Os shows que fizeram a mistura da Virada Cultural 2015

22/06/2015

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Victor Petreche

22/06/2015

Nunca consegui virar na Virada. Achei até que esse ano, por ser o primeiro que cobriria, alguma força do além fosse capaz de me fazer resistir ao puta frio do cacete que estava a noite e madrugada de sábado; e ao meu sono, sempre mais forte que 1kg de taurina pura injetada na veia do braço. Mas não rolou não, o sono e o frio vieram e só consegui ver, em presença, alguns shows na noite de sábado e outros poucos no domingo.

Comecei a Virada no sábado à noite indo para o palco da Avenida Cásper Líbero. Cheguei lá para ver a delicinha da Dona Onete, coisa mais fofa do mundo, com sua “Jamburana” e tremedeiras mil. Acontece que cheguei uma hora antes e, com o palco vazio, corri para o outro lado da estação da Luz, onde pude acompanhar o Hurtmold e seu maravilhoso post-rock repleto de instrumentos inusitados (muitos produzidos pelo Grupo Uakti, que fazem e catalogam esses instrumentos) e sonoridade brasileira. Foi um belo show para iniciar a Virada. O Hurtmold consegue produzir certa brisa na mente. O som continua em você, dando uma reverberada, ao longo da noite, adicionando texturas experimentais a qualquer show que você for em seguida. Parece que, ao ouvir um show deles com atenção, passamos a prestar atenção em tudo que é sonoro perto da gente. Andar pela rua depois se tornou uma ótima experiência.

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Após o Hurtmold, segui para o palco Júlio Prestes. Tinha desistido de Dona Onete para acompanhar os 30 anos de axé de Daniela Mercury. E, rapaz!, quanto axé essa mulher tem. Nem a maneira sempre carinhosa da polícia de apartar confusões, na base do bate-papo entre cassetete e baço, spray de pimenta e olhos, foi suficiente para acabar com o brilho de nossa Madonna. A Daniela pulou e cantou o show inteiro, acompanhada de um belíssimo bailarino vestido trajando uma longa saia rodada que esvoaçava e girava como um guarda-chuva de frevo apenas vermelho. Tirando “Nobre Vagabundo”, todos os hits foram cantados pela plateia que lotava o belíssimo cenário noturno, com o relógio da estação da Luz vigiando do alto as pessoas que não queriam saber de convenções como horário. Rodas para desconhecidos dançarem, amigos que tinham seus próprios passinhos, pessoas sozinhas pulando ao som de “Dandalunda” ou “Maimbê Dandá”, cada um presente no show fazia sua festa particular. Quando Márcia Castro entrou para cantar “Eva”, a plateia foi abaixo, assim como nos inúmeros discursos realçando a importância de eliminarmos o racismo e reconhecermos e lutarmos pelos direitos dos negros no país. Em outras palavras, belíssimo show que me fez sair quase suado (era impossível suar de verdade naquele frio) e com dores nas pernas.

Quando o show acabou, nos dirigimos (estava numa belíssima turma, outro grande ponto para a Virada ser mais legal que um hang loose pessoal do Bruno de Luca toda manhã ao acordar) para o Vale do Anhangabaú, onde Wilson das Neves mostraria porque ele é o vovô do samba que todos queremos clamar paternidade (existe “netidade”? Era isso que queria dizer). Vimos absolutamente milhares de pessoas das mais diferentes andando tranquilamente pela cidade, como deveria ser absolutamente todos os dias. O centro precisa ser ocupado pelas pessoas, não dá para aceitar que aquilo logo mais possa virar um berço gentrificador da cidade, cheio de iniciativas empresariais e especulações que terminem por expulsar os moradores de lá. Mas tudo bem, não me debruçarei nesse assunto, apesar de sua urgência. De qualquer forma, foi sensacional andar pelas ruas e ver que carros com sistemas de som capazes de acordar uma Coréia do Norte inteira brigavam com os palcos de igual para igual, reunindo pessoas em torno de várias Viradas paralelas que iam ocorrendo concomitante à oficial.

Chegando no Vale do Anhangabaú, pegamos Wilson das Neves em seu auge. Como ele é fantástico. Entre um maravilhoso samba e outro, sua interação com a plateia era de uma franqueza e fofura que apenas dava vontade de invadir o palco e ficar abraçando aquele senhor. Sobre a marofa pesada que subia o ambiente: “já fumei muito disso aí. Na minha época eu era bom nisso, mas, agora, aos 79 anos, parei.” Ao ver uma galera fazendo open padê no Anhangabaú, emenda: “cheirar só cangote de nega.” Quando um ser humano cheio de fetiches (categorias: chuva dourada, voyeurismo, sexo em público) resolveu urinar do alto do viaduto para quem estava na plateia, o sambista soltou um espirituoso “ixe, tá chovendo.” Até nas piores situações Wilson das Neves demonstra simpatia, otimismo e aquela malandragem que sempre arranca, na velocidade da luz, uma tirada otimista da mais pura sabedoria sobre qualquer adversidade.

