Arnaldo Antunes é quebra-cabeça, um mosaico que se fragmenta em estilhaços espalhados por galerias de arte, rádios e bibliotecas compondo um quadro múltiplo, mas uniforme. Não importa se estiver cantando, escrevendo ou criando poemas visuais, Arnaldo continua sendo aquele caçador de palavras que ajudou a criar o Titãs em 1982.
Hoje, o artista já carrega na bagagem 16 discos solo, o mais recente deles, Já É, saiu no final de setembro. E saiu sem pressa, pois é fruto de uma puxada de freio que Arnaldo deu rompendo a velocidade que estava tomando conta de sua vida. Foi um disco escrito em um período de férias longas, quando ele viajou para Itália, Índia e Estados Unidos e teve tempo para compor com outros amigos compositores. Dadi Carvalho, Marisa Monte, Marcelo Jeneci, Davi Moraes e Pedro Sá são apenas alguns dos parceiros de Arnaldo em Já É e Kassin foi o seu produtor.
A entrevista que você encontra abaixo é um convite. É uma chance para que você dê tempo a si mesmo e à obra de Arnaldo Antunes, que merece atenção.
Você é um artista que trabalha com várias plataformas, como você se divide entre as linguagens?
Olha, geralmente eu produzo as coisas simultaneamente. Não tenho problema em fazer um poema, à noite estar ensaiando uma canção e, no outro dia, trabalhar em um objeto visual. Normalmente, as coisas encontram seu espaço com naturalidade. Agora, quando tô envolvido em um projeto, aí eu fico muito obsessivo. Só cabe aquilo na cabeça, sabe? Época de gravação, por exemplo, eu passo o dia inteiro no estúdio, trancado, aí acabo a gravação, vou dormir e fico no travesseiro pensando em soluções pras músicas, acordo já louco pra ir pro estúdio. Períodos de criação de um novo projeto geralmente são mais absorventes e exclusivos. Mas aí, quando tô em excursão com um show e tenho uns dias livres, as coisas convivem. Acho que as coisas que eu faço dialogam entre si por causa do trabalho com a palavra, que é uma intersecção em tudo que eu faço. Não faço música instrumental, eu faço canção, que envolve o uso da palavra; não sou artista plástico especificamente, eu faço poesia visual, que tem também um trabalho com a palavra, com a significação poética. De certa forma, é como se o trabalho com a palavra me levasse em direção a outras linguagens com o desejo de entoar, de expandir a significação através do atrito do verbal com outras linguagens.
É possível dizer que você tem uma só obra multifacetada, que se expressa em diversas linguagens e plataformas, ou o Arnaldo que canta não é o mesmo que escreve?
Ah não, eu acho que as coisas se completam. Inclusive tem muito trânsito, muitas vezes eu faço um poema e depois posso vir a musicá-lo, posso pegar o trecho de uma canção e aquilo virar um trabalho gráfico, as coisas tão em constante diálogo mesmo.
E o que o formato do disco lhe possibilita, em termos de expressão, que é exclusivo dele?
Sou muito apegado ainda a um grupo de canções, que a gente pode chamar de disco. Esse conjunto, a ordem das músicas, os elos temáticos que possam haver entre uma música e outra. Cada disco meu tem uma cara, que é daquele período. Ainda gosto muito dessa ideia do disco, apesar de que as pessoas ouvem cada vez mais músicas de uma forma avulsa, ou no shuffle, misturando as coisas. Acho que ainda tem espaço pra se pensar em uma obra que tenha uma coesão interna que a gente possa acreditar nela como um “disco”, um reflexo daquele momento do artista. No meu disco passado, fiz um híbrido: eu tava fazendo o disco e já ia mostrando as músicas, uma canção por mês durante cinco meses. Mas a ideia não era me desfazer do disco, era aproveitar um pouco essa liberdade que a internet tem de a gente poder lançar uma música avulsa pra criar um outro relacionamento das pessoas com o disco, entendeu? Vai se compondo o quebra-cabeça aos poucos, aí depois vem o disco cheio. No disco novo não, achei importante lançar ele todo de cara de uma vez.
Contando os discos ao vivo, o Já É é o seu 16º álbum solo. Após três décadas de carreira musical, quais são os temas que ainda mexem tanto contigo a ponto de você precisar cantá-los? O que você acha que precisa cantar hoje?
Ah, qualquer coisa pode ser motivadora do desejo de me expressar. Pode ser uma relação afetiva, pode ser uma notícia de jornal, pode ser um copo d’água, pode ser uma estrela, enfim. Eu até gosto quando pinta uma canção com um tema mais inusitado, tipo “Invejoso”, ou essa canção “Antes”, que tem uma visão de outro ângulo das coisas. Mas acho que qualquer coisa é motivadora. O tema vem junto com a canção, muitas vezes, até do exercício de linguagem, de ir elaborando, não vem antes de fazer a canção, vem durante.
A escrita, pra ti, é um trabalho mais interno de digestão de emoções ou é algo diretamente afetado pelo exterior?
Tudo é afetado pelo exterior, agora, não diretamente. A gente sempre tá filtrando as experiências pra devolver aquilo através de um filtro. Você pode escrever uma canção sobre uma coisa que você não tenha vivido, mas indiretamente você viveu através de pessoas que você conhece que viveram aquilo, ou quando você consegue se projetar em um personagem… É um filtro que seleciona as informações, mas é também o fruto de uma vivência, só não é um reflexo direto. Acho que a gente cria não pra falar da realidade, comentar, e tal, e sim pra estar fazendo parte dela, pra estar vivendo.
