As obras mais impactantes do gênero do terror são aquelas que enfatizam o horror e o absurdo da realidade cotidiana, e é por isso que Aleatoriamente (2023), o novo álbum de Rodrigo Ogi, é de arrepiar até o último fio de cabelo. “Eu fui desenhando como se a gente estivesse vivendo o inferno aqui na Terra”, diz o rapper paulistano na entrevista que você confere abaixo.
As tragédias rotineiras que assolam o Brasil dão o tom do disco, que se desenrola faixa a faixa com uma dramaturgia própria, encadeando personagens e cenários, muitos deles reais ou quase. Nesta trama agitada, temas gritantes, como a violência da polícia ou a desumanização dos trabalhadores, servem de pano de fundo para Ogi destrinchar o melhor do seu flow malandro, sobre bases instrumentais construídas com Kiko Dinucci, produtor do álbum.
Seis anos após o lançamento de seu disco anterior, Pé No Chão (2017), Ogi resolveu buscar um caminho novo, pra fugir do que já tinha feito até então. O resultado foi um álbum extremamente percussivo e que reúne um grande elenco de convidados especiais: Don L, Juçara Marçal, Russo Passapusso, Tulipa Ruiz, Siba e Thiago França. “Eu queria fazer uma coisa diferente, sair da minha zona de conforto”, diz o rapper.
No próximo dia 27, haverá o show de lançamento, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, contando com Kiko Dinucci na banda e a participação de Juçara Marçal e Don L. Novas datas serão anunciadas em breve, e Ogi adianta que Aleatoriamente tem previsão de sair em vinil no ano que vem através do selo Somatória do Barulho.
Confira abaixo a conversa.
Desde que saiu o Pé no Chão muita coisa aconteceu, como foi esse período pra você e como você sente que esse tempo se reflete no disco novo?
Ah, cara, eu sempre digo que cada disco que eu faço é o acúmulo de coisas que eu vivi. E talvez por esse motivo, eu não lance coisas tão próximas assim, né? Acho que o meu trabalho mais próximo foi entre RÁ e Pé no Chão, que são dois anos. RÁ saiu em 2015, Pé No Chão em 2017. Eu costumo ficar digerindo as coisas que vão acontecendo para colocar no papel. De 2017 para 2023, passou um monte de água embaixo da ponte, né? Em 2016, teve um golpe, aí em 2017 entrou o Temer no governo, e foi desmantelando tudo. Aí a eleição do Bolsonaro, e a gente vendo o país indo para a ruína, e vem a pandemia, omissão do governo, a população toda insegura. Então esse disco foi feito em cima disso, saca? Aí 2023 outro governo, a gente começa a ter esperança de novo e por aí vai.
Quando começou a produção o disco?
2019, antes da pandemia. A gente começou a trabalhar nas primeiras coisas, aí veio a pandemia, a coisa deu uma atrasada, mas graças a Deus construímos e conseguimos concluir.
Pegando esse contexto todo que você tá trazendo, o disco fala muito das mazelas sociais de hoje, da violência policial, das redes sociais, a internet dominando a vida, do trabalho muito precarizado, das pessoas oprimidas e alienadas… E no disco anterior, você fala: “Eu uso a arte para o muro quebrar”. Queria te ouvir sobre isso, como você vê esse papel da arte, digamos assim?
Só fazendo arte, no meu caso, para me sentir vivo, né? Nesse período, principalmente, do disco, o que me salvou de não entrar em depressão e ansiedade foi justamente criar, ficar toda hora escrevendo. Tanto que eu desenvolvi até um método bem legal, que tá funcionando para mim. Quando eu vou escrever, eu começo a ler um livro. Não importa, pode ser um livro que fale sobre culinária, porque mesmo lendo um livro de culinária, as coisas que vão saindo ali no papel não tem nada a ver com o que eu estava lendo. É como se tivesse insights quando começasse a ler. Com um livro de arquitetura, eu começo a escrever sobre uma coisa que não tem nada a ver com arquitetura. São os insights, parece que as coisas vão se conectando ali.
E é isso, se não fosse criar, colocar para fora… Eu faço a coisa justamente para isso. Porque tenho coisas que eu quero dizer para o mundo. Eu preciso dizer. Esse amor, saca? É justamente isso que a arte me dá. É como se, sem ela, eu não conseguisse existir. Se eu não escrevesse, eu não conseguiria viver.
Em “Saudade”, você cita o mantra hindu “om mani padme hum”, mas o disco traz em vários momentos um vocabulário cristão: anjos, deus, Satanás, fariseus, tem aquele verso que fala de Ruth, Raquel, Caim e Abel. Foi uma busca de diálogo com esse público?
Ruth e Raquel são personagens daquela novela, Mulheres de Areia (1993), que tinha as duas gêmeas, tá ligado? Uma era ruim e a outra era boa. Mas eu não tive essa intenção. Na “Ufa”, que é a última música, eu coloquei isso, na hora que ele fala “seu fariseu” é como se ele fosse um um pastor dessas igrejas pregando para alguém, né? É como se ele tivesse um impondo alguma coisa ali, obrigando ali, como fala na música.
Mas, no geral, esse lance foi mais da coisa que está enraizada na gente, essa coisa de Deus e diabo, e aí foi aparecendo isso muito no disco. Assim como a Morte, ela parece muito no disco também. Se reparar, em várias faixas, eu toco nesse assunto de morte. Foi uma coisa que eu fui desenhando como se a gente estivesse vivendo o inferno aqui na Terra. Eu quis dar essas pinceladas pra que as pessoas tivessem essa sensação de estar vivendo o inferno na Terra nessa época que a gente passou.
