Foto: Ariel Fagundes
Guri Assis Brasil não faz jus ao apelido pelo qual ficou famoso quando tocava com a Pública. Seu trabalho é maduro, tanto que hoje ele trabalha simultaneamente acompanhando a banda de artistas como o Otto, tocando o projeto La Cumbia Negra e também sua carreira solo. Amanhã, ele irá mostrar seu disco Quando Calou-se a Multidão (2013) no Ocidente e, na sexta, o La Cumbia Negra sobe ao palco do Opinião (ambos bares de Porto Alegre) como parte do festival El Mapa de Todos. Aproveitamos a deixa para conversar com ele sobre seu passado, presente e futuro. E os leitores de fora do Rio Grande do Sul que nos perdoem, mas, quando dois gaúchos conversam, é difícil usar outro pronome além do “tu”.
Em primeiro lugar, quero te perguntar sobre a Pública. A banda acabou? Não saiu muita informação sobre isso.
Não cara, a banda não acabou. Na verdade, a gente se mudou pra São Paulo muito tempo atrás e, há mais ou menos dois anos, o Pedro [Metz, vocal] teve que voltar pra Porto Alegre pra resolver algumas coisas pessoais e a gente acabou dando um tempo de show. Nesse meio tempo, o Pedro compôs músicas novas e a Pública começou a gravar um disco novo, que seria o quarto disco da banda. Mas eu não participei desse disco, me dediquei mais a minha carreira solo como compositor e cantor e tocando guitarra com outros artistas. Acho que foi um momento bom pra cuidar da minha vida e sair um pouco desse lance de banda.
Pois é, tu tem acompanhado vários artistas.
É, o Otto é com quem eu tô tocando mais aqui em São Paulo. Eu toco também com o Bruno Barreto, que é um pernambucano maravilhoso. Há pouco tempo também fui chamado pelo Pupilo, da Nação Zumbi, para fazer um show especial com o Lirinha e a Céu tocando músicas do repertório dos dois com uma banda só. Isso tá me enriquecendo muito como músico. Toquei também com o Di Melo há pouco tempo, que já é de outra geração… Como músico isso tá sendo importantíssimo. Eu até deixei um pouco de lado o meu disco pra me dedicar mais a isso nesse ano e no começo do ano que vem. É bom né cara, eu tô aprendendo muito, tem pessoas novas que eu tô conhecendo e isso acaba afetando até as futuras composições, além das coisas que eu tô fazendo hoje em dia.
Não deve ser fácil ter que pegar músicas de um cara como o Otto, por exemplo, que tem sua própria trajetória de vários anos. De alguma forma tu tem que incorporar isso, né?
É, é legal demais. Eu entrei pra banda do Otto através do Fernando Catatau, que é guitarrista do Cidadão Instigado e, quando ele não podia fazer algum show, me botava no lugar dele com o Otto. Agora ele tá se dedicando ao disco novo do Cidadão Instigado e aí eu tô fazendo mais shows. Pra mim tá sendo incrível porque eu gosto de tocar músicas dos outros, e sempre gostei de tocar com artistas que me dessem liberdade de criar em cima da sua música. Todos artistas com quem eu toquei até hoje me deram liberdade total pra criar em cima das músicas deles, obviamente seguindo as linhas de riffs que são importantes pra música.
Eu li que tu já tinha 26 anos quando compôs a primeira música, é verdade?
É verdade, com letra e melodia foi sim. Eu já tinha feito várias coisas instrumentais e parcerias com outras pessoas. Há pouco tempo fiz um parceria com o Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado, que agora tá com um lance dele. A gente tava tocando na casa dele e eu toquei uma coisa que eu tinha feito com 14 anos, era um época em que eu escutei tango pra caralho, Piazolla demais, que era o que me influenciava naquela época. Só que era instrumental. Eu até já tinha escrito umas coisas em inglês, sabe? Mas não era minha língua, eu fazia em inglês pra me esconder. Escrever em português, que é tipo ficar nu na frente das pessoas, eu nunca tinha feito. E aí eu comecei a fazer uma música atrás da outra de uma maneira que eu nunca tinha imaginado. Porque eu sou muito crítico em relações a palavras… E eu nunca tinha achado o ponto certo. Tô descobrindo até agora, na verdade.
E essa primeira música em português que tu compôs entrou no disco?
Entrou, se chama “Shangai”. É a penúltima música do disco, uma baladinha folk.
