“Que dia é hoje? ” indaga MC Hariel à equipe. Com bom humor, respondem que é segunda-feira. “Ontem estava tomando uma com a família, fui dormir meio balão, confundi os dias”, ele se justifica com um sorriso. Na sequência, o artista remonta a lista de tarefas que realizou até o momento de estarmos sentados, um de frente para o outro, em uma das salas da sede da GR6 Filmes, localizada no bairro Vila Paiva, na Zona Norte de São Paulo.
Segundo o músico, todo o início da semana costuma ser mais tranquilo: longe dos palcos, do estúdio e dos shows. Antes dos compromissos, pôde aproveitar a manhã com Kaynna, sua companheira, e o filho, Jorge, de apenas três meses. “Acordei, tomei uma água e fui passear com a minha mulher e o meu filho. Fomos ver uns patos, umas tartarugas num parque perto de casa”, conta. O cenário, para Hariel, não só parece, como é a realização de um sonho.
Além de se apresentar em frente a uma multidão, ser pai já estava em seus planos. A chegada da paternidade parece ter acalmado toda e qualquer turbulência que os desafios da fama — e da vida adulta — poderiam provocar. “Melhor coisa que já aconteceu”, assume. Hariel quer ter de cinco a seis filhos. “Um goleiro, um fixo, dois de área e um pivô. É para a hora que descerem na quadra: ‘É o time do Hariel, sai de baixo, essa família joga demais”, brinca. Enquanto a formação ainda não está completa, o cantor de 24 anos joga bola com os outros parceiros de vida, organiza um churrasquinho sempre que dá e cuida dos peixes que têm em casa.
Morada dos hits
O clima amigável que permeia os dias livres do músico, se assemelha ao clima da GR6 Filmes, produtora que o acolheu em 2014. Com quase 300 artistas no casting, a empresa independente atua como produtora, editora, gravadora, e oferece tudo o que um artista precisa para colocar uma música no mundo. Na ativa desde o início dos anos 2000, é casa de nomes como MC Don Juan, MC Ryan SP, MC Pedrinho e MC Davi.
Foi no estúdio da sede que alguns dos maiores hits de Hariel foram concebidos: “O Fim É Triste” (2022), “Set do MK 2” (2022), “Hit do Ano – O Peso da Luta” (2021) e “Maçã Verde”, que soma mais de 100 milhões de reproduções no Spotify — e integra o EP Avisa que é o Funk (2020). Na companhia de amigos em casa e no trabalho, na hora de criar não seria diferente: “Prefiro estar tranquilo, botar uma carne para assar, tomar uma breja, uma dose, fumar uns cigarrinhos… Fazer o bagulho tranquilo. A música fica quadrada quando o clima está tenso. E a música é sensação”.
Olhar atento
Esse cenário levou tempo para ser conquistado. Hariel passou perrengue para conseguir gravar as guias das suas composições. “Nas antigas, ficava caçando dinheiro no bolso para pagar uma hora no estúdio”, explica. A cada quatro MCs que ele levasse para gravar, ganharia uma hora de estúdio: “Converti um amigo aqui, outro ali e vários eram da Igreja”. Essa habilidade é fruto da sua determinação, mesmo sendo desencorajado.
“Falei foda-se com 13 anos. Não posso ter vergonha e nem medo de falar que eu sou MC”, aponta. Existia a insegurança de não dar certo, mas ela não cresceu o suficiente para o afastar da música. Com o salário do trabalho na pizzaria, ajudava a mãe em casa e seguia a carreira artística. “Minha mãe foi uma das primeiras pessoas que contei sobre o funk, mas ela ficou com medo porque muitos MCs estavam morrendo naquela época. Querendo ou não, a gente vivia perto da maldade, não era um clima muito bom onde nós crescemos”, lembra.
Somando mais de uma década no funk, Hariel conquistou cinco milhões de ouvintes no Spotify, um milhão de inscritos no YouTube e oito milhões de seguidores no Instagram. Nos últimos anos, passou a colecionar colaborações com artistas como Alok, MC Kevin, Gaab, Filipe Ret, entre outros. “Falei para ela minha mãe: ‘Você vai ver, vou te ajudar, sou sujeito homem’. Na época, ela deu risada. Um tempo atrás ela chegou e me falou que eu tinha conseguido mesmo’”, diz com orgulho.
Joia rara
Hariel começou a cantar aos 11 anos, mas alcançou sucesso conforme desenvolvia as rimas cheias de duplo sentido, no auge do funk ousadia. Estourou com “Passei sorrindo” (2014), que ganhou um videoclipe da KondZilla. Desde então, não parou mais. Nas letras, narra a realidade da periferia, gerando uma aproximação entre o público do rap e do funk consciente. A habilidade com as palavras também lhe rendeu o apelido de “Haridade”.