Esse tom apocalíptico conversa muito com o discurso do punk, um cenário de onde o Kiko Dinucci veio, lá atrás, antes do Metá Metá. Como ele recebeu a ideia de produzir esse disco, e como foi trabalhar com ele?
A gente já vinha trabalhando há uns anos. Eu conheci o Kiko acho que por volta de 2012, 2013, faz bastante tempo, e a gente vinha conversando sobre isso. Ele chegou a colaborar em duas ou três faixas no RÁ, depois colaborou em uma do Pé No Chão, aí eu colaborei com uma letra e canção no disco dele, Rastilho, nesse tempo eu também já vinha conversando muito com o Thiago França e a Juçara, eles trabalharam comigo no RÁ. Então já dialogava muito com a turma do Kiko, com o Metá Metá, fiz até uma letra para o último disco da Juçara, “Crash”, que ganhou um prêmio de Melhor Canção do Ano no [Prêmio] Multishow.
Então eu já vinha conversando muito com eles. O Kiko gosta muito do meu trabalho assim como eu gosto muito do dele, e eu pensei em sair fora de tudo que eu já tinha feito na minha carreira, sabe? Eu queria fazer uma coisa diferente, sair da minha zona de conforto. Eu estava me sentindo desconfortável estando na minha zona de conforto. Então eu procurei o Kiko, que eu sabia que ia fazer isso acontecer. E no começo do processo, por eu não estar acostumado ainda com algumas sonoridades, eu meio que estranhava, saca?
O disco foi produzido assim: eu pegava uma bateria, escrevia alguma coisa e mandava para ele, e ele produzia tudo em cima disso, deixando o instrumental seguindo o que a letra dizia. Essa coisa fortaleceu as imagens do que eu canto. Em outras, eu pegava um loop já pronto, de algum sample que eu tinha, ou alguma música que tinha escutado, e às vezes ele aceitava esse loop pra trabalhar ou, outras vezes, ele falava: “Cara, se a gente for seguir isso vai ser mais do mesmo que você já fez”. Então ele pegava e desconstruía tudo. Só mantinha as minhas melodias e o meu flow.
Isso foi um ponto interessante do disco, o que eu imaginava na música, quando ele me entregava, era totalmente diferente. Lógico que não se perdia o que eu tinha criado. A melodia, os flows estavam lá, mas ele acrescentava mais coisas e deixava o som muito diferente. E aí esse foi o resultado, ficamos três anos martelando nisso até finalizar, com todos esses contratempos que aconteceram no país e no mundo, graças a Deus deu tudo certo.
Além das referências de rap, o que mais você sente que está ali?
Ah, várias coisas de andamento de percussão africana. Por exemplo, o trap, a gente colocou, mas só que, se você for olhar, o andamento é igual, só que o jeito que foi montada a bateria não tem nada a ver. É um disco bem percussivo, que é uma característica também do Kiko, além de tocar violão ele é um cara bem percussivo, o jeito de ele tocar violão é percussivo, parece que ele tá tocando um violão já com um instrumento de percussão junto É bem diferente.
“Valha-me” talvez tenha sido o único instrumental que o Kiko entregou pré-produzido já, quase pronto, faltando só mapear, e aí eu comecei a escrever, e a gente teve a ideia de chamar o Siba, que é bem amigo dele e a gente achou que tinha muito a ver. Tem uma coisa puxando pro maracatu ali, bem diferente do que eu já estava acostumado a fazer. Esse disco tem muito isso, são várias influências de percurso africana. Pouco sample a gente usou nesse disco, foi tudo mais executado, sintetizador eletrônico, coisas que o Kiko colocou de orgânico, mas não tanto. E aí o resultado foi essa coisa bem suja, bem densa, a timbragem diferente, gritante.
E o disco tem uma uma parada meio teatral, né? Você vai citando personagens nas músicas, e termina com aquele corte, quebrando a “quarta parede” do disco, mostrando aquilo como uma encenação.
Sim, a música “Ufa” justamente se chama “Ufa” por isso. Eu começo a música contando uma história real que aconteceu comigo mesmo. Uma vez, eu tomei um enquadro e o policial pisou na merda e fez eu limpar o coturno dele com a minha camiseta. Isso é uma história real. Aí eu começo a colocar várias coisas de ficção, começo a inventar, a roteirizar toda essa história que aconteceu comigo e um policial. E vai chegando em uma hora que vai ficando muito tenso, a hora que ele tá prestes a ser empalado, né? E aí vem aquilo: “Corta”. Era só uma cena de um filme. Mas é uma coisa que existe todo dia, tá aí, nas periferias principalmente, e casou também com esse lance da passagem toda do disco. Ali, acaba o disco. Acaba essa música, mas acaba o disco também. Foi uma ideia que a gente teve pra finalizar, aí acaba toda essa passagem de 12 faixas.
Foi uma ideia que surgiu no processo ou desde o início tinha isso planejado?
Já tinha isso na letra. Já tinha esse negócio de: “Corta, acabou a música aqui”. Até porque se eu fosse descrever uma cena dele sendo empalado, acho que ia ser mais chocante, né? Então eu fiz pra brincar também. Dá essa angústia, essa ansiedade, essa agonia, pra no final: “Ufa!”. Justamente isso. A ordem veio depois, esse lance de colocar essa música como a última foi essa sacada que a gente teve.
Legal demais, e o disco saiu agora, como está o planejamento daqui pra frente?
O disco saiu agora em 27 de setembro. Vamos ter um lançamento dia 27 de outubro, e já tem mais alguns shows fechados também, já tem bastante procura. E ano que vem vem o vinil novo, na parceria que eu tenho com o pessoal da Somatória do Barulho. Eu tô bem satisfeito com o andamento, com tudo que tem acontecido com o disco. Espero poder tocar bastante pelo Brasil, mostrar bastante.