Como Liniker pegou o impulso de novos ventos para traçar as piruetas de seu voo solo

03/07/2023

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Rafael Rocha

03/07/2023

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 117 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Indigo Borboleta Anil, de Linikerem 2021.

Entre as tonalidades azul e violeta, o arco íris guarda o anil, um tipo intenso de azul escuro. Mas além de nomear a cor, essa mesma palavra é usada para descrever a tintura extraída das plantas do gênero Indigofera, especialmente a Indigofera suffruticosa, popularmente conhecida como anileira ou índigo. 

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Com seu uso documentado de forma milenar na África, Ásia, América e Europa, o anil do índigo encontra-se na forma de uma pedra ou pó azul e é considerado a substância para tingir tecidos mais antiga do mundo. No Oeste do continente africano, espalhadas por países como a Nigéria, o Senegal e o Mali, existem culturas fortíssimas, como a ioruba e a tuaregue, dedicadas a diversas expressões da arte da tintura com índigo. 

Hoje, o anil ainda é amplamente usado na produção têxtil mundial, mas, desde o início do século XX, com o desenvolvimento da indústria química, a maior parte dele é sintética, e não mais extraída das plantas. Vale lembrar ainda que, em ritos das religiões de matriz afro-brasileira, o índigo, chamado também de uáji, é usado para limpezas espirituais ou pinturas corporais. E não parece casual que Gilberto Gil tenha homenageado a planta/cor/tintura na sua canção “Índigo Blue”.

O nome de batismo do álbum de estreia da trajetória solo da Liniker, de forma sutil, evoca tudo isso, pois é um disco altar, em homenagem constante a quem (e ao que) veio antes. Desenvolver um olhar atento às ancestralidades, em contato direto com as próprias memórias e raízes da artista, foi uma das grandes buscas desta obra. 

A presença emblemática de Milton Nascimento, por exemplo, tem muito a ver com isso. O samba e o pagode, que se inserem aqui e ali no som do álbum, também podem ser lidos por essa ótica, pois trazem ao trabalho muito das vivências antigas que Liniker teve com sua família em sua cidade natal, Araraquara (SP).  

Foi lá também que, em 2014, ela conheceu a banda Os Caramelows, com quem começou a cantar e tocar profissionalmente pela primeira vez. Do sucesso viral da sua canção “Zero”, em 2015, passando por sucessivas turnês nacionais e internacionais e a gravação de um EP e dois discos completos com o grupo, tudo aconteceu de forma muito rápida, intensa e dinâmica. No início de 2020, quando foi anunciado o fim do projeto Liniker e Os Caramelows, a ideia era fazer ainda uma turnê de despedida no meio do ano, incluindo shows na Austrália e Nova Zelândia.

Mas pouco após o anúncio, a pandemia do novo coronavírus veio e mudou os planos. Praticamente todos os shows do planeta foram cancelados e Liniker viu-se, como muites de nós, isolada em sua casa, de quarentena. Sem saber o que fazer, o violão veio ao colo, como um afago, e surgiram daí canções – uma série delas – e o repertório de um álbum cheio começou a se desenhar. 

O exercício de preencher o caderno onde as novas letras foram escritas acabou tornando-se uma espécie de cartografia íntima, e nele foi desenhado um mapa. O papel ganhou vida e, através dos traços de caneta de Liniker, passou a revelar dimensões paralelas do tempo, como um oráculo que reserva em si mesmo resposta sobre o passado, o presente e o futuro. 

A elaboração dos ciclos pautou diretamente esse processo de concepção do disco, que pontua uma transição. Não restam dúvidas de que inicia-se, a partir daqui, uma nova fase na vida dela. Compreender seu mistério e conseguir degustar os sabores do tempo é uma arte minuciosa e Liniker tem refletido bastante sobre como gozar as horas. 

No interior paulista, onde estava morando, foi possível mergulhar fundo nessas reflexões. Lá, também havia muitas borboletas e, de tanto observá-las, ela anotou em seu caderno: Indigo Borboleta Anil. Então, um espasmo de certeza percorreu seu corpo, conduzida pela corrente elétrica da intuição, e Liniker soube imediatamente que havia encontrado o nome da obra que estava criando.  

