Por Leonardo Baldessarelli e Ariel Fagundes
Enquanto se preparavam para tocar no Morrostock, que rolou no fim de semana passado em Santa Maria, o Apanhador Só vivia um momento muito peculiar. Há quase dez anos na ativa, a banda está avançada nas gravações do seu terceiro álbum, que deve sair em 2017, mas chegou no festival para apresentar o último show da turnê anterior, “Na Sala de Estar”, produzida por crowdfunding e que deu sequência à divulgação do disco Antes Que Tu Conte Outra (2013). Nesse entre-ciclos, tivemos a oportunidade de passar um tempo conversando com o vocalista Alexandre Kumpinski.
Na tarde ainda chuvosa de sábado, nos isolamos com o músico em algum canto do Balneário Ouro Verde, aproveitando o silêncio completo e o clima de mato para dar um giro em tudo o que está acontecendo com a banda. Deu para descobrir algumas novidades do terceiro álbum, desde como anda o processo de gravação até qual deve ser a relação do disco com os trabalhos anteriores, e também conversar sobre a cena independente atual e a influência do trabalho da Apanhador – a turnê “Na Sala de Estar”, por exemplo, percorreu todo o país e foi completamente bancada por fãs, seja contribuindo no crowdfunding ou apoiando a banda com hospedagem e locais para shows. Confira a entrevista na íntegra aqui embaixo.
Como está o disco novo?
Ainda falta bastante coisa, tá começando a tomar corpo agora. A gente ainda não entendeu e não sabe direito como ele vai ser. Normalmente, quando vamos gravar um disco temos as composições prontas, mas não temos os arranjos, eles vão surgindo justamente nesse processo em que a gente está agora. É aí que tomam as formas e cores e timbres do disco. E é isso que a gente tá entendendo ainda. Estamos no processo de começar alguns arranjos, outras músicas já estão se fechando… Temos uma lista de 21 músicas e não vão entrar todas. Tem mais esse recorte depois, do que entra no disco do que não entra, de ver qual disco que a gente quer ter a partir das músicas disponíveis. O que a gente já tem, de alguma forma, é um alinhamento das composições. De o que aquele disco vai dizer, uma ideia de postura discursiva mesmo, nisso já dá pra notar que há uma diferença em relação ao Antes que tu conte outra. No sentido de que não vem falar a mesma coisa com outras palavras, mas vem dar uma continuidade a um pensamento filosófico a respeito do mundo que nos cerca, da nossa vida.
O primeiro disco é mais auto-reflexivo, o segundo é uma porrada, quase um disco de protesto, esse terceiro vocês veem como uma continuidade conceitual do segundo ou como uma forma de explorar outras possibilidades sonoras?
Eu acho que é um próximo passo. Não é uma mera continuidade no sentido de ser uma mesma coisa continuada. É um próximo passo, tem ligação com o passo anterior, mas não é o mesmo. Já está, de alguma forma, questionando coisas que não estão questionadas no Antes que tu conte outra, e talvez até questionando um pouco coisas que estão no Antes que tu conte outra.
Musicalmente, há algum pensamento que tem norteado o disco novo?
Acho que tá menos agressivo, menos ruidoso… E talvez mais experimental, no sentido de justapor sonoridades diferentes entre si mais radicalmente do que no Antes que tu conte outra. No Antes que tu conte outra a gente tinha muito um norte de buscar o que fosse ruidoso, agressivo, nota fora [do tom] não tem problema, bota aí. Porque a gente estava com um descontentamento muito forte latente e a gente queria botar isso no disco, e botou. Agora, não é bem esse sentimento. Talvez o que a gente esteja querendo ver são as possibilidades do que pode estar lado a lado, mesmo que aparentemente seja discordante e não necessariamente precise ser. Talvez esse disco venha pra isso, pra tentar ver o que há de intersecção entre as coisas. Politicamente pensando, também.