Tu tá trabalhando em coisas que ficaram de fora do disco?
Não é que ficaram de fora – até tem umas três músicas que eu fiz na época do disco – só que agora eu tô indo pra outro lado, que é completamente diferente do primeiro disco. Acho que tá ficando muito mais brasileiro, até por influência das pessoas com quem eu tô tocando ultimamente. Agora tá meio difícil voltar a fazer um folk só com violão e dois acordes, sabe? Tô indo pra outro lado e começando a quebrar a cabeça pra arranjar isso de um jeito que não fique da água pro vinho, que não mude drasticamente. Acho que a voz é a única coisa desse novo ciclo que vai ser mais semelhante. Em questão rítmica e de letra e de instrumental, provavelmente vai mudar muito. Nem sei o que vai acontecer direito. Tem que ensaiar e ver o que vai sair.
Mas tu já tá compondo pro próximo disco?
Cara, eu tô fazendo um monte de música. Esse é um vício que toda Pública tinha. O Pedro tinha uma ideia de fazer discos que tivessem uma concepção toda parecida, mas agora eu entrei numa outra onda, conheci uma negada que compõe pra caramba. E eu tô nessa, eu não vou compor fechadinho, sabe? Vou fazer um monte de música e na hora de gravar vou escolher as que eu acho que devem entrar ou não. Tô fazendo um monte de parcerias que talvez nem entrem no meu disco, podem ir pro disco da outra pessoa, não sei, mas não quero me prender a nada.
Mas tu tá trabalhando ainda o Quando Calou-se a Multidão, né?
Eu faço alguma coisa, cara. Fiz a Virada Cultural, faço uns lugares menores aqui em São Paulo… Mas na sexta vou tocar no Opinião com outro projeto que eu tenho, o La Cumbia Negra, com o Gabriel Guedes, o Miranda, o Guilherme [Almeida, baixista] da Pública, o Guerra, que toca bateria na Fresno. A gente montou uma banda de cúmbia e, aproveitando que íamos tocar no El Mapa de Todos, marquei o show de amanhã. É praticamente a mesma banda, só vão mudar as músicas. Eu aproveitei que todo mundo ia estar junto e resolvi marcar, mas não é uma coisa que eu esteja trabalhando muito. Eu vou levando pra não deixar cair no esquecimento, mas não é nada que eu esteja focadíssimo. Acredito que futuramente eu vá me focar mais na minha carreira como artista solo.
E sobre esse lance da cúmbia, de onde veio esse referencial?
A cúmbia foi um lance que eu escutei desde pequeno, eu nasci na fronteira com o Uruguai, né. Só que eu não gostava quando era adolescente, eu gostava de guitarra, de rock, cumbia pra mim era muito brega. Porque realmente, a cumbia tocada no Uruguai é muito brega, e não que eu não goste, eu acho legal hoje em dia. Mas aí o Guedes se mudou pra São Paulo e ele falou: ‘ó, eu tô escutando muita cumbia’. E eu falei: ‘bah, eu já escutei cumbia demais’! Aí gente sentou um dia e fez um monte de música. É divertido, essa é a hora de juntar os amigos pra tomar uma cerveja e se divertir. A gente não tá trabalhando pra fazer uma banda que vai vingar e tocar pelo país e ganhar e dinheiro, é diversão mesmo.
Então foi pelo Gabriel Guedes que tu relembrou essa herança da cúmbia.
Foi com o Gabriel. Ele me mostrou a cúmbia peruana, que chamam também de a chicha, que é com guitarra, meio psicodélica. É uma onda que rola há muito tempo no Peru, que é diferente da cúmbia da Colômbia, da Argentina. A da Argentina vai mais pro reggaeton. Ele me mostrou e eu achei bem legal, pra mim é até bem fácil compor cúmbia porque é que nem o blues, né? É uma tradição. Tu tem que estar perto das raízes pra ser um blueseiro de verdade mesmo. Tu tem que pegar da fonte, entende? E como eu convivi até os dezesseis anos na fronteira com o Uruguai, pra mim é natural fazer cúmbia. É bem tranquilo, é mais difícil fazer minhas músicas do que fazer cúmbia. É tudo vivência. A cúmbia é parecida com muitas coisas que tem por aí e eu tinha isso tudo na minha cabeça e nem sabia. Já tava ali, era só tocar.
Tu acha que o Quando Calou-se a Multidão é um disco de rock? Faz sentido classificar um disco como sendo de “rock” hoje em dia? Porque “rock” é uma palavra cada vez mais vaga, tem cada vez mais tipos diferentes de rock que não tem nada a ver entre si.