Desde o ventre do lar, germinou-se uma alquimia. Após um saudável recolhimento, Liniker agora expande o seu corpo artístico, desenhando, atuando como protagonista da série Manhãs de Setembro. E cantando muito alto, pra todes ouvirem. Como uma borboleta azul gigante, que rasga o casulo para voar no céu, ela chegou.  

Como está a sua vida agora? Como está a sua rotina? 

Olha, Ariel… Eu acho que está tudo nessa incerteza. Por mais que eu tenha lançado um disco, é muito traumático, até triste, ter lançado um disco e não ter feito um show ainda. Não ter visto a resposta do público quanto a isso. Não estar na estrada em turnê. Eu acho que a gente, enquanto artista, perdeu muito mesmo, energeticamente, do palco, das pessoas. Como isso me nutre… É muito doido estar a um ano e meio sem cantar ao vivo vindo do fluxo que eu estava antes. 

Então, acho que estou muito ainda nesta esperança do futuro e de o que vai ser 2022, se de fato vamos… – por mais que as coisas já estejam voltando, eu ainda tenho bastante medo. Eu ainda sinto que eu preciso dar uma segurada, até pra entender como voltar, sabe? Porque a pandemia também desacostumou a gente. Eu acho que muitos gatilhos vieram nesse sentido, e é importante saber como se recolocar também. 

Pra mim, é importante seguir a minha intuição. Mas o que eu posso falar é da resposta digital que eu tenho visto dos fãs e das pessoas que têm ouvido esse trabalho. Foi uma recepção muito calorosa, uma recepção muito afetiva. Eu sinto que as pessoas estavam esperando por esse disco, mas eu estava esperando muito mais. 

Quando eu vejo as versões [do público], quando eu vejo os comentários, quando eu vejo tudo o que tem saído relacionado ao disco, as pessoas falando sobre, eu sinto como foi importante pra mim ter intuído esse disco só meu. Ter esse disco composto com tempo. Olhar para o meu trabalho de uma forma generosa, de uma forma atenciosa mesmo. Partindo do Eu, partindo das minhas provocações, partindo das minhas experiências pessoais. 

E ao mesmo tempo essa ansiedade, essa vontade de estar ao vivo, de estar presente, de ver como é que vai ser esse show com a minha nova banda completa, com essa nova estrutura de trabalho. Mas eu acredito que, no tempo das coisas, tudo vai se ajeitando. E por mais que eu esteja ansiosa, eu tenho certeza de que o melhor está sendo preparado e, às vezes, quando a gente espera, a surpresa vem mais gostosa.      

Sei que, com a pandemia ainda presente, fica muito difícil de prever isso, mas já existem planos de uma turnê ou algo assim? O que você poderia falar?

Alguma coisa se pinta já para o ano que vem [2022], mas ainda nada fechado, tudo muito… Eu e minha produção, a gente está alinhando tudo com o que sai de notícias sobre a covid e o que a OMS tem indicado enquanto protocolo. Mas eu espero que, em 2022, já se tenha pelo menos alguns shows mais seguros pessoalmente.

Por nós estarmos neste momento em que ainda não se pode trabalhar presencialmente o disco, abriu-se espaço pra que você pudesse se dedicar a outras atividades? Houve algo que surgiu dessa brecha? 

Eu acho que o que surgiu dessa brecha, por mais doido que seja, é o tempo mesmo. Eu acho que o tempo mudou. Então, eu pude me envolver em outros projetos, eu pude olhar para outras vontades e entender esses caminhos para poder seguir e experimentar.

A atuação já era uma coisa que veio bem antes da música na minha vida, antes de ser cantora eu já era atriz e sempre quis fazer cinema, sempre quis fazer projetos audiovisuais. E aí, nesse sentido da pandemia e desse tempo, eu pude me envolver em um projeto com bastante tempo, com bastante mergulho, que foi o Manhãs de Setembro (2021).