Dentro de casa, foi ensinado a ouvir os clássicos da MPB: Tim Maia, Elis Regina, Oswaldo Montenegro e Ney Matogrosso são alguns nomes que palpitavam na vitrola da mãe. Hariel conta que quando ainda era criança, assistia encantando Karine Christine colocar os discos de vinil para tocar. O ritual foi passado entre gerações: “A vitrola dela está na minha casa, mas o dia que ela levar embora, vou ter que comprar uma pra mim”.
As suas referências musicais não param nas fronteiras nacionais. O pai, Celso Ribeiro, fazia parte do grupo Raíces de América, que contava com mais seis músicos, entre brasileiros, chilenos e argentinos. Formaram um movimento de resgate da música folclórica da América do Sul e à resistência contra as ditaduras na região. Embora o contato entre Hariel e o pai tenha sido breve — ele faleceu anos depois de ter se separado da mãe — , o músico tem admiração por sua trajetória musical.
“Meu pai era da música latino americana e minha mãe da MPB. Eu ouvia aquilo, cantava, curtia, mas quando eu ia para a rua, essas músicas não faziam sentido”, explica. A identificação foi no hip-hop e no funk: “Não conseguia entender nada, os caras falavam ‘borboleta azul, um copo de água’, umas rimas muito viagem. Tinha que estar muito apaixonado para entender aquela mensagem e eu não estava nessa onda. Estava vendo a realidade, então comecei a escutar músicas que faziam mais sentido com o meu cotidiano”.
Com a identificação que sentiu nas letras de hip-hop, passou a cantar e se encontrar no funk, especialmente atraído pelas batidas e danças contagiantes. Em março de 2020, lançou o primeiro disco, Chora Agora, Ri Depois onde fez uma alusão ao disco dos Racionais MC’s, Nada Como Um Dia Após o Outro (2002).
Trajetória brilhante
Somente neste ano, participou de Sobre Viver, do Criolo, e Lady Leste (2022), da Gloria Groove, que inclusive foi a pessoa que apresentou a dupla. Hariel estava gravando o feat em “SFM” quando Criolo surge no estúdio: “Estava escrevendo a letra, mas deu uma travada. Ele disse para tentar colocar uma palavra antes da rima, para poder abrir outro caminho na música. Na hora pensei: ‘o cara é monstrão’”.
Passou um tempo, o funkeiro recebeu uma ligação com o convite para participar de “Pequenina”. “Fui no estúdio e a música era pesada. Ele disse que a irmã era professora e que eu era um moleque que também falava com o público jovem, explicou o porquê de achar que eu encaixaria naquela faixa pegada e eu fiquei feliz pra caralho. Vou contar para os meus filhos”, explica.
No início de 2022, concretizou outro sonho ao lançar o DVD Mundo Girou. “Foram 10 toneladas de disposição”, reflete sobre a própria trajetória. “Perdi meu pai e me encorajei a fazer as coisas. Geralmente é o caminho inverso. Ele sempre falou pra mim e para as minhas irmãs, que as pessoas estavam só esperando eu virar traficante ou minhas irmãs irem para a rua. Então a minha trajetória foi só disposição. Usei tudo isso como combustível. Já me diminuíram para caralho, mas isso só me engrandeceu”.
Novos projetos
MC Hariel segue ampliando seu impacto na música e na cena urbana. Com o “Camping das Minas”, ele não só fortalece novos talentos como reafirma seu compromisso em abrir espaços para as mulheres no rap, funk e trap. O projeto, idealizado por ele e dirigido por Fernanda Souza Correrua, reúne 17 MCs em um EP com 12 faixas inéditas, cada uma acompanhada de um videoclipe.
Disponível nas plataformas de streaming e no YouTube, o “Camping das Minas” marca um novo capítulo na trajetória do artista e da Xaolin Records. “É muito importante abrir espaços para novos talentos, ainda mais para mulheres em um cenário ainda tão machista. Na Xaolin Records, queremos a presença das mulheres sem restrições e julgamentos. O ‘Camping das Minas’ foi criado para que elas se sintam à vontade para falar sobre suas próprias emoções, experiências, amores e decepções, com total prioridade e liberdade de expressão”, destaca Hariel.
Parte deste texto foi foi publicada originalmente na edição da Revista Noize que acompanha o vinil “Sobre Viver”, de Criolo, lançado em 2022.