Eu não sei, cara… É que, pra mim, o “rock” é o rock clássico. Led Zeppelin, AC/DC, isso pra mim é rock. Hoje em dia, sinceramente, eu não vejo mais por aí. Até existe, mas é uma coisa tão difícil de vingar hoje porque hoje tudo se mistura. Tu vai lá e pega a guitarra do Led Zeppelin junto com a bateria do xote aí, mistura tudo e sai uma coisa interessante. Eu acredito que hoje em dia o rock clássico tá muito fraco, desgastado. Esse rock que o Cachorro Grande fazia no primeiro disco, aquele rock clássico do The Who e Stones, tanto é que nos últimos discos eles tão indo pra outra onda. De rock clássico, eu acho que eu não consigo citar 5 bandas novas pra ti, eu não conheço. E se eu não conheço é porque não chega nas pessoas. Inclusive eu acho que hoje a onda mesmo é misturar. No primeiro disco eu nem quis botar muita guitarra porque queria sair um pouco desse estigma de guitarrista. Mas não consegui! Botei só umas guitarrinhas ali. No próximo eu vou ligar o foda-se e, se eu fizer um samba, vai ser com guitarra pra caralho! Não tô nem aí. Mas respondendo a tua pergunta, eu acredito que ele esteja mais pro folk do que pra um disco de rock.
E o teu disco tem um lado meio melancólico…
Totalmente, essa coisa de término de relação, sabe como é… Era o momento que eu tava passando, e talvez tenha sido muito bom pra escrever minhas músicas. Porque até então eu não tinha muito o que falar. Eu já tinha vivido muita coisa, mas nada que tivesse me motivado a escrever. Esse lance do Pedro ter voltado pra Porto Alegre também me incentivou a escrever porque as músicas da Pública eram como se fossem minhas, mesmo sem eu ter escrito uma palavra sequer. Eu acho difícil compor. Esse lance da melancolia, eu ia dizer que é uma coisa meio do Sul, com todo lance da milonga e do frio e de tu olhar pro horizonte e ver uma planície que não tem fim, mas sei lá. Tem bandas do Rio de Janeiro, onde tem sol e praia, que também são melancólicas pra caralho. Eu sempre gostei do Tom Jobim, do Piazolla, coisas que são melancólicas. É triste, mas eu acho bonito, e eu não sou depressivo por causa disso. Acho bonito. Acho que a melancolia tem sua beleza.
Sim, às vezes o maior sofrimento é o que inspira a maior obra.
Total. Por mais dançante e por mais feliz que seja minha música ela sempre vai ser um pouco melancólica. Eu nunca vou conseguir fugir disso, seria até querer me enganar. Eu gosto das coisas que são melancólicas, eu acho bonito. Sei lá, o samba, por exemplo, é o ritmo melancólico mais feliz do mundo. É muito triste, sabe? Mas ao mesmo tempo às pessoas ouvem pra dançar. E tomam um fogo, e choram e dançam. Eu acho bonito. Eu sou feliz fazendo música melancólica.
Que maravilha. E como é que vai ser o show de amanhã? Vai ter participações do Hélio Flanders e do Pedro Metz, né?
Vai sim. O Hélio tá morando a uns 20 metros da minha casa, nós somos vizinhos aqui em São Paulo. Eu conheci ele há muito tempo mesmo, desde as primeiras vezes em que eu vim pra São Paulo. A gente nem morava aqui, eu vinha com a Pública uns sete anos atrás e a primeira banda que a gente conheceu aqui foi o Vanguart. A gente saía junto pra tocar… Lembro que a primeira vez que a gente tocou com o Vanguart eles já nos botaram pra dentro da van, foi bem legal. Então a gente é muito amigo. Aí chamei ele pra vir pra Porto Alegre e ele curtiu. A gente vai fazer umas músicas minhas juntos, vamos tocar Vanguart também… E ele tinha comentado: “Pô, a gente podia tocar Pública, né?”. Ele é um fã declarado a banda. Aí eu falei: “Ah, se for pra fazer uma Pública, sem o Pedro eu acho que não faz sentido”. Aí convidei o Pedro, ele achou massa, e a gente vai fazer. Faz provavelmente uns dois anos que eu não divido o palco com ele, então vai ser massa. Vai ser bem emocionante. Vai ser uma noite memorável.