Em 1938, Jean-Paul Sartre escreveu A Náusea, seu famoso romance filosófico. Na narrativa, o protagonista Antoine Roquentin cura seu horror existencial com o auxílio de uma gravação da música “Some of These Days”, clássico do jazz. Dessa forma nos foi revelada a intensa admiração do filósofo pela hiperbólica manifestação da música de New Orleans. Mas qual gravação? Nós não sabemos. Ninguém sabe. O crítico literário Ted Gioia resumiu a frustração coletiva: “Eu gostaria muito que Sartre tivesse sido mais específico com os nomes dos músicos e datas das gravações. Adoraria poder ouvir a música que supera Freud, cura doenças psicológicas e dissolve essa raiva existencial”.
Alguns dizem que Sartre tinha a famosa versão de Sophie Tucker (do vídeo acima)q2 em mente, mas o contexto do romance não condiz com a afirmação. Ao longo do livro, o autor menciona um vocalista afro-americano. É bastante improvável que ele tenha assumido isso ao ouvir a voz de Tucker, vocalista judia de origem ucraniana. Infelizmente para os curiosos, muitas outras versões da música foram gravadas por grandes nomes do jazz, incluindo Louis Armstrong, Bing Crosby e Ethel Waters. Por hora, só nos resta especular.
Sartre, O Verdadeiro Amante do Jazz
“Há um cara gordo que sopra seus pulmões no movimento ondulante do trombone, há um pianista impiedoso, um baixista que tortura as cordas sem sequer ouvir os outros. Eles estão falando com a melhor parte de você. A parte mais dura, a mais livre, com a parte que não quer melodia nem freio, mas o clímax ensurdecedor do momento. Eles tomam conta do seu corpo, não te embalam carinhosamente. (…) Eles batem, se transformam, quebram tudo, e o ritmo vai pra frente. Se você é bravo, jovem e novo, o ritmo te oprime e te sacode. Você quica no assento, rápido e mais rápido”. Trecho traduzido do ensaio “I Discoverd Jazz in America”, escrito por Jean-Paul Sartre para o jornal The Saturday Review, Nov. 29, 1947.
Jazz é a manifestação musical da liberdade existencial. Sartre dizia que vivenciar o jazz ao vivo, no meio de uma multidão suada e latejante, é o mais perto que você vai chegar de uma experiência autêntica de liberdade. O filósofo encontrava no jazz um meio de alcançar a transcendência.
Sartre, que se esforçou extensamente para conhecer Miles Davis e Charlie Parker, abordava o assunto de uma maneira muito mais atmosférica do que analítica. Preferiu deixar a função para os críticos e músicos da época. Seus escritos nos presenteiam com o fervor de um amante apaixonado, recorrendo a descrições precisas das sensações que a “música do futuro” desencadeava em sua mente e corpo. Os músicos de jazz, como ele explicou, “falam com a sua melhor parte, com a sua parte mais dura, mais livre”.
A possibilidade de cura por meio dos instrumentos inflamados soa bem. Teria uma sessão de jazz mais valor que uma visita ao psiquiatra? Nos tempos atuais, quando a procura por métodos alternativos de cura é exacerbada, sugerir a adoção do tratamento musical é reconfortante.