E foi muito importante para mim, neste processo de estender o meu corpo artístico. De não ser só cantora e compositora e empresária, mas também ser atriz, também ser desenhista, e estar desenhista neste momento. Acho que são camadas de envolvimento artístico que o tempo me trouxe. Está me trazendo, e eu estou entendendo como lidar com isso. 

Eu lembro muito de quando vi você pela primeira vez, e do estouro que foi “Zero”, e é incrível ver como hoje você está em um outro lugar. Faz muito tempo já que você não é “fenômeno”, é um dos grandes nomes da música brasileira atual. Como você avalia esse processo e como se sente sobre isso?

Eu acho que eu estou construindo uma carreira baseada muito na minha verdade e baseada muito no que eu quero cantar. Muito arraigada na presença mesmo, de [sentir] o que é ser uma artista independente neste Brasil. Nesse Brasil transfóbico, nesse Brasil racista, nesse Brasil de um desgoverno, nesse Brasil de um genocida. 

Então, eu sinto que eu estou construindo um lugar onde eu consiga também aproveitar, sabe? Da minha trajetória. Não ser só uma artista que estou dando, mas, dentro dessa minha entrega, eu também estou aproveitando. Eu também estou sentindo passo a passo dessa carreira e estou respeitando cada fluxo. Olhando para o meu momento, arriscando um pouco, me recolhendo um pouco pra entender, mas muito viva. 

Acho que o meu trabalho, desde o nascimento dele, vem de uma explosão muito grande. Principalmente, por esse boom da internet, por esse boom do que foi a minha trajetória com Liniker e Os Caramelows, e, agora, do que é esse meu momento solo e este futuro. Mas eu sempre fui muito verdadeira com o que eu estava sentindo, sempre fui muito atenta ao meu processo. 

Acho que, dentro de uma carreira artística no Brasil, é muito fácil, muito corriqueiro principalmente, a gente ver pessoas que estão no estrelato, mas ao mesmo tempo estão em uma tristeza interna, porque não conseguem aproveitar. Porque o mercado é uma coisa violenta, porque a indústria é uma coisa que invalida nossa trajetória. 

Eu não vou conseguir fazer isso [mudar] sozinha, talvez seja uma coisa que se faça nas outras gerações para além da minha, mas eu quero conseguir aproveitar o meu trabalho. Eu quero conseguir aproveitar as minhas conquistas de uma forma onde artisticamente eu não me sinta sugada. E entendendo esse fluxo de como é que eu consigo me nutrir do meu trabalho e sentir que eu estou fazendo algo não só para os outros, mas para mim também. 

Acho que esse disco é um presente nesse lugar. Acho que é o meu disco mais pop, dos três discos lançados, mas é um pop, claro, com uma intenção de chegar em outros lugares. [O disco novo] também é uma coisa que eu quero usufruir. E quero aproveitar desse meu momento, do que eu construí, sabe?

Quando começou o processo do Indigo Borboleta Anil?

Eu acho que o processo do Indigo Borboleta Anil começou em 2018, quando eu anunciei internamente para Os Caramelows a minha vontade de viver outras coisas. Nesse processo, eu fui entendendo o que eu queria cantar, para onde eu queria ir… E aí eu comecei os encontros com o Julio Fejuca, que é um dos produtores do disco, e a gente começou a arranjar algumas músicas minhas no violão. 

E essas músicas do violão foram ganhando corpo até que eu fui convidada pelo COLORS [A COLORS SHOW, famosa série de vídeos da plataforma musical alemã COLORSxSTUDIOS] para gravar, “Presente” foi a música que eu gravei no COLORS. E aí veio a pandemia. E, nesse processo da pandemia, sem saber pra onde ir, sem saber o que fazer, eu comecei a compor muito e a tocar violão. E aí a gente se juntou, o Gustavo Ruiz, o Fejuca e eu para produzir este disco. Então, a produção bruta mesmo dele, de mergulho, começou em 2020, em março, logo no primeiro mês da pandemia. 

Pela primeira vez, você assinou como produtora do álbum. Qual era a procura, a intenção sonora de vocês no disco?

A minha intenção, na verdade, era que esse disco fosse um disco meu. De mim para mim. E que, ao mesmo tempo, eu conseguisse me reconectar com coisas da minha família, como o samba, o samba rock, até o hip hop, que não que fosse uma coisa que necessariamente a minha família ouvia, mas é uma coisa da minha cultura. 

