.45 | Cumbia em três tempos Pt. 2

06/05/2015

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Stéfanis Caiaffo

Por: Stéfanis Caiaffo

Fotos: Stéfanis Caiaffo/Arquivo Pessoal

06/05/2015

Na primeira parte desta pequena trilogia sobre a cumbia já tinha avisado que neste mês viria um relato mais detalhado da minha viagem à parte atlântica da Colômbia, e aqui está. Não quero me perder, de início, em uma série de observações geográficas, históricas e culturais, porque o foco da coluna, anunciado desde seu início, é a Música Negra Universal e a cultura do vinil, mas creio que se façam necessários alguns passos de introdução. Eles nos levarão adiante no sentido da cumbia propriamente dita, ou das cumbias – porque um panorama plural é certamente a melhor forma de tentar dar conta deste complexo cenário musical.

Alguma história

*

Tirando todas as digressões e estórias sobre a política, o narcotráfico e os paramilitares, coisas que valem muito papo numa mesa de bar, mas vão ficar pra depois, o fato que mais me chamou a atenção como marinheiro de primeira viagem ao país vizinho é o grau de musicalidade presente na vida cotidiana do colombiano médio. Brasileiro que sou, acostumado a achar que nosso país é extremamente musical, qual não foi o meu choque ao perceber que é virtualmente impossível caminhar durante cinco minutos por alguma rua de qualquer das três cidades colombianas em que estive sem ouvir ao fundo um quase onipresente fundo musical. E não só: um quase onipresente fundo musical tipicamente colombiano. A música, para o colombiano médio, não é simplesmente algo ordinário, mas um orgulho em específico e algo a ser plenamente apreciado e compartilhado ao longo de todo o dia, e sempre. Eu acrescentaria também: em um volume que os brasileiros não suportariam dentro de seu sentido de vizinhança. Não estive em bairros da elite branca porque isso não condiz com meus interesses na vida, então concedo que eles podem eventualmente aparecer como uma bruta exceção.

Fora a grande presença da música, é realmente impressionante o fato de que é especialmente a música feita no próprio país que ressoa diariamente nos alto-falantes que existem nas casas, nos comércios e nos milhões de táxis que circulam pelas cidades, sejam as champetas eletrônicas – espécie de reggaeton colombiano, febre atual – ou a música mais tradicional. Experimente dizer a qualquer colombiano que você foi ao seu país para pesquisar sua música e o resultado é imediato: o laço se estabelece de forma instantânea e rigorosamente todos têm algo a dizer e algo a indicar. Tão forte quanto isso no sentido de criar um laço imediato, nesta minha experiência, somente o futebol, esta praga que nos identifica como brasileiros em qualquer lugar que a gente vá. Falando sobre pragas brasileiras, resta pensar aqui sobre as razões pelas quais, neste nosso Brasil tão musical, vamos cada vez mais acostumados a ter como fundo aquilo que muitos consideram ser a parte mais sórdida da indústria fonográfica internacional, uma vergonha – filtrada por mil compressores – para quem se orgulha tanto da pretensa força de sua própria música popular.

Retomando: os espanhóis chegaram a Cartagena, primeiro ponto de ancoragem na América do Sul hispânica, em 1501. O norte da Colômbia – ou sua parte atlântica – nos remete, em termos históricos, ao início da colonização do continente sul-americano e isso marca uma diferença importante. A Colômbia é um país de extrema diversidade: tem sua parte atlântica, sua parte pacífica, sua parte insular, sua parte amazônica e ainda avança sobre a Cordilheira dos Andes. Cada uma destas partes guarda em si tradições muitos específicas e grande parte delas é intimamente relacionada ao tipo de mistura étnica que ali se produziu. As culturas majoritariamente indígenas provenientes da Cordilheira, por exemplo, são absolutamente diferentes das culturas tipicamente negras que dominam a ilha de San Andrés: são feições típicas, tradições típicas, ritos típicos e até línguas próprias que, em muitos pontos do país, ainda são mantidas e cuidadas à exaustão; também são gêneros musicais muito diferentes, consequentemente.

