Ver Ava Rocha cantar é se jogar no mistério, abraçar a incerteza e gozar a dúvida. No fim do ano passado, ela, Marcelo Calado (percussão), Gustavo Benjão (guitarra), Eduardo Manso (guitarra) e Pedro Dantas (baixo) visitaram a equipe da NOIZE nos dando o prazer de assistir a uma apresentação despretensiosamente linda.
Dali saíram versões únicas de “Uma” e “Boca do Céu”, ritmadas com copos de vidro e entoadas com a força simples dos mantras do acaso. “As portas que abrem quando eu estou cantando é algo muito forte”, comenta Ava Rocha na entrevista que você lê após o vídeo.
Para sentir na pele o que Ava diz, basta dar play abaixo.
Ficha técnica:
Ava Rocha (voz), Marcelo Calado (percussão), Gustavo Benjão (guitarra), Eduardo Manso (guitarra), Pedro Dantas (baixo).
Captação de áudio: Rafael Rocha
Câmera inserts: Ádamo Ovalhe
Direção e fotografia: Lucas Neves
Porto Alegre, 18 de dezembro de 2015.
Realização: Noize
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Budista, judia, macumbeira, maconheira, cineasta, dançarina, cantora, mãe. Ava Rocha traz em si o caos e a ordem de um universo. Nesta entrevista exclusiva, a artista revê sua carreira desde a época em que era uma criança que queria ser atriz até o lançamento do seu disco mais recente, Ava Patrya Yndia Yracema (2015).
Como a música entrou na sua vida e como lhe arrebatou?
Ah, eu sempre cantei, mas, quando tinha 12 anos, comecei a estudar violão e aprender a cantar. Sempre me acompanhou esse amor pela música e por cantar. Na adolescência eu já compunha algumas coisas, e, fazendo cinema, comecei a cantar nos filmes. E sempre dei uma importância muito grande ao som e à música. Comecei a experimentar isso, compor no computador, usar voz tanto pra canção como pra recurso de montagem, de edição de som, desenho sonoro, enfim. Todas essas questões. Uma pessoa que me marcou muito para eu realmente começar a compor e encontrar um caminho na música foi o meu irmão Pedro Paulo Rocha, que é parceiro meu de algumas faixas do primeiro disco, inclusive.
Fui fazendo isso até que fui parar no Teatro Oficina em 2006. Fui pra lá pra filmar Os Sertões e então o Zé Celso [Martinez Corrêa] me ouviu e falou que queria que eu cantasse na peça. Então eu estreei cantando lá no Teatro Oficina. E, dali pra frente, resolvi trabalhar mais profundamente no meio musical, me aprofundar. Aí reuni uns músicos no Rio, que vieram a formar minha primeira banda.
Que era chamada de AVA, né? Quando surgiu a banda?
Surgiu em 2008. Eu entrei em 2006 no Teatro Oficina, fiquei 2007 todo e, em 2008, eu voltei pro Rio e chamei a galera. Isso foi no começo de 2008, em setembro de 2008 teve o primeiro show, que foi no Cinema Odeon, no Rio de Janeiro.
Como foi a transição entre a banda AVA e o início de uma Ava Rocha em carreira solo?
É, isso terminou ficando um pouco confuso porque… a questão da banda, a questão do solo, eu acho que se dilui muito. Mesmo quando você tá fazendo uma coisa que você fala que é solo, tem uma série de pessoas envolvidas na criação daquilo. Meu disco eu não fiz sozinha, eu fiz com o Jonas [Sá], que fez uma produção impecável, que arranjou junto com o Daniel Vasquez, que pensou musicalmente o disco junto com o Negro Leo. Enfim, é uma construção coletiva. Na banda AVA era a mesma coisa, era uma construção coletiva, só que, da mesma maneira que a banda se chama AVA e o meu disco solo é da Ava Rocha, foram projetos que nasceram de mim, foram conduzidos por mim e são muito autorais, tanto do ponto de vista de terem canções minhas como de eu incorporar as coisas que eu quero incorporar. São canções que eu quero cantar. No fundo, os dois discos são extremamente coletivos e extremamente autorais. A questão é que o primeiro disco, pelo processo que ele se deu, desde o começo, em que a gente ficou meses ensaiando, convivendo juntos, num momento em que não existia nenhuma perspectiva de viabilização, no sentido de que todo mundo se juntou pra realizar aquele sonho e tudo… O processo foi conduzindo para uma relação mais ligada à banda.