Esse é um disco de música preta mesmo e de música preta com excelência, com arranjos muito bem descritos, com orquestras presentes, que é o caso da [Orkestra] Rumpilezz e da Brasil Jazz Sinfônica, com a Jennifer Campbell tocando harpa, com o Milton Nascimento sendo um feat… E de eu estar escrevendo com a minha rede de amigas compositoras estas duas músicas que são em parceria [“Diz Quanto Custa” e “Baby 95”]. 

Mas eu queria dançar com esse disco. Eu queria que fosse um disco que eu conseguisse escutar para além do lançamento, para além de ouvir as versões da mix e da master, e conseguisse dançar. Eu queria dar play no meu disco, ouvir e conseguir aproveitar.  

E eu acho que o fato de ser produtora, nesse sentido, me colocou muito a par de tudo. Então, eu sei cada detalhe que aconteceu nesse disco, de acompanhar todos os dias de mix, de acompanhar todas as refeituras de master, de acompanhar todos os dias de gravação, de estar ali no estúdio de Zé Nigro com todos músicos gravando os instrumentos e dando a intenção de pra onde eu queria que fosse. Essa assinatura enquanto produtora, não só como cantora e compositora, trouxe uma propriedade, nesse lugar de trabalho solo, que eu estava precisando me apropriar artisticamente. 

Como foi a busca de equilibrar esse lado pop, acessível, dançante, com algumas temáticas super densas e delicadas que são abordadas no álbum. Por exemplo, a morte trágica do menino de cinco anos Miguel, que caiu de um prédio em Recife por desleixo da patroa da sua mãe?

Eu acho que a narrativa do disco é muito convidativa no sentido dramático. Ele começa falando sobre uma cachorra e termina com um grito de vitória. Eu sinto, Ariel, que o Brasil sempre exige que, quando pessoas pretas, ou pessoas trans, e pessoas compositoras ou cantoras vão fazer seus discos, a gente sempre precisa partir para um lugar de tristeza e para um lugar de militância. 

Não que eu não esteja militando. Não que falar sobre a morte de Miguel não seja um grito de raiva e ódio. Mas, ao mesmo tempo, eu queria me permitir, nesse disco, acessar um lugar de alegria que, muitas vezes, não me deixam. 

Então, talvez, essa seja o caminho aí entre esse anarquismo e o pop, de exigir também uma alegria e uma felicidade enquanto cantora e compositora, de conseguir gozar o meu trabalho, por mais que eu também fale de pontos e situações tristes e drásticas. 

Acho que só a vontade de fazer um disco onde eu dançasse e o escutasse com alegria, já é um caminho de fazer essa mescla, de como ser militante e como estar no pop. Acho que só de partir por esse desejo, eu já sinto que isso é uma carta dada. 

Por fim, queria lhe pedir para contar a história do título Indigo Borboleta Anil. Como surgiu? 

Indigo Borboleta Anil nasce por conta de olhar para esse processo do disco e entender que eu estava falando sobre a minha intuição. Sentir que eu estava falando de lugares que eu não tinha acessado ainda, de lugares que eu precisava transformar, de lugares que eu precisava, de fato, como uma borboleta em um casulo, me recolher ali dentro para conseguir renascer.

Para além das crianças índigo e do que se estuda sobre elas, é também uma cor muito forte. Uma cor que, principalmente em cultura africana, do Oeste africano, é uma cor onde as pessoas ritualizam esse sentido como transformação, como processos espirituais e terapêuticos.

Nesse processo do disco, eu estava morando em um lugar no interior de São Paulo onde tinham muitas, muitas, muitas, muitas borboletas azuis gigantes. E aí, dentro desse processo, eu falei: “Gente, a resposta está aqui. A natureza está me dando isso. A minha intuição está me levando para esse lugar”. E um dia eu escrevi: Indigo Borboleta Anil. E, do dia em que eu falei isso, eu tinha certeza de que seria o nome do disco. E é daí que nasce.

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03/07/2023

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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