Assim, acho que uma primeira coisa certa é que a cumbia não é uma música tipicamente colombiana, mas uma música típica da Colômbia atlântica e criada ali em função das misturas específicas da parte caribenha do país. Em San Andrés, por exemplo, onde a colonização é tipicamente negra, é marcante a influência inglesa e também grande a proximidade com a Jamaica. Bob Marley é rei e o reggae dá o tom; no interior do país já dominam o cenário alguns ritmos mais rurais como o vallenato, com uma sonoridade muito semelhante a gêneros que encontramos no Prata, bem calcados no uso do acordeon e bem menos dançantes do que o som caribenho do norte; dos Andes emergem sons de cordas e flautas que nos remetem ao trabalho de muitos daqueles latinos que vemos e ouvimos a ganhar a vida com música de rua e CDs artesanais em grande parte dos centros das maiores cidades do Brasil.

Tarde/noite numa verbena de bairro na periferia de Barranquilla.

Tarde/noite numa verbena de bairro na periferia de Barranquilla.

A cumbia não teria nascido na Colômbia atlântica por acaso: como falei na primeira parte, é justamente nesta região do país que as misturas entre as populações indígenas originais, os colonizadores espanhóis e os negros trazidos ao longo da trata histórica são mais marcantes. Basta pegar um voo de Bogotá a Cartagena ou Barranquilla e descer no aeroporto para perceber este fato. Como morador da cidade de Santos, inclusive, sou quase forçado a dizer que a aparência física e até o verve comportamental da população desta região da Colômbia são muito semelhantes as dos tipos que, no Brasil, conhecemos como caiçaras: as populações praianas que habitam a região litorânea que vai do sul do Estado do Rio de Janeiro ao norte do Paraná. O estabelecimento do porto de Cartagena ali foi estratégico desde sempre, isso porque a cidade fica na foz de dois grandes rios – o Magdalena e o Mompox – que ajudaram na interiorização da Colônia. Foi ao longo destes rios que os primeiros quilombos se estabeleceram, fazendo fluir toda uma criatividade expansiva na música local, amplamente baseada na mistura da música dos negros fugidos e dos índios recalcitrantes. Além disso, vim a descobrir in loco que Cartagena, Puerto Colômbia e atualmente Barranquilla foram três dos principais portos para o norte da América do Sul e Caribe desde sempre. Isso e a proximidade recente com o Canal do Panamá fizeram com que muita música – e instrumentos – passasse e chegasse à região: o acordeon, por exemplo, é uma presença firme na música popular colombiana, inclusive em alguns formatos da cumbia, mas não é tipicamente espanhol; a música africana pós-colonial também ocupa lugar de destaque no gosto popular, assim como calypsos e outros gêneros caribenhos cujos traços reconhecemos também na cumbia.

Nada acontece por mero acaso.

A cumbia

A cumbia? Calma… porque outro mito se desfaz logo que a procura começa a se estabelecer localmente: chegar a qualquer colombiano iniciado no assunto e perguntar sobre a cumbia, de forma genérica, praticamente significa nada ou quase nada. É quase a mesma coisa que, no Brasil, algum estrangeiro dizer que gosta de samba: são tantos os subgêneros do samba entre o samba-canção e o samba-enredo, por exemplo, que até mesmo um amante do gênero pode detestar algum dos outros correlatos – vide a relação que muitos apaixonados pelo partido alto estabelecem com o pagode. Mais: além de ser o berço de alguns subgêneros daquilo que genericamente conhecemos como cumbia, a Colômbia atlântica é berço de dezenas de outros estilos e/ou subestilos musicais, tantos que a um tal ponto da viagem eu parei de tentar levantar os nomes e de entender a que sonoridade cada um aludia. Pequenas diferenças instrumentais e rítmicas, diferentes origens, bem como sutis misturas entre dois ou mais estilos já justificam a fundação de uma nova escola, e esta parece mesmo ter sido uma das brincadeiras mais divertidas ao longo do desenvolvimento da música local. Para quem quer ir adiante neste interesse, indico o primeiro volume da série Colombia y su Música, de José Portaccio Fontalvo: o livro é editado pela bogotana Editora Bicentenario e o autor parece ser uma das referências local no assunto, com pelo menos 11 historiografias publicadas sobre a música do país. Elenco alguns destes gêneros ao final desta pequena parte de texto.

