Frederico Mendonça de Oliveira, mais conhecido como Fredera, é o que se pode chamar de um artista multifacetado. Ex-estudante de Literatura e até hoje leitor de latim, se afastou da universidade por conta da repressão dos militares durante a Ditadura.
Moldado musicalmente no circuito underground do Rio de Janeiro, evoluiu na prática da guitarra a partir da chegada dos pedais, até ser convidado para integrar o Som Imaginário, banda que ajudou Milton Nascimento a inaugurar sua fase experimentalista em 1970. De lá para cá, tocou com diversos outros artistas, tais como Gal Costa, Gilberto Gil e Gonzaguinha, além de ter gravado discos solo. Mas sua obra não é restrita à música. Fredera tem um livro publicado, e nas artes plásticas, persegue um abstrato que julga inalcançável.
O contato de Fredera com o universo musical remete à sua infância. Desde garoto, gostava de ouvir rádio. Nos anos 50, essa experiência era diferente de hoje em dia. Alguns anos antes da chamada MPB e em uma era muito anterior à dos jabás, era comum que as estações de rádio tocassem jazz e música erudita, além dos principais cantores e cantoras brasileiras da época. E foi a partir dessas audições que o artista foi moldando o seu gosto.
“A minha formação musical teve jazz e erudito desde menino, ouvindo rádio no Rio de Janeiro. Então, tinha também Nelson Gonçalves, Ângela Maria… Aos 13 anos, eu desbundei ouvindo Chega de Saudade (1959), mas nessa idade já comecei a ser um ouvinte aprofundado de ópera. Lá em casa, ópera era algo religioso”, conta Fredera em entrevista concedida à NOIZE.
Alguns anos depois, iniciou sua trajetória na música tocando na noite do Rio de Janeiro. Trabalhou organizando os bailes do trombonista e saxofonista Raul de Souza, época na qual pôde se dedicar à prática da guitarra. E graças ao avanço no instrumento, foi chamado para o Som Imaginário, grupo que estava se formando para trabalhar como banda de apoio de Milton Nascimento. No entanto, a escolha pela carreira musical não foi exatamente fácil. Isso porque, àquela altura, o jovem Frederico almejava um caminho acadêmico, mas a Ditadura Militar foi uma barreira nesse sentido.
“Eu cursava Literatura na Universidade do Rio de Janeiro quando comecei como músico. Mas aí começou a repressão do governo militar. Eles prendiam professores, e eu vendo tudo aquilo pensei: ‘Eu vou continuar estudando Literatura pro resto da vida, mas não vou ficar parando meu trabalho musical para enfrentar essa confusão!’. E estava difícil frequentar a universidade mesmo assim. Era uma época de grande convulsão social. Isso foi entre 1967 e 1968”.
Nesse período, Fredera conta que foi morar no Solar da Fossa, uma pensão localizada no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, que ficou famosa na década de 60 por abrigar alguns artistas que viriam a se consolidar como importantes nomes da cultura brasileira. Paulinho da Viola, Glauber Rocha, Gal Costa, Ruy Castro e Caetano Veloso foram algumas dessas figuras. Esse último, aliás, influenciou e foi influenciado por Fredera.
“Eu e Caetano éramos muito próximos. Eu tinha um grande encanto pela figura do Caetano, pelas horas e horas de papo que nós trocávamos. Eu tomando cerveja e ele tomando coca-cola. No início de carreira, o Caetano era um demolidor de conteúdos. Aquele discurso dele foi um dos esporros mais admiráveis dentro da literatura brasileira e da língua portuguesa. Aquilo é uma obra literária. Magnífico!”, diz, fazendo referência à fala de Caetano Veloso no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), durante o Festival Internacional da Canção de 1968, quando a canção “É Proibido Proibir” foi recebida com vaias pelo público.
Fredera, de fato, é um apaixonado pela língua portuguesa e pela literatura. Ele relata que essas influências serviram de inspiração durante boa parte de sua carreira, sobretudo nos três álbuns que o Som Imaginário lançou. O repertório do guitarrista, que conta estudar latim até hoje apenas por prazer, passa principalmente por Cláudio Manuel da Costa, Camões, Gregório de Matos, Camilo Castelo Branco e Carlos Drummond de Andrade. Além disso, Fredera já escreveu artigos para jornais e revistas como a Caros Amigos, e tem um livro publicado.
