Esta matéria foi publicada originalmente na edição #64 da revista Noize, lançada em janeiro de 2014.
Entrevista: Leo Felipe e Tomás Bello
Autorizada ou não, a biografia de Tom Zé renderia a história perfeita de um herói da arte, trama com episódios de genialidade, radicalização, ruptura, incompreensão, isolamento, redescoberta e consagração. É uma história, no entanto, sem fim: este inquieto senhor segue, como se diz por aí, dando a “cara à tapa”.
Tom Zé como um herói também seria uma ironia digna da carreira de um artista que sempre usou o humor como ferramenta para desmontar a realidade em sua volta. Em 1973, no radical e bem humorado LP Todos os Olhos, ele já cantava, frustrando expectativas dos que esperavam dele engajamento a causas heróicas: De vez em quando todos os olhos se voltam para mim, de lá de dentro da escuridão, esperando e querendo que eu seja um herói.
Na música que dá nome ao disco, Tom Zé diz que é inocente, fraco, incapaz da violência ou de seguir mandamentos. Tom Zé é imprevisível. Tão imprevisível que, quarenta anos depois, mesmo contra a própria vontade, acabou se transformando no herói – graças à rebeldia que o manteve afastado do panteão da MPB por tantos anos. Tom Zé é hoje um artista do mundo, comparado pela imprensa internacional a gigantes como Frank Zappa, outro mestre do humor e das composições complexas. No Brasil, é referência confessa para uma nova geração de músicos com quem tem estabelecido um fértil diálogo, gente como Tulipa Ruiz, Lucas Santtana, Tatá Aeroplano, Kiko Dinucci, Mallu Magalhães, Rodrigo Amarante e Emicida.
Todos os olhos se preocupam mais com os cus alheios do que com os próprios?
Não sou proctologista.
O humor parece ser cada vez mais uma forma bastante eficaz de comentar a realidade – vide o sucesso dos novos humoristas. O compositor brasileiro ainda é um complexado que se leva a sério demais?
Essa pergunta é tão legal que eu posso simplesmente assinar em baixo, tanto da primeira quanto da segunda parte dela.
Parece que neste momento artistas e intelectuais estão convocados a se manifestar sobre o tema das biografias. O senhor chegou a se posicionar nessa questão?
Ha, ha! achei o assunto tão difícil de opinar que resolvi desistir de ter direito a biografia.
O senhor está sempre um passo à frente?
Já houve tempo em que pensei isso, em particular. Mas agora, se eu fosse extremamente vaidoso, diria que um dedo à frente seria o bastante (o que já é muita complacência). O correto é dizer que o que me salva é a consciência precisa de que estou um quilômetro atrás.
O que faz a música estar em constante transformação? Ou o senhor não crê que ela esteja passando por tantas transformações assim?
Porque toda a geração tem de compreender seu tempo para fazer a antítese dele (plagiando Moholy-Nagy).
O senhor é um compositor de letras inteligentes, estruturas musicais e linhas de pensamento não tão convencionais, o que talvez até o torne um pouco incompreendido em alguns momentos. O senhor se sente isolado em um país como o Brasil?
Não se trata de estar “isolado”. Talvez em outros países haja um compartimento maior da sociedade que se interessa por algo fora do establishment. Eu me lembro de que em 1960, quando cantei pela primeira vez na televisão, o IBGE informou que o analfabetismo no país chegava a 55%. Hoje é claro que isso não prevalece, mas a gente também não pode se apressar tanto, “para não queimar etapas”, como gostam de dizer os queridos comunistas.
O senhor ainda tem contato com David Byrne? Como vai a carreira no estrangeiro?
David me mandou recentemente o manuscrito da tradução de seu novo livro sobre música e atividade musical. Um precioso levantamento da história da gravação sonora e da influência desses meios até na composição de canções. O livro em inglês já está à venda nos Estados Unidos e disponível na amazon. Creio que toda escola de música muito terá a lucrar adotando-o em seu currículo. Minha carreira no exterior continua progredindo como um sonho.
Dentre todas as possibilidades, por que escolheu a música como principal forma de arte para se expressar?
Que boa ideia perguntar isso! Principalmente nesses últimos discos, como Tropicália Lixo Lógico (2012), me pergunto se não seria mais fácil explicar as ideias e teses em um livro. Mas agora é tarde, não tenho fôlego para mudar de vertente.
As questões colocadas por Caetano e Gil em fins dos 1960 ainda dão conta de nossa realidade cultural?
A Tropicália já foi oficialmente encerrada por Gil e Caetano em 1969.
Qual o próximo tema de seus comentários musicais? A música tem mesmo essa função de cutucar a ferida?
A música pode ter essa função de cutucar a ferida. Mas na Bahia há um provérbio que diz que passarinho que canta muito caga no ninho. Além disso, estou convencido de que quem fala mata sua própria ideia.
Em que pé está a música brasileira?
Acho que não está no pé. Está pra cima da cabeça. Ezra Pound afirma que quando um país começa a escrever mal, é quase certo que logo mais não poderá governar-se. A juventude com que tenho trabalhado me dá uma consistente esperança, uma boa expectativa. Estive perto da Trupe Chá de Boldo, da Filarmônica de Pasárgada, d’O Terno, de Tatá Aeroplano, de Kiko Dinucci – olha, eles são fortes. No caso de Emicida, acho que ele é um poeta que dá voz a todo um estrato da sociedade. Como em nossa cultura a canção tem se mostrado um vigoroso meio de informação e sendo uma arte que transita intensamente, creio que, quanto ao Brasil, Ezra pound não tem com que se preocupar.
O senhor é constantemente citado como enorme influência (e com imensa reverência) por diversos músicos da nova geração. Por que acha que isso acontece? E como se sente em relação a isso?
A coisa mais simples fala mais do que um discurso: sinto alegria. Quanto a por que isso acontece, também fico admirado. E me pergunto se teria alguma coisa a ver com o fato de praticar mais rebeldia do que música.
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