Sobre gêneros e subgêneros da cumbia, alguns apontamentos práticos:

Son palenque: esse não é propriamente um subgênero da cumbia, mas um nome genérico que podemos atribuir a uma série de gêneros de origem principalmente negra que formam a base rítmica daquilo que viria a ser a cumbia. Como já falei na primeira coluna, o termo palenque é o equivalente local para quilombo. Ainda que muitos dos gêneros que podemos entender como Son palenque não sejam assim tão semelhantes à cumbia, é ali que se enraíza sua história, pois é consenso dizer que foi da força dos tambores africanos que veio a batida marcante presente na cumbia, talvez sua característica mais reconhecida por todos – sobre flautas, gaitas e acordeons falarei logo a seguir. Portanto, se o seu interesse remete às origens, vá atrás de gêneros como a champeta original, o mapalé, a chalupa, o lumbalu, o sexteto e o bullerengue, pois todos são gêneros tradicionais e até mesmo rituais das comunidades negras que se estabeleceram no correr dos rios Magdalena e Mompox. Creio que seja possível dizer que aquilo que é chamado de Son palenque seja o mais afrocolombiano que podemos encontrar por lá. Muitos dos conjuntos dedicados ao Son palenque inclusive foram formados nos quilombos colombianos e depois migraram para as cidades, caso de um dos mais famosos e batizado justamente assim: o Conjunto Son Palenque, formado em San Basílio. Embora originalmente esses gêneros fossem baseados tão somente em tambores e voz, ao longo dos anos o Son palenque também foi incorporando muitos traços e instrumentos da música caribenha, o que – para um não iniciado – ajuda em muito na confusão geral.


Exemplo do que se chama de Son palenque, gênero precursor da cumbia.

Gaita: gaita é o nome dado a outro dos instrumentos típicos da Colômbia, uma espécie de flauta de madeira cuja origem remete às populações indígenas – ou aborígenes, na expressão deles. Feita de uma madeira porosa e oca para formar uma boa caixa de eco, a gaita é fechada numa das extremidades por cera de abelha e recebe, para a embocadura, uma pluma. Extremamente artesanal, ela pode ser encontrada em duas versões, a gaita macho e a gaita fêmea, e em grande medida os combos que a utilizam as sopram num jogo de perguntas e respostas que fica muito bonito. A Gaita, como gênero, não é propriamente cumbia aos ouvidos dos colombianos, embora eu precise confessar que a mim soa muitíssimo parecida. Para eles, ela é considerada um dos gêneros precursores da cumbia também, assim como um dos gêneros precursores do porro – em si, também considerado um dos precursores da cumbia. Prioritariamente instrumental, embora já tenha incorporado elementos vocais ao longo dos anos, a gaita é provavelmente uma das melhores expressões das primeiras fusões entre as músicas indígena e negra no norte da Colômbia. Diz-se que surgiu na região de San Jacinto e talvez não seja à toa que, quando perguntados, pesquisadores e colecionadores locais indiquem como um dos principais exemplos do gênero a banda Los Gaiteros de San Jacinto.


Um clássico da cumbia na interpretação de Los Gaiteros de San Jacinto.

Porro: sua história, até onde pude pesquisar, remete à cidade de San Pelayo e a importância desta cidade na história da música colombiana deve justificar o fato de que muitos conjuntos, inclusive o que durante muito tempo acompanhou o popular Pedro Laza, assumem para si o nome de pelayeros – que hoje também pode significar ‘populares’. O porro é outro dos ritmos considerados precursores da cumbia e não só: fala-se que ele também seria o precursor de outros dos gêneros colombianos como a puya e o fandango. Ao longo de sua história, porém, ele chega mesmo a parecer cumbia em si, pelo menos para os meus ouvidos iniciantes. Acho que aqui vale a citação porque, ao procurar referências e acervo no caldeirão da música colombiana, a palavra Porro vai aparecer à sua frente muitíssimas vezes, provavelmente até mais do que a palavra cumbia. Então preste atenção nisso e, se vale como exemplo, ouça este Porro da Banda 20 de Julio de Repelón como exemplo.


