falar de coisas difíceis, tipo Lupicínio Rodrigues.
Os discos essenciais da coleção do Rodrigo Lima:
Broncas Legais (1998), da Comunidade Nin-Jitsu: “Eu tenho que falar desse aqui. No Fórum Social Mundial de 2003, a gente veio [para Porto Alegre] e deu aquele quebra pau com a polícia. Quem salvou a gente foi o BNegão, que ia tocar na sequência. Comunidade Nin-Jitsu tocou, a gente entrou e começou a tocar e deu um pau com, como é que vocês chamam? Brigadianos! E eu acho que era esse álbum que estava tocando”.
Jardineiros (2022), do Planet Hemp, conta com a faixa “Fim do Fim”, escrita por Rodrigo a pedido de Marcelo D2: “rolou um ‘aí, Rodrigo, aqui é Marcelo’. Bom, já nem precisam saber qual Marcelo que é, né? Tinha essam, ‘Fim do Fim’, e tinha uma que ele queria que fosse uma coisa meio The Cramps, meio punk espacial caótico, para homenagear o Fábio Kalunga, do Cabeça.”
A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (1970), d’Os Mutantes: “Os irmãos tinham uma casa na minha rua em São Paulo. Sérgio Dias e Arnaldo Baptista ensaiavam por lá. E o primeiro baterista da banda, Dirceu Soares, é avô do nosso empresário André Pastura.”
Lupicínio Rodrigues ativa as memórias do pai, sobre quem compôs “49”, terceira faixa de Labirinto da Memória: “Foi o meu pai que me falou a primeira vez sobre Leonel Brizola, me deu um livro do Marx, me falou de Darcy Ribeiro, de Salvador Allende. E uma coisa que eu lembro muito é do colégio eleito, em 1985, e meu pai torcendo muito para que passassem as Diretas. A gente foi nas manifestações em Vitória, e eu lembro dele vendo que não passou. Foi a última vez que eu vi meu pai chorar. E ali ele parou de falar de política. Eu vi tudo isso ainda criança. Ele ouvia Tim Maia, Lupicínio, Noel Rosa, e minha mãe era hippie maluquinha que gostava de Secos e Molhados, Roberto Carlos.”
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