Com certeza isso é resultado de uma soma de fatores, mas você consegue destacar alguma experiência pessoal que tenha levado vocês a esse caminho?
Algo específico, não. Mas é uma continuação do estar no mundo, uma proposta bem natural de estar aí tentando entender as coisas como estão acontecendo, e como se postar diante delas. De três anos pra cá, é inegável que o mundo mudou, coisas aconteceram e a gente mudou também. A gente segue estando críticos, e acho que isso tem um pouco a ver com o Antes que tu conte outra, estar crítico em relação ao que está acontecendo e não ficar confortável num lugar. Inclusive tem algumas músicas que falam disso na letra, diretamente.
Há pouco tempo aconteceu um fato trágico, você perdeu seu celular com os todos registros das composições do disco novo. Como você reagiu a isso? Refez as músicas com o que lembrava de cabeça, ou descartou e compôs novas?
Tinham coisas que eu ficaram na memória e eu pude buscar, mas mais importante do que isso foi que eu entendi, depois, que eu já tinha muito material pronto. E que esse último retiro que eu tinha feito pra compor tinha me aberto pra novos materiais, mas que não estavam necessariamente fazendo falta pro disco. Porque já tinha muita música pronta, que eu já tinha decorado. Então, eu fiz mais um retirinho depois disso pra fechar algumas questões que estavam em aberto. E quando eu parei pra organizar e ver tudo que eu tinha na mão, vi que já tinha material suficiente e não precisava me preocupar tanto com o que se perdeu porque, enfim, o que se perdeu, se perdeu. Tem uma que outra música que eu me lembro que estavam muito boas e eu daria segmento e que eu não consegui buscar na memória. Mas realmente, parando pra olhar, a gente até tá com mais músicas do que vão entrar no disco, então o que não tem remédio, remediado está.
Tiveram músicas que acabaram se transformando por causa disso?
Tem, mas essas são as músicas que eu acabei não terminando, que eu decidi que vão ficar pra depois do disco. Até porque as temáticas que estavam se abrindo eram uma nova aba mesmo, que talvez não tivesse espaço no disco mesmo. Uma das que eu mais sinto ter perdido surgiu numa praça num improviso que eu fiz perto da minha casa, em Porto Alegre, aí eu fui até a mesma praça com o violão e botei um celular pra gravar – um outro celular né – e fiquei tentando buscar. E funcionou um pouco! Estando naquele espaço, rebrotaram da memória algumas coisas, mas não chegou a alcançar o que já tinha alcançado. Aí eu fiquei trabalhando em cima dela, tentando buscar, mais e mais e mais, e vi que eu tava começando a pirar nisso. Porque não tava vindo e eu tava me estressando com isso. Então, abandonei porque achei que seria mais produtivo pra seguir nas próximas coisas. E depois entendi que nem precisavam ter próximas coisas porque já tinham coisas suficientes. O lance criativo é meio caótico, né? Antes de eu parar pra listar tudo eu nem tinha noção de que já tinham 16 músicas prontas ou quase. O bom é que de letra eu me lembrava tudo, eu perdi muitas ideias musicais de harmonia, melodia, encaixes de métrica e tal. Mas das letras eu lembrava.
E vocês estão gravando o disco em um retiro também, como está sendo?
É, a gente alugou uma casa no alto do Morro da Borúsia, em Osório. Levamos pra lá os equipamentos que a gente mesmo tem e estamos fazendo a pré-produção, que é a parte de criar os arranjos, junto com a gravação. Estamos gravando tudo lá mesmo, vamos ficar três meses lá no total. Agora tá fazendo um mês e pouco que estamos. A ideia é sair com o disco todo gravado e mixado pra ir pra masterização. Sair de lá com o disco pronto, praticamente. Se vai se concretizar, ainda não sabemos, mas é a ideia.
Não faz muito tempo que vocês acabaram uma turnê enorme pelo Brasil, feita com crowdfunding em um modelo único de tocar na casa das pessoas. Teve momentos que se destacaram nessa tour em relação ao esforço da galera pra trazer vocês?