Banda 20 de Julio de Repelón e as sempre presentes referências à Costa.

Cumbia soledeña: dá-se o nome de Cumbia soledeña ao subgênero que remete à cumbia mais tradicional, que é feita com a instrumentação oriunda exclusivamente das culturas negra e indígena, ou seja, com o naipe tradicional de tambores e as famosas flautas de millo. Essas pequenas flautas feitas artesanalmente com um pedaço de cana ou bambu foram e são extremamente importantes no desenvolvimento da música colombiana e, em si, muito parecidas com o que no Brasil conhecemos como pife, aquela flauta que já fez de Carlos Malta um dos principais nomes da nossa música instrumental e que é central em alguns gêneros da música do nosso nordeste. Embora grande parte dos compositores e intérpretes colombianos acabe por flertar com mais de um dos subgêneros da cumbia ao longo da carreira, o que contribui ainda mais na confusão geral dos iniciantes, indicações de pesquisadores e colecionadores colombianos me sugerem que um exemplo preciso do que seria a Cumbia soledeña: a banda La Cumbia Moderna de Soledad.


La Cumbia Moderna de Soledad numa versão de clássico de Fela Kuti.

Cumbia instrumental: como também já falei na primeira parte da trilogia, as emissoras de rádio locais tiveram um papel fundamental na história da cumbia. Diga-se de passagem, a cultura de rádio ainda é muito forte na Colômbia e muitas das emissoras tradicionais, como a famosíssima Emisora Atlántico, ainda seguem transmitindo diariamente e podem ser ouvidas também pela internet. Fica a dica. As orquestras que estas rádios tinham em seus estúdios acabaram por cumprir um papel fundamental no desenvolvimento e projeção da cumbia ao introduzir em seus combos alguns instrumentos europeus, principalmente instrumentos de sopro. Isso fez com que ritmos até então considerados sujos demais para as grandes audiências brancas ganhassem mais espaço e tomassem o rumo do interior e do estrangeiro. Este desenvolvimento também acabou dando oportunidade para o pontapé inicial na extremamente larga e produtiva indústria fonográfica colombiana. Muitos maestros de formação acabaram por dedicar uma vida inteira ao gênero e às suas orquestras, e talvez o mais famoso deles – patrimônio humano da Colômbia – seja também a melhor indicação a título de exemplo: Lucho Bermúdez.


A orquestra de Lucho e um de seus principais sucessos.

Cumbia sabanera: sempre tive curiosidade acerca dos termos sabanera e/ou sabanero, muito utilizados em grande parte do material que já havia encontrado na minha procura sobre a música colombiana. Chegando no país, falando com as pessoas, mas principalmente pegando a estrada, tudo ficou bem mais claro: sabanera, obviamente, refere-se à sabana, ou à savana, à paisagem de um interior colombiano que é muito semelhante a algumas das paisagens da savana africana – vegetação baixa e castigada pelo sol forte, entrecortada por árvores vistosas e com sombra abundante, típica do norte. Além disso, os termos sabanera e sabanero aplicam-se hoje também para designar algo que é bastante popular, bastante difundido não entre as elites, mas entre os trabalhadores, originalmente trabalhadores campesinos. A Cumbia sabanera, então, fala de um subgênero que nos remete aos interiores campesinos da Colômbia e que incorpora neste processo o acordeon, instrumento muito presente em outros dos gêneros rurais mais difundidos. Dez entre dez colombianos indicam a música de Andrés Landero como o melhor exemplo da Cumbia sabanera e ele parece ser, dentre os nomes da cumbia, um dos maiores, senão o maior.


La Pava Congona, um dos maiores sucessos de Andrés Landero.