O fim do show de Wilson das Neves foi coroado com um jantar tardio. Como ainda não tinha comido nada, apenas almoçado, a fome estava relativamente grande, e a série de barracas de pastel que enfileiravam o Vale do Anhangabaú não só se mostrou como a única solução possível, como também a melhor de todas. Emendei dois pastéis, roubei um tiquinho de caldo de cana dum amigo, paquerei a coxinha mais densa do universo (segundo cálculos visuais e puro chute matemático, arriscaria 425g cada coxinha), fiquei satisfeito. Haveria, até o próximo show da noite, uma hora e meia de espera, mas tudo chega uma hora, assim como o momento de encarar o Fábio Júnior.

Sempre calcado no pieguismo romântico necessário para aquecer a mais fria noite, Fábio Júnior é a encarnação musical da tainha, do vinho e do muito sexo. Com hits românticos como “Só você” e “Alma gêmea”, o cantor derreteu corações também ao ler um poema de sua filha Cléo e ao subverter toda uma tradição musical brasileira ao realmente tocar Raul, com “Tente outra vez”.

A madrugada já ia começando a dar seus suspiros finais, muitas pessoas já tinham de fato ido embora, mas, antes aurora do domingo esticar seus braços dourados, a hora mais escura da noite ainda era capaz de reservar algumas belíssimas surpresas, como o eterno Alceu Valença, que cantaria no Arraial de Inezita Barroso, na praça da República. Com sua simpatia costumeira e um repertório para ninguém botar defeito, passando por Luiz Gonzaga e canções próprias, a plateia simplesmente só podia agradecer por estar ali nesse ~grande encontro~ (risos) entre Alceu e a cidade de São Paulo.

Às sete da manhã era a vez de Tom Zé desejar um bom dia tal qual um “Galo Galo” gullartiano para a plateia que se chegava. No palco Barão de Limeira, que já tinha sido contemplado com um excelente show perdido por mim de Alzira E (nota mental: não perder um próximo show dela), pessoas se juntavam para ver a genialidade sempre efervescente desse misto de fauno e Dionísio que é o Tom Zé. Deus do caos, Lóki brasileiro, Tom Zé parecia exercer um controle místico sobre a plateia através da desordem e do inusitado, da experimentação e do abrir de horizontes sempre que possível, levando todos a voltarem seus olhares para dentro e despertarem esse ímpeto criativo e louco que temos e nos faz seres humanos. Que homem.

Duas horas depois, no mesmo palco, era a hora e a vez do excelente Curumin se apresentar, junto aos músicos do projeto The Bob’s, formado integrantes do Bixiga 70 e outras bandas. O mashup de brasilidade do cantor paulista, que vai com maestria e fluidez do brega ao funk, passeando pelo hip-hop, carimbó e rock, mostra-se nítido em todo seu cantar e jeito. Independente do que toque, poderia ser um especial Curumin canta As Quatro Estações (1999), de Sandy & Júnior (grande álbum, por sinal), que o talento do cantor se torna tão latente que é quase palpável. Dito isso, aproveitem aqui o #ad: a terceira edição da NOIZE Record Club é do álbum Japan Pop Show (2008), do cantor.

Quando acabou o Curumin, a melhor opção no momento era sair correndo para o Teatro Municipal e acompanhar a diva máxima Fafá de Belém cantar seu primeiro álbum, Tamba-Tajá, de 1976, na íntegra. Foi um show de arrepiar, tanto quem assistia como a própria cantora, que, emocionada, ambientou todo o palco como se fosse de 39 anos atrás, além de contar com os músicos que a acompanham desde aquela época. Foi um show nostálgico e, na voz poderosa da cantora, catártico. Abrindo o jogo e, com a risada característica, assumiu que havia décadas que não cantava algumas daquelas músicas, por isso estava nervosa. Fafá, você não precisa ficar nervosa com nada. Tá tudo certo e você é maravilhosa. Outro belíssimo show.