Nós ficamos muito tempo ensaiando, gravando o disco, tocando fora, aí quando a gente lançou o disco, foi no final de 2011. Ao todo, passaram-se quatro anos e eu sentia já que tinha esgotado aquele processo. Também tava grávida… Já estava casada com o Negro Leo, criando outras músicas, querendo cantar outras coisas, querendo experimentar outras sonoridades, que a banda muitas vezes não permite. Tudo isso foi decisivo. Pra mim, foi como terminar um filme. Um filme que tá pronto, eternizado, que juntou amigos, encontros, pessoas, relações. Aí enfim… Eu fiz o outro.
E aí você vem e lança um disco com seu nome de batismo. Ava Patrya Yndia Yracema pode ser considerado um disco onde você se apresenta? Talvez mais do que no anterior.
Não, os dois são reflexos de experiências, de encontros, de momentos, então os dois são. A banda era AVA e Ava Patrya Yndia Yracema também é meu nome. Mas é muito mais um nome que transcende meu próprio nome. Não é uma questão de “ah, eu tô me assumindo agora”. Eu tô assumida desde o primeiro! O primeiro é tão importante, tão eu, quanto esse. Mas são nuances diferentes, não sou uma coisa só e não tô interessada em uma coisa só. O nome Ava Patrya Yndia Yracema é porque eu acredito na potência desse nome. Sabe? Eu acho que é um nome que reflete, que expressa diversas ideias que me interessam e que fazem parte de mim. Então sou eu, nesse sentido. Quer dizer, existe essa passagem do que eu sou pro que o mundo é e acho que o nome é o reflexo disso. Até porque ele é algo muito singular, é um nome estranho, único, né. Não tem como negar. Mas é um nome que representa muita coisa né, que foge de mim. Eu achava desde sempre importante usar esse nome, mas foi nesse disco que eu achei que ele cabia melhor.
Você já falou de quando ficou grávida e citou sua relação com o Negro Leo, que também é um artista. Que importância a relação de vocês teve na produção desse disco?
Ah, foi maravilhoso né? Meu encontro com ele foi maravilhoso, a gente se identificou de cara, em todos os sentidos. Musicalmente, foi um encontro muito forte e, desde que a gente se conheceu, eu já interpreto músicas dele. Eu tava começando a compor coisas novas e terminei compondo muito ao longo do nosso relacionamento. Por exemplo, “Tão Tão” é uma música que eu fiz pra ele; “Uma” é uma música que eu fiz quando estava grávida, “Beijo no Asfalto” eu tava fazendo quando conheci ele, “Transeunte Coração” ele me viu fazendo, “Mar ao fundo” a gente fez junto… E gravei outras músicas dele, gravei “Na frente da bandeira” no disco dele Tara. Gravei “Blue Ship” que é uma espécie de single solto na internet, que é uma música que ele fez pra eu cantar. Então, a gente tem muitas músicas juntos, muitas parcerias. E também, logo quando eu conheci ele, ele me mostrou “Você Não Vai Passar”, uma música que, de cara, eu falei: “Quero gravar um dia”.
Quando a gente se conheceu, eu tava gravando o meu primeiro disco e o repertório já estava fechado. Aí fui reunindo uma série de canções que eu queria [gravar] do Negro Leo e, quando fui fazer o segundo disco, já tinha tinha todo o arsenal de músicas dele: “Você Não Vai Passar”, “Hermética”, “Auto das Bacantes”. Então, ele é totalmente presente. E ele me ajudou a pensar o disco, foi uma pessoa fundamental na escolha do Jonas pra produtor. Ele também tocou violão e assobia no disco. É uma pessoa totalmente presente. Se não em todos os meus discos, na maioria deles com certeza ele é um dos compositores. Talvez, pessoalmente, é o compositor que mais me interessa nesse sentido.
Muito se disse sobre como o Ava Patrya… traz à tona questões de gênero e você já comentou que o considera um disco “transgênero”, que aborda tanto questões do masculino quanto do feminino e fala sobre essa dança entre as polaridades. Você disse que ele não é um disco feminista, até por não militar em prol de nada, mas ao mesmo tempo muitas mulheres têm comentado como o álbum transmite uma atmosfera de empoderamento feminino. Como você se sente em relação a esse debate?