Seria possível tentar fazer aqui um extenso dicionário de outros ritmos, mas talvez baste dizer novamente que algumas pequenas modificações ou algumas fusões da cumbia com outros ritmos, assim como diferenças de procedência local, tudo isso acabava também por gerar, na história da música colombiana, outros subgêneros: o merecumbé, por exemplo, é a mistura do merengue com a cumbia; a pata-cumbia é a incorporação no contexto da cumbia de construções vindas do pata-pata de Miriam Makeba, ela em si uma celebridade na Colômbia; já o cumbión é uma cumbia mais rápida e o cumbiambé é um cumbión ainda mais rápido. Para quem quiser ir adiante ou achar que estou me escondendo de tratar o problema com mais rigor, reproduzo aqui abaixo tão somente o número de gêneros que encontrei elencados no livro que indiquei acima. E acrescento que este primeiro volume da trilogia Colombia Y Su Música trata tão somente dos gêneros da Colômbia atlântica.

Veja só: fora o merecumbé, a pata-cumbia, o cumbión e o cumbiambé, que descrevi rapidamente acima, e também aqueles gêneros dos quais já falei a propósito do Son palenque, se você quer conhecer um panorama geral dos ritmos do norte você precisará procurar também por maestranza, puya, tambora, parrandín, garabato, chandé, rumbalé, jalao, chimbirlín, son de negros, fandango, pilón, abozado, paseo, vallenato, danza, vals, sonsonete, parranda, tamborera, maya, chiquichá, tuqui tuqui, mece mece, caracolito, capricho, cumbalé, batacha, emeché, patuleco, jalaíto, paseaito, brinquito, rebuscaito, meniaito, pasebol, trabalenguas, tumbason, tumbelé, romanchá, pompo, son cienaguero, ri-ra, raspa, corrigua, cachumbambé, macumba, chunga, chucuchú, puyanga, bolokin, calentado, teru teru, teconté, huelelé, tableteo, taconiado, pupalé, malanga, carnaval, sirindongo, cucamba, tumbao, raspacanilla, cimbanchá, sua sua, aire congo, merecongo, baile bravo, parampa, cumgay, golpe garrote, tumbadera, maracumba e champeta.

Isso sem falar que a cultura salsera na Colômbia atlântica também é fortíssima.

Vai encarar?

Os discos

Não bastasse a profusão de gêneros e subgêneros, a força das emissoras de rádio no norte da Colômbia e o enraizamento da música na cultura popular local, o país teve uma surpreendentemente forte indústria fonográfica baseada em selos nacionais e isso certamente contribuiu – e muito – na história da difusão da cumbia (ou das cumbias, enfim). Se é famosíssimo o catálogo do selo originalmente cartagenero Discos Fuentes, espécie de Fania colombiana cujos discos – principalmente aqueles do cobiçado selo amarillo – são objeto de desejo de dez entre dez interessados na música de lá, não podemos ficar por aí. Ao longo da minha pesquisa por lá, encontrei inúmeros outros selos menores que têm um catálogo também muito interessante e que faz valer uma pesquisa de repertório mais detalhada: da mesma Cartagena temos também o ótimo catálogo do selo Discos Curro, mas originários de Barranquilla, que parece mesmo ser a meca local para os discos, temos os selos Felito, Sonolux, Tropical, Carrizal, Machuca e Costeño, por exemplo. E a coisa não se encerra por aí: Ondina, INS, Discos Victoria, Vergara, Reva e Santa Marta também são etiquetas de prestígio e, segundo os colecionadores locais, hoje em dia até mais procuradas que os amarelos da Fuentes. Poderia seguir citando outros selos aqui e não precisaria nem procurar muito, bastaria percorrer aos poucos os discos que eu mesmo trouxe da minha viagem e eles começariam a aparecer, e a aparecer, e a aparecer. Mas faça por si este exercício também.