Depois do almoço, rumamos para o Largo São Francisco para ver Anelis Assumpção e seus Amigos Imaginários. Me apaixonei umas cinco ou seis vezes no show. Saí apaixonado e ainda estou. Anelis é magnifíca no palco. Possui uma claridade em sua voz que não se encontra tão fácil por aí. De acordo com um casal de amigos, ela é a cantora mais articulada dessa nova geração, você consegue entender cada sílaba proferida, tudo é ouvido e penetrado em seu corpo como um mantra: fácil de aprender, profundo e hipnótico. O controle da cantora sobre a plateia também é notável. Chamou um menino para subir ao palco e dançar com ela em um momento da mais pura simpatia. E quando dois virotes (nome carinhoso aos zumbizinhos da Virada), vestindo aquele streetwear patrocinado pelo papai, começaram a importunar seguranças implorando para subirem também ao palco e a contaminar o astral do lugar com extrema chatice, a cantora simplesmente realizou os desejos de ambos com extrema elegância. Ambos tiveram seus momentos, subiram no palco, cantaram, “se expressaram”, como disse a cantora, e baixaram a bola. Pareceram dois animais domesticados que, enquanto famintos, causavam. Depois, com o mínimo de carinho e atenção de seu mestre, aceitaram a condição servil que estavam e se acalmaram. Foi fascinante ver esse exercício de controle mental da cantora, que, enquanto mostrava seus dotes psíquicos e persuasivos, encantava todo o resto do público com o repertório de seus dois álbuns. Vale dizer também que os Amigos Imaginários de Anelis também são sensacionais. De Bruno Buarque na bateria a Lelena Anhaia na guitarra, passando também por Saulo Duarte e Edy Trombone, a banda inteira é um dream team de músicos. (Devo também dizer que grande parte dessa paixão se deve ao fato do momento que a cantora desceu para dançar conosco. Momento registrado afetivamente que vou guardar pra sempre aqui, do lado esquerdo do peito.)

O show de Anelis acabou às 17h30min e, de lá, partimos correndo para o Caetano Veloso. Era uma distância considerável e precisávamos ser rápidos, já que a lotação era inevitável, e pleiteávamos um lugarzinho tranquilo para acompanhar o show. Não foi possível. Acabamos todos nos separando e justamente no encerramento da Virada estive longe de meus bravos companheiros de Virada. Victor Petreche, o fotógrafo que ilustra essa resenha, entrou na área de imprensa. Eu não consegui, pois, enquanto me encaminhava para a entrada, fui condensado em um bloco de cimento humano e ali, na lateral do palco, fiquei imobilizado, incapaz de tentar qualquer movimento brusco com o perigo de rachar tão robusta união de apaixonados pelo cantor baiano. O show, focado nas músicas de seu último trabalho, Abraçaço (2012), começou com a lindona “A Bossa Nova É Foda”, e seguiu alternando hits e músicas do mesmo. No final, uma saraivada de grandes sucessos para simplesmente fechar a Virada como se Caetano fosse o arco-íris, o pote de ouro e o Leprenchaun tropical ao mesmo tempo, conseguindo ser toda uma mistura de sonhos, ânsias, desejos e angústias. Amores que tinham tudo para dar certo, mas não foram com “Eclipse Oculto”; a tristeza e desejo de mudança em “Você Não Entende Nada”; o clamor e exultação da cidade com “Sampa”. Tudo encaixado perfeitamente e cantado a plenos pulmões por todos, principalmente por Talita (talvez com H em algum encaixe silábico, mas nunca saberei), uma fã fervorosa que ficou atrás de mim e me forneceu uma experiência surround no show de Caê. Fantástica o fervor e a autoconfiança de Talita, que, mesmo quando trocava as letras, não perdia o ritmo e balbuciava o erro no sentido exato da canção. Seu tom não era tão similar ao do cantor, mas tudo bem. Estar na Virada é também abraçar para todos os tons possíveis de uma mesma música. Foi realmente um belo encerramento.

A Virada Cultural é um dos eventos mais maneiros que podem existir, não só em São Paulo, mas em qualquer lugar do mundo. Colocar, por 24 horas, uma cacetada de palcos espalhados pela cidade inteira com shows e espetáculos de absolutamente todos os tipos, para todas as pessoas, é de se respeitar. Já ouvi de artistas que a Virada acaba tendo um efeito negativo, pois o que era para ser apenas a cereja do bolo de uma política cultural inclusiva, acaba sendo, na verdade, o bolo inteiro, ou um pedaço importante dele, já que grande parte da verba de cultura é destinada ao evento, deixando o resto do ano meio vazio. Não sei, confesso que pesquisei pouco sobre o assunto, mas, apesar da importância desse ponto, que subjaz toda a Virada Cultural, os dois dias do evento, a noite de sábado e o domingo quase todo, são muito importantes. Talvez esteja sendo otimista, mas a Virada me parece um instrumento importante para misturar pessoas que estão distantes na cidade e da cidade, torná-las de certa forma mais conscientes e engajadas com a política e o espaço de São Paulo. É, no fim, um ótimo exercício de civilidade para todos nós. Como diria Bell Marques: valeu, foi bom, adeus.

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22/06/2015

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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