Cada cidade foi uma história, não sei nem o que destacar. O formato com o qual a gente viajou permitiu que a produção local da cidade fosse muito diversa, teve as meninas de São Paulo que estavam organizando o show dentro de uma ocupação de moradia, com sem tetos lá dentro, teve em Curitiba uma casa de amigos. Foram mundos muito diferentes. Em Natal foi um gurizão que pilhou e conseguiu a casa do vô, que não tinha nem luz, sabe? Realmente foram situações muito diversas. A experiência foi incrível, foi muito foda. Porque conseguimos fazer um giro pelo Brasil de forma muito independente. Basicamente, foi a banda e o público fazendo tudo acontecer, desde o financiamento até esse lance da produção. A gente pedia pro público nas redes sociais indicações de casas onde poderiam acontecer os shows, já que a turnê era toda em salas de estar, fora de casas de shows consagradas. Isso tudo foi uma grande experiência no sentido de experimentação. De possibilidade de circuito, de poder circular mesmo. Porque é muito massa que tenham os festivais rolando e que tenham esses espaços onde vai se juntar um monte de gente, com um monte de bandas, com as trocas que têm entre os artistas, tudo isso. A força que isso tem em aglutinar artistas, pra ter mais público, pra todo mundo ter mais visibilidade, é incrível. Ao mesmo tempo que também é incrível ter a autonomia de conseguir fazer uma turnê sem necessariamente depender de produtores e curadores de festivais porque nem todo mundo consegue espaço dentro disso. Abrir essas tangentes dentro do mercado, até pra fortalecer um mercado que ainda não tá fortalecido dentro do Brasil é muito importante. E fazer isso junto com o público, pra nós, é um caminho que soluciona muitos problemas. E é um caminho bonito porque o público é parte essencial sempre em qualquer processo que inclua cultura e, através do crowdfunding e desse tipo de relação mais próxima, isso se evidencia e ganha mais força. O público produz junto a turnê, num esquema que, até alguns anos atrás, não vinha sendo assim. O público acabava sendo sempre a parte consumidora, quem paga o ingresso, quem compra o disco. Agora, através dessa relação, o público deixa de ter essa relação e passa a tomar as decisões junto. Isso é muito importante, botar o coletivo pra tomar as decisões junto.
O público hoje pode ser menos passivo, né? Isso tem muito a ver com as mudanças que aconteceram no mundo nos últimos três anos, que você havia comentado. Essa turnê não seria possível de ser viabilizada uns anos atrás, sem as redes sociais sendo o que são hoje.
Exatamente. Isso é muito importante. Não seria possível sem as redes e sem esse impulso político que parece que está havendo no mundo, que é o de descentralizar as coisas e todo mundo tomar parte dos processos, caindo as figuras de liderança, ou de qualquer centralização de poder, e todo mundo sacar que é a gente junto que tem mais poder do que aparentemente se tinha nas organizações mais antigas – atuais ainda, né? Nós estamos bem numa virada de processo.
Vocês não deve ter como medir isso exatamente, mas como vocês sentem que essa postura da banda interferiu no tamanho do público de vocês?
É, não tem como medir direito mesmo, mas alguns indícios apontam um crescimento bem grande. Do primeiro projeto de crowdfunding pra agora, acho que sextuplicou o público da Apanhador. Se é que se pode dizer um número, eu chutaria que é mais ou menos isso. Cresceu muito e vem crescendo, isso é muito bom. A gente fica muito feliz com esse crescimento porque é orgânico, não é impulsionado por nada além do nosso trabalho e do trabalho do público de disseminação do nosso trabalho. Sempre foi muito importante isso, tem uma galera que chega no show e diz: “conheci vocês através de não sei o quê, adorei, e passei pra todos meus amigos”. Ba, é isso! É isso que mais faz a Apanhador ir crescendo.