“É, por 10 anos eu não quis falar sobre esse tipo de coisa, mas depois eu pensei ‘você é uma covarde se não se posicionar. Não por você, mas pelas mulheres. Fale alguma coisa’”, disse a compositora Björk em entrevista recente à publicação Pitchfork, sobre a insistência das pessoas em não querer dar crédito à ela pela sua própria música. A produção de seu mais recente disco, Vulnicura, ainda é muitas vezes dada somente ao produtor conhecido como Arca, quando na verdade ele co-escreveu apenas duas das nove faixas com Björk. “Eu tenho feito música por, o que, 30 anos? Eu estou dentro do estúdio desde os 11 anos; Alejandro [Arca] nunca tinha feito um álbum quando eu trabalhei com ele”, ela continua: “Eu não tenho nada contra o Kanye West. […] isso é sobre o que as pessoas falam dele. No último álbum dele [Yeezus], ele conseguiu os melhores beatmakers do planeta no momento para fazer as batidas pra ele. Na maior parte do tempo, ele nem estava presente. Ainda assim, ninguém questiona por um segundo sua autoria”.
Björk trabalhou nos arranjos e infinitas camadas sonoras de seus dez discos, sempre em parceria com alguém, nem que seja em pelo menos uma canção, mas também sempre sendo a guia seus próprios discos. O esforço que Björk tem que fazer para ser reconhecida como produtora de sua música, e não apenas como intérprete ou um rosto bonito para a música de outro alguém, é o mesmo das nossas compositoras brasileiras. Se reafirmar como uma mulher independente e não apenas uma vitrine para ser admirada ou rechaçada tem se tornado algo cada vez mais constante nas composições das nossas mulheres desde que elas começaram a aparecer, há cerca de 50 anos, com Dolores Duran e Maysa, por exemplo. Antes disso, as compositoras que ficaram conhecidas foram raríssimas. Temos Chiquinha Gonzaga no século 19 e suas partituras populares no piano, quando a música era só para homens.
Nas letras escritas por Maysa, ela ainda apresentava uma mulher muito triste sem seu homem, mas cada vez mais independente e que começava a se manifestar, como em suas composições “Meu Mundo Caiu” (Sei que você me entendeu/Sei também que não vai se importar/Se meu mundo caiu/Eu que aprenda a levantar) e “Resposta” (E se alguém interessa saber/Sou bem feliz assim/Muito mais do que quem já falou/Ou vai falar de mim). Dolores Duran, uma mulher independente para sua época e também compositora de muitas de suas músicas, já compartilhava em suas letras o desejo de ser feliz sozinha, ao contrário do que os sambas dor-de-cotovelo de seu tempo cantavam. Nina Becker é fã de Dolores e no ano passado lançou o disco Minha Dolores, com versões de sua musa. “Ter sido assim para ela, na época, deve ter sido muito difícil, mas ela era uma mulher à frente do seu tempo e isso sempre me fascinou”, contou Nina em entrevista à NOIZE.
Compositoras como Dolores Duran e Maysa ainda perduravam discursos machistas antigos que estiveram ligados à nossa sociedade moderna desde sua origem e, consequentemente, à música. Divas submissas ou mercenárias neuróticas, o cenário dificilmente era outro até pouco tempo atrás e ainda temos muito o que avançar.
Nos anos 50, também vemos nascer no Brasil o rock’n’roll pela voz de uma mulher. O mesmo estilo que por muito tempo foi negado às mulheres e até hoje é produzido massivamente por homens. Nora Ney gravou em 1955 “Rock around the Clock”, de Bill Haley & His Comets, e, mesmo não tendo gravado nada parecido depois, a música ficou conhecida como o “pontapé inicial do rock no país”.
Rita Lee foi a compositora que usou e abusou do rock’n’roll para se empoderar como mulher. São várias suas letras que mostram uma louca consciente (ou não) que está repensando sua relação com o homem. “Cor-de-rosa choque”, “Elvira Pagã”, “Pagu” e “Fonte da juventude” são apenas algumas das canções para citar.
Fama de porra-louca, tudo bem
Minha mãe é Maria Ninguém
Não sou atriz-modelo-dançarina
Meu buraco é mais em cima
Nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
No aniversário de Rita Lee e ano novo, fizemos uma playlist só com músicas empoderadoras da diva, ouve aí:
A abertura política no Brasil permitiu que o debate sobre a mulher e seus direitos voltasse com mais força. Desde então, vimos crescer o número de compositoras com uma postura feminista em todos os gêneros: Leci Brandão e Beth Carvalho no samba; Roberta Miranda e Fátima Leão no sertanejo; Adriana Calcanhoto, Zélia Duncan, Marisa Monte, Ana Carolina, Marina Lima e Cássia Eller na MPB. Mais recentemente, podemos falar de Valesca Popozuda no funk, Karol Conká e Lurdez da Luz no rap, Anelis Assumpção, Céu, Tulipa Ruiz, Karina Buhr, Nina Becker, Érika Martins, Pitty, Mallu Magalhães, Juçara Marçal e outras tantas compositoras que estão assinando suas músicas sobre mulheres reais e empoderadas.
O que não depende só de Björk e dessas compositoras é o reconhecimento desse trabalho que deve ser feito diariamente, e não apenas no Dia da Mulher. A mulher dependente do homem, tanto na vida como na música, é uma ideia que já deveria estar ultrapassada. “Eu quero apoiar as garotas jovens que estão nos seus 20 anos e dizer à elas: vocês não estão imaginando coisas. É difícil. Tudo o que um garoto diz uma vez, você tem que dizer cinco vezes”, diz Björk.