Visita a Martín Leal, do picó La Salsa de Puerto Rico

Visita a Martín Leal, do picó La Salsa de Puerto Rico

Fora deste universo da cumbia, como falei, também é bastante difundida no norte a cultura salsera, embora a cidade de Cali, mais ao sul, seja considerada sua verdadeira Meca no país. Ainda que o norte não seja tão ligado à salsa quanto outras regiões, você certamente vai conseguir encontrar muita coisa do gênero nestes mesmos selos que falei ou ainda em outros especialmente dedicados ao estilo. Interessante dizer também que a própria Fania cortava discos localmente e que a proximidade com a Venezuela, onde a salsa também é objeto de amor, traz às suas mãos muitas prensagens venezuelanas de clássicos do estilo. Os portos de Cartagena, Puerto Colômbia e Barranquilla, sucessivamente, também cumpriram um papel fundamental na chegada de discos de outras localidades à região, principalmente na época em que a cultura picotera – a cultura dos sound systems locais, sobre a qual farei uma coluna específica – era mais forte e atuante. As histórias contam que marinheiros que vinham ao norte da Colômbia de navio, sabendo do amor dos locais pela música em geral, traziam das mais diferentes partes do mundo discos para usar como moeda de troca. A cada nova chegada de navio, filas e filas de melômanos se formavam para comprar, trocar e pesquisar material musical inédito para seus próprios sistemas de som comunitários, isso porque repertórios inéditos contavam muito numa espécie de batalha de cavalheiros entre os diferentes picós. Foi assim que, aos poucos, não só a indústria fonográfica colombiana foi crescendo e enchendo a Colômbia de discos como também o mercado de discos no norte do país recebeu ao longo de décadas sucessivas uma impressionante quantidade de edições caribenhas, africanas, europeias, sul e norte-americanas, coisas que também podemos encontrar ao longo da uma visita.

A cultura dos discos, portanto, foi bastante difundida por lá. Embora o contexto nas novas champetas eletrônicas tenha feito com que muito da produção musical tenha migrado para o formato digital, como em todas as outras partes do mundo, eu me arriscaria a dizer que a cultura dos discos ainda é muito importante por lá. Exceto a geração mais nova, no geral apontada como bastante desinteressada pela música mais tradicional diante da nova música eletrônica dos grandes picós, no geral as pessoas seguem vendo o disco de vinil como um formato a usar, e por isso muitas famílias mantém suas coleções ao longo dos anos. Isso não indica uma tendência geral ao colecionismo mais louco ou feroz que muitas vezes nos aparece cá e lá, mas o fato de que é natural que as pessoas tenham discos e toca-discos, principalmente em faixas etárias acima dos 30 anos. Os atendentes do hotel onde fiquei hospedado em Cartagena, por exemplo, mantinham coleções particulares com os discos que eles mais gostavam e isso lhes era absolutamente natural. Creio que a gente possa dizer que, na Colômbia, embora as prensagens também tenham diminuído a ponto de quase se encerrarem e que muita gente tenha largado os discos no lixo, como no Brasil, não é exatamente o caso a ideia de que “o vinil voltou” – acredito que por manterem uma relação cordial e interessada com a história de sua própria música e porque as condições de compra não conduziram o país ao consumismo da vez, o disco sempre esteve ali no interior de casa, entre amigos e com a família.

Interior da famosa Discolombia, em Barranquilla

Interior da famosa Discolombia, em Barranquilla

Há uns 10 anos atrás, quando a cumbia – ou a música colombiana em geral – não estava no foco das lentes internacionalmente e parte da população se desfazia dos vinis como também ocorreu aqui, as histórias contam que você conseguia nas principais lojas de Barranquilla praticamente qualquer disco de Fruko Y Sus Tesos, por exemplo, por algo em torno de mil pesos colombianos. Este valor, hoje em dia, ainda que traduzido em reais, é ínfimo e irrisório. Na época, com a moeda deles ainda mais desvalorizada pela crise econômica que viviam em meio a inúmeras tensões políticas, isso valia ainda menos. Histórias locais dão conta de que alguns dos primeiros “gringos” a descobrirem este oásis discográfico partiam de Barranquilla não com centenas, mas com milhares de discos a cada vez. Um amigo local conta a história de um europeu que ele acompanhou pela cidade há cerca de uma década e que, ao final de cada dia, precisava ir ao aeroporto para despachar em direção a seu país de origem o porta-malas cheio de discos que havia comprado ao longo da tarde. Bem diferente dos cerca de cem compactos e dos trinta e poucos LPs que consegui trazer para minha coleção pessoal, algo da condição real de compra que temos lá hoje em dia.