Por um lado, tem a questão do gênero – feminino e masculino – e eu digo que ele não é feminista porque, primeiro, eu sou mulher e o devir feminino tá implícito. Não existe uma ideologia por trás de um feminino que é natural, fruto de experiências que passam pelo feminino, que é ser mãe, que é amar, que é se empoderar, que é sonhar, são mil camadas desse feminino e dessa potência feminina, que é uma potência de criação. É a potência da América, que é um anagrama de Iracema, e que é a questão mística índia, que é a terra, é a unidade, que é o fragmento e é a Pangeia. E é impossível existir uma energia feminina e um devir feminino se não existe um masculino. Eu até canto no meu primeiro disco: “Só uma mulher sou homem também”. Isso não tem nada a ver com sexualidade, não passa por aí, é a questão das potencialidades. Então, é um disco feminino, não é um disco feminista no sentido de que “feminista” soa quase como uma ideologia que já está fechada, o “feminino” é uma ideia mais ampla.
Por outro lado, tem a coisa do transgênero da música! É um disco sem gênero. Porque eu não faço música de gênero, eu não faço samba, ou funk, ou música clássica, ou jazz, ou bossa nova, ou experimental, ou sertanejo, eu não faço isso. Eu faço uma música de invenção. Uma música transgênero, que tá reinventando seu corpo constantemente. Eu acho que meu primeiro disco também não é um disco de gênero, assim como meu cinema também não é um cinema de gênero, como eu não sou uma artista de gênero, e como eu também não quero me reduzir a um gênero, tipo: “Sou mulher e ponto final”. É claro que eu sou mulher. Amo ser mulher, acho fundamental, urgente a missão que nós temos de empoderamento, de afirmar e reafirmar esse poder feminino, que eu acho que é o poder capaz de transcriar com a sua generosidade. O feminino é a terra. Enfim, eu acredito em tudo, mas não quero anular a beleza do masculino. Como eu não quero que os gêneros sejam anulados pelo meu transgênero. Todos esses gêneros são maravilhosos. Adoro! Adoro sertanejo, adoro funk, adoro tudo que é bom!
Cada artista é um e a cada um cabe a sua arte.
Exatamente! Eu adoro. E eu troco com todo mundo e eu aprendo. Eu só aprendo. Com cada pessoa que eu me encontro que tem um universo musical diferente do meu.
Você é uma pessoa completamente envolvida em várias expressões artísticas: cinema, teatro, videoclipes… Nesse sentido, o que a música lhe traz, lhe permite, que se diferencia das outras expressões?
Ah, eu acho… (risos) É difícil, mas.. Eu não sei, mas os canais que o palco abre são muito fortes pra mim. As portas que abrem quando eu tô cantando, as portas que a música abre, digo até de um ponto de vista espiritual mesmo, é algo muito forte. Nos shows eu tento conectar mais ainda a coisa do cinema, do teatro, da música como elementos, portais, pra isso. Pra mim, é uma experiência muito forte a de cantar. Eu não sou aquelas cantoras que tão sempre cantando, pra mim cantar é um ato, sabe, um momento… Claro que eu canto muito, mas não é uma coisa corriqueira. Eu sinto isso muito forte na questão de estar fazendo música e usar a minha voz como uma plataforma experimentações. O cinema também é muito forte, tem esse poder também, mas o cinema não é tão direto. Se o olho filmasse, aí seria direto. (Risos) Há um processo mais longo de construir esse inconsciente. O que o teatro me deu, na verdade, foi a conexão disso, de entender o ponto, a malha de conexão entre todas essas coisas. Como um terreiro onde todas essas coisas se conectam e se desdobram. Por isso que eu comecei a cantar, eu percebi que uma coisa não era negação da outra, que tudo está em diálogo constante.
E muito ligado à performance.
É! Porque até os 17 anos eu queria ser atriz. Estudava muito cinema, via muito cinema, mas era muito ligada a essa questão do ator. E vi tanto cinema que resolvi não ser atriz, resolvi ser cineasta. Adorava dirigir atores, adoro, e agora também tô envolvida com pesquisa de dança butô, pensando o corpo… Várias coisas, uma coisa vai levando a outra.