Uma das coisas que mais me saltou aos ouvidos ouvindo seu novo disco foi uma reflexão sobre como as pessoas têm lidado com o ritmo do mundo atual. “Peraí Repara” é bem explícita, “Põe Fé que já é” também. Como o mundo de hoje, cada vez mais rápido e virtual, tem lhe afetado?
Pois é, é um disco mais sereno. Não só musicalmente, mas também por essas temáticas. São mensagens que procuram dar um olhar mais tranquilo em relação a essa avalanche veloz de informações que a gente vive. Tem sim a busca de um contraponto, mas isso surgiu muito espontaneamente, as canções foram saindo e depois que eu vi que tinha essa cara. É um disco que só tem dois rock n’ rolls, é um disco com canções mais tranquilas. Até como um contraponto mesmo, sentindo que é um momento que tem a necessidade de as pessoas voltarem um pouco pra si mesmas e se auto-conhecerem, parar as coisas, ver sentimentos dos quais às vezes a gente fica muito distante. Isso de por fé, acreditar, agradecer, ter alegria, enfim. Várias músicas eu acho que se voltam pra essas temáticas. Isso de você agir naturalmente, não fingir, tem esse desejo desse olhar mais sereno. As conquistas tecnológicas tão aí pro bem e pro mal. As pessoas têm que se relacionar com isso, não tem muito jeito. Acho que é irreversível a presença das telinhas na vida da gente, celulares, computadores, etc. E é preciso dar um contraponto, eu acho que a natureza, a contemplação, a atitude de você sair um pouco da velocidade da informação é, mais do que nunca, necessária para as pessoas darem um contraponto a esse ritmo.
Já É foi fruto desse período de férias em que você se colocou, passando por Nova Iorque, Itália, Índia… Como o lugar onde você está influencia sua obra?
A Índia teve uma importância por ser uma experiência muito nova e com uma coisa espiritual bacana. A gente foi pra uma cidade sagrada, assistiu a falas de uns mestres de lá… Mas, mais do que os lugares, pesou o fato de eu ter dado um stop no ritmo alucinante em que eu vinha produzindo, lançando praticamente um disco por ano. Parei durante seis meses e esse período me deu uma disponibilidade emocional que é muito propícia à criação. Percebi que eu sempre compunha muito durante as férias, que é quando eu pego o violão sem muito stress, sem muito compromisso, sem uma demanda específica. Eu faço por fazer, componho porque tô a toa, lendo, escrevo minhas coisas, aí pego o violão e fico tocando. As coisas vêm com muita espontaneidade, acho que isso é que realmente foi um diferencial pra compor o repertório desse disco. Agora, claro, os lugares também atuam. Em Paraty eu encontrei Marisa [Monte] e Dadi [Carvalho] e ficamos fazendo música junto, em Nova Iorque tava muito frio e eu ficava muito tempo no apartamento tocando, num período de introspecção que foi produtivo.
Uma música que chama atenção é “Óbitos”, um reggae bem crítico que denuncia aqueles que “matam com as canetas”, como diz na letra.
Essa música fala dessa consciência de que quem tá deliberando as leis, os políticos e legisladores, são também responsáveis pela vida das pessoas. São mais, talvez, do que muitos que cometem crimes [porque] eles tão lidando com massas humanas. E a gente vive um período de muita intolerância, muita guerra, no mundo, no Brasil, a gente vê muita disputa de poder. Isso acaba sendo cruel, muitas vezes quem sofre as consequências disso são populações inteiras. Então é uma música que chama atenção pra isso. Mas na verdade essa temática surgiu muito em função da melodia que o Péricles Cavalcanti, que é meu parceiro nessa música, me mandou. Tive vontade de fazer uma letra no espírito da tradição das letras de reggae, que tem esse lado político muito contundente mesmo.
Falando sobre parcerias, você teve várias nesse disco. O que o trabalho em parceria lhe proporciona que não há no trabalho sozinho?
Olha, não dá pra comparar muito porque as parcerias vão chegando, vão acontecendo encontros, e só surgem quando existe uma afinidade real. Fazendo essas viagens, fiz várias músicas sozinho, e também algumas parcerias com a Márcia, minha mulher, que tava viajando comigo, mas acho que tanto faz. Posso atingir bons resultados sozinho ou com parceiros, mas o que acontece é que, com a parceria, você tem um elemento a mais que a fagulha do outro dando motivação. Então acabo fazendo coisas que, sozinho, eu não faria por conta da interação, do exercício de adequação à linguagem da outra pessoa. Isso traz uma motivação a mais. Não foi só nesse disco, em todos acabo tendo muitos parceiros diferentes. E com cada um é um processo diferente, mas eu gosto de compor em parceria.
Esse disco foi produzido pelo Kassin, como foi trabalhar com ele?
Ah, isso era um desejo antigo, eu já era fã dos discos do Kassin e dos trabalhos de produção dele. Ele tem uma versatilidade grande, além de ter uma personalidade musical interessantíssima, tem também uma adequação muito boa. De cada artista com quem ele trabalha, parece que ele tira o melhor. Deu vontade, nesse disco, de fazer de um jeito diferente do que eu vinha trabalhando há vários discos. Pensei: “ah, vou gravar no Rio de Janeiro com músicos de lá, pedir pro Kassin ajudar a reinstrumentar, escolher novos músicos”. Levei só as canções e a gente resolveu todos arranjos lá, em outra cidade. Isso tudo trouxe um frescor, uma sonoridade nova pro trabalho, que foi legal.