O amigo colombiano disse que, na época, ele achava que europeus como esse eram simplesmente loucos ou ricos ao extremo, mas que hoje – quando muitos já foram, os discos sumiram e um simples Lucho Bermúdez, que existe em profusão, pode custar uns quarenta ou cinquenta mil pesos colombianos – ele entende perfeitamente o que ocorria. Digo isso por um motivo simples: se você quer ir à Colômbia atrás de discos, tenha em mente o seguinte: aquelas edições clássicas vão lhe custar valores compatíveis com edições clássicas no mercado usual brasileiro para discos nacionais, talvez um pouco menos. Além disso, os discos mais cobiçados dos catálogos locais já não são muito fáceis de achar, isso para não falar abertamente do termo difícil. Descarto o termo impossível porque a situação econômica da Colômbia hoje em dia já é bem melhor, mas com um bolo de dólares no bolso tudo aparece, acredite. Se você dispõe de um bolo de dólares, o que não era nem é exatamente o meu caso, bem, vá à luta pelo que há de melhor. Senão, contente-se com um diggin’ moderado, mas honesto e bacana.

No geral, ainda que desejasse fazer aqui o mesmo que fiz depois de minha viagem para Nova Iorque, não vou nem indicar lojas em específico, nem criar um mapa que as localize nas cidades de Bogotá, Cartagena e Barranquilla. Posso dizer que você vai encontrar algumas lojas no Centro de Bogotá, também vai encontrar algumas no Mercado Central de Cartagena e muitas no Centro antigo de Barranquilla. Posso também dizer que você certamente vai encontrar algumas coisas bacanas em algumas destas lojas e que uma visita à Discolômbia, loja mais famosa do cenário de Barranquilla, vale muito pelos discos, pelos papos e pelo turismo em si: qual amante dos discos nunca se imaginou metendo as mãos naquelas montanhas de 7 polegadas que eles guardam no sótão da loja? Na Discolômbia, em específico, vá especialmente se você procura o catálogo da Felito, já que a loja – antigamente uma cadeia de lojas, hoje somente um único endereço – ainda é gerenciada pela linhagem dos fundadores do selo, o que faz com que você ainda encontre praticamente todos os seus lançamentos em estoque e em estado de novo.

Ademais, porém, se você quer os discos e não o turismo, a experiência ordinária de loja não vai te levar muito adiante. Sugiro fazer como eu fiz: faça contato com gente local com tempo suficiente e deixa a cargo deles não somente a indicação de onde ir, mas também uma procura inicial. Grande parte dos melhores discos que consegui no país vieram diretamente da mão de alguns amigos que fiz em conversas sinceras na internet, pessoas que fizeram de bom grado (e algum ágio não exatamente comunicado) um link com colecionadores locais e trouxeram até mim títulos que eu havia solicitado de antemão e que nunca encontrei em nenhum balcão: Michi Sarmiento, Julian Y Su Combo e Fruko Y Sus Tesos, por exemplo, mas também compactos de Lucho Bermúdez, muita salsa da Sonora Dinamita e de grande parte daqueles que usei como exemplo ali dos subgêneros ali em cima. Se para tanto você precisa de apresentações, me mande mensagem inbox e terei muito gosto em fazer os contatos necessários caso você seja uma pessoa legal e merecedora, afinal a rede é feita para se manter quente e todos devemos mesmo é trabalhar em prol da difusão da música.

unto com o amigo Fabian numa tarde de papo em Barranquilla

unto com o amigo Fabian numa tarde de papo em Barranquilla

Poderia seguir, mas – de momento – fico por aqui. Inclusive acho que já me estendi demais pruma única coluna. Na terceira parte deste trilogia, que vem a seguir, algo sobre a cumbia contemporânea. Aguardemos!

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06/05/2015

Stéfanis Caiaffo a.k.a. Dr. Caiaffo é residente da Festa VooDoo, em Porto Alegre, e da festa Bossa Negra, em Santos.
Stéfanis Caiaffo

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