Seu show atual tem um impacto estético muito forte, aquela máscara lembra uma coisa de orixá pós-apocaliptico. Você tem uma bagagem religiosa?
Eu tenho. Não uma religião específica, mas me nutro desses conhecimentos e culturas, me alimento de tudo isso e me sinto totalmente conectada a esse misticismo. Acho que no misticismo negro e indígena, por exemplo, reside a possibilidade de transcender. Agora, eu não sigo uma só religião. Eu sou budista, sou umbandista, sou tudo. Sou macumbeira, maconheira, budista, judia – porque a família da minha mãe é judia. Eu sou descendente de ucraniano com checo, judeus, a família do meu pai era protestante, com vários cruzamentos, e aí se montou o quebra-cabeça. Sou metade colombiana, então também tenho família católica da Colômbia. Sou carioca, mas minha família, apesar de ter ido morar lá, não tem nenhuma raiz carioca.
Você já disse que sua arte seria uma arte para uma transrevolução pessoal. Seu grande objetivo enquanto artista está ligado a isso, a promover revoluções pessoais?
É ambicioso isso, né? (Risos) Não… eu tô, primeiro, tentando me transformar. (Risos) É como quando a gente faz um mantra budista, esse ensinamento de você trabalhar uma revolução pessoal, humana, que é dentro de você, e que isso reverbere pra uma revolução mundial, pra paz mundial. Acredito que, através desse trabalho, eu posso reverberar isso. É uma conexão, ao mesmo tempo em que eu tô fazendo isso por alguém, outro tá fazendo por mim também. Não é que eu tô numa ambição megalomaníaca, mas acredito nessa potência de cada um de transformação interna e de transformação coletiva. Essa revolução pessoal tem a ver com muita coisa, com a maneira como a gente se coloca no mundo, como a gente dialoga com o outro. Tem a questão da intolerância, do equilíbrio que a gente pode alcançar entendendo nossas dualidades, feminino e masculino, tem a ver com a questão de ser capaz de superar as guerras e de procurar novos caminhos, tudo isso. É uma coisa que eu não tô vivendo individualmente, a gente tá vivendo um tempo que tá muito conectado a essa ideia de que você pode contagiar o outro, de que novas ideias são bem vindas, de que, porra, talvez seja mesmo possível um caminho sem capitalismo, um mundo mais coletivo. Eu acredito que a arte é uma arma pra isso. No sentido em que todos podem se empoderar, no sentido da invenção. A arte também não é só música, só cinema. Arte é sua invenção cotidiana. Invenção não é inventar uma coisa mirabolante, mas na verdade você se sentir livre pra poder desenvolver qualquer atividade que você quiser dentro dessa liberdade, desse empoderamento, de que você tem um instrumento de expressão, que você é um corpo livre, que você pode se expressar. Enfim, tudo isso. No meu caso, esse movimento se dá através da música, do cinema, da maneira como eu me relaciono com as pessoas, se dá através da maneira como eu gostaria de viver.
Mas como é o desafio de criar uma arte que tenha consciência desse poder dentro de todo um sistema capitalista, comercial.?
Claro, existe isso, existe você lidar com a realidade, o mundo em que a gente vive, que é o mundo cão. Lidar com a realidade e o fato de que é justamente essa arma que vai furar isso. Não existe muito como fugir, mas existe muito o que fazer pra mudar isso. E pra criar, dentro disso, suas condições. Não é se paralizar diante de um modelo que já tá estabelecido, mas usar inclusive isso como inspiração, como motor nesse poder que a arte tem, que é o poder de invenção, o poder de ir, de promover o movimento, de promover o futuro, de ser contracultura, contra essa coisa que já tá estagnada. Então é esse o movimento, entre a cultura e a arte. Você só pode lutar contra inventando novas maneiras. Agora, é isso, é o mundo cão que a gente vive. Cada vez mais, justamente por causa disso, a gente tem que estar cada vez mais ativo e fazer mais e procurar soluções. E não ficar chorando, ou porque não tem uma gravadora, ou porque não tem dinheiro, ou por não sei o quê. É um chorororô danado porque é difícil mesmo pra todos os lados. A gente tem que inventar a nossa maneira. Não tem jeito.