Lançado em 2017, O Crime contra Tenório – Saga e Martírio de um Gênio do Piano Brasileiro resgata a memória de Francisco Tenório Cerqueira Júnior. Tenorinho, como alguns o conheciam, excursionava por Uruguai e Argentina com Toquinho e Vinicius de Moraes em 1976. Na madrugada de 18 de março, saiu do hotel onde estava hospedado em Buenos Aires para comprar cigarros e nunca mais voltou. Anos depois, se descobriu que os militares argentinos que preparavam o golpe que deporia a presidente Isabelita Perón prenderam Tenório na rua, o torturaram e mataram. “Do ponto de vista da radicalidade musical, o Tenório era irredutível! Fato é que foi a maior tragédia dentro do universo da música popular no planeta”, comenta.
Além das publicações literárias, discos lançados e turnês realizadas com o Som Imaginário, Fredera tem também trabalhos musicais solo. Aurora Vermelha (1981), disco com seis faixas lançado, é considerado pelo artista a sua obra prima. Ele entende que tudo o que havia produzido até então em termos musicais serviu apenas para pavimentar o caminho até esse disco. “A minha bagagem era para chegar no Aurora Vermelha. De resto, a gente ia levando. Era trampo. Era para sobreviver e ver se um dia chegava lá. Eu cheguei!”
Para alcançar esse produto final, o artista contou com uma valiosa contribuição vinda de um plano mais elevado. Na verdade, segundo Fredera, a maioria das composições – não só nesse disco, mas em toda a carreira – simplesmente “baixavam” nele. Como uma espécie de psicografia, que sequer deixa vestígios de lembrança do processo composicional. Por isso, ele fica reticente em se definir como compositor.
“O Aurora Vermelha foi totalmente recebido. Eu não sei como eu fiz aquilo. Nem do ponto de vista composicional, nem do ponto de vista instrumental. Então, sinceramente, eu vejo esse lado de grande teor espiritual no meu trabalho. Eu sou um cavalo dos guias, da turma que me antecedeu. Eu até posso dizer que não sou profissional criador coisa nenhuma. Eu sou receptor. E fico muito feliz com isso!”
Depois de Aurora Vermelha, Fredera gravou discos com artistas como Gonzaguinha, Ednardo e Beto Guedes. Em 2019, lançou mais um trabalho solo, Balada a Um Anjo na Terra (2019), com 15 músicas que, segundo ele, também foram todas “recebidas”. Já em 2022, participou do álbum do seu filho, Tutuca e Convidados (2022). Na ocasião, os dois regravaram a canção “Sábado”, composição de Fredera que abriu o lado B do disco de estreia do Som Imaginário, lançado em 1970.
Uma outra área na qual Fredera se arrisca é a das artes plásticas, tanto por meio da pintura quanto da escultura, em um projeto no qual utiliza o cimento como matéria prima. Nesses casos, porém, não conta com aquela inspiração psicográfica. Na verdade, Fredera busca um objetivo que, no seu entender, soa até utópico. “Nas artes plásticas, eu persigo um abstrato que acho que não vou conseguir realizar nessa vida. Dentro de mim eu sei o que quero. Mas na hora de realizar, ou melhor, na hora de materializar, dá um tilt”.
Ainda que o seu trabalho artístico como um todo carregue um peso transcendental, Fredera encerra afirmando que não é um religioso propriamente dito. Ele se vê mais aliado ao esoterismo, usando essa espécie de ferramenta para entender e se aprofundar nos aspectos metafísicos que lhe auxiliam a criar e a interpretar a própria vida. “Eu me vejo muito mais em um conteúdo espiritual. Isso é muito maior do que autoria. Sou um simpatizante do esoterismo hoje porque busquei a religiosidade ontem. Eu buscava uma transcendência. Hoje sou um simpatizante, sou um leitor espiritualista. Não sou espírita. Mas o espiritismo abre a cabeça de muita gente, pelo menos para perceber que a vida não se restringe à dimensão do corpo físico”, completa.
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