“Eu nunca quis ser eles. Entendi que, como brasileiro, eu tinha alguma coisa que eles não tinham”, disse Naná Vasconcelos ao jornal O Diário do Norte do Paraná, em 2016. Os norte-americanos não demoraram a perceber essa magia quando tiveram o país ocupado por diversos músicos daqui a partir do fim da década de 1950.
Além de Naná, embarcaram nos EUA, nesse período e nos anos seguintes, uma onda de gigantes que inclui Dom Um Romão, João Donato, Luiz Bonfá, Sérgio Mendes, Hermeto Pascoal, Tom Jobim, Milton Nascimento, Elis Regina, Dom Salvador, Airto Moreira, Flora Purim, grupo Tamba 4, Marcos Valle e muitos outros.
Depois disso, a cena do jazz daquele país e do mundo todo nunca mais seria a mesma. O gênero que influenciou a Bossa Nova em 1958/1959 passaria a ser influenciado por ela alguns anos mais tarde e ganharia um toque que só os brasileiros sabem dar. “Os americanos começaram a repetir a imitação, a influência da influência”, disse João Donato à Noize, o que abriu espaço para que novos elementos tropicais entrassem em cena.
O impacto foi tão longe que até Miles Davis se apropriou de algumas composições do multi-instrumentista Hermeto Pascoal, no disco Live-Evil (1971), que inclusive conta com as participações de Hermeto e Airto Moreira cantando, tocando piano e percussão.
Na prensagem original do disco, as canções “Selim”, “Nem Um Talvez” e “Little Church (Igrejinha)” não foram creditadas ao alagoano, fato que gerou brigas judiciais durante anos e, segundo Flora Purim e Airto Moreira já disseram em entrevistas, essa disputa envolveu a colaboração de Herbie Hancock e Wayne Shorter em prol do lado brasileiro. Hoje, o próprio Hermeto diz que nenhuma música foi roubada.
O compositor estava nos EUA nessa época para participar do primeiro disco solo do percussionista Airto Moreira, Natural Feelings (1970), lançado pela Buddah Records. Os brasileiros Flora Purim (vocal), Airto (percussão, vocal e bateria), Hermeto (piano, flauta, órgão e harpischord) e Sivuca (violão) gravaram O álbum ao lado de Ron Carter (baixo), da banda de Miles Davis, e o resultado foi um disco cheio de experimentalismo e muitas influências da terra tupiniquim.
Airto já morava lá com a esposa, Flora, desde 1967. Catarinense, o percussionista tocou com Cannonball Adderley, Paul Desmond e Joe Zawinul antes de integrar a banda de Miles Davis. O primeiro álbum gravado ao lado do trompetista foi o histórico Bitches Brew (1970), conhecido por ser o álbum da mudança de sonoridade do artista. A presença de um brasileiro não deve ser mera coincidência.
Durante dois anos na banda, Airto dividiu palcos com Wayne Shorter, Dave Holland, Jack DeJohnette, Chick Corea, John McLaughlin e Keith Jarrett. Gravou, entre outros, os discos de Miles Davis Live at the Fillmore (1970), Bitches Brew Live – The Isle of Wight (1970), On the Corner (1972), além do já citado Live-Evil. Também integrou o clássico grupo de jazz fusion Weather Report no qual Dom Um Romão seria o percussionista substituto de 1971 a 1974.
Flora, por sua vez, estreou no palco e no estúdio com um norte-americano, Duke Pearson. A cantora teve importante participação, ao lado de Airto, na fase fusion do guitarrista Carlos Santana e tocou ao lado de Chick Corea, Stanley Clarke e Joe Farrel na banda Return to Forever. Com o grupo, gravou Return to Forever (1972) e Light as a Feather (1973).
Segundo a cantora revela em seu site oficial, Chick Corea havia mostrado algumas gravações de jams realizadas com Miles Davis para Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, mas nenhuma delas quis abandonar o bebop e embarcar no jazz mais experimental, no jazz fusion. Flora comprou a ideia. Depois do período com o Return to Forever, lançou seu primeiro disco solo, Butterfly Dreams (1973).
Produzido por Orrin Keepnews, o disco de estreia da brasileira em solo americano foi arranjado por ela e nada mais nada menos que George Duke e Stanley Clarke. Os dois também gravaram junto com David Amaro, Joe Henderson e alguns outros. Flora foi eleita por quatro vezes a melhor cantora de jazz pela revista americana Down Beat, importante publicação dedicada ao jazz desde 1935.
Airto revolucionou a percussão do jazz norte-americano e participou de centenas de gravações, tanto com brasileiros, quanto com nomes internacionais. Tão importante quanto ele, está o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, eleito por oito vezes o melhor percussionista do mundo pela Down Beat.
“Eu e Airto introduzimos a percussão no jazz, que não tinha. Tinha o latin jazz. Quando nós, brasileiros, entramos na roda, bagunçou todo o coreto. Era pinico, caçarola, apito, grito… Isso mudou. Todo mundo queria os ‘brazilian boys’”, relatou Naná, durante entrevista ao Diário de Perambuco.
As invenções e loucuras não eram exclusividade dos percussionistas. No terceiro disco da carreira e segundo gravado nos EUA, Slaves Mass (1977), Hermeto Pascoal já mostrou que realmente pode ser chamado de gênio. Foi até uma fazenda para poder gravar com animais. São grunhidos de porcos que dão início a faixa que dá nome ao álbum.
Outro mestre a tomar o Hemisfério Norte como morada foi Moacir Santos. Mudou-se em 1967 e, em 1972, lança o primeiro disco nos EUA, Maestro, indicado ao Grammy. Também pela famosa gravadora Blue Note, gravaria ainda Saudade (1974) e Carnival of The Spirits (1975). Além de Opus 3 Nº 1 (1979), lançado pela Discovery Records. O pernambucano ainda hoje é reverenciado por sua mistura do samba, xaxado, coco, baião e maracatu com o jazz.
Todos os brasileiros foram bem recebidos nesse período, apesar das dificuldades, que incluíam a possibilidade de passar noites dormindo na rua no inverno frio de Los Angeles, como relatou João Donato, sobre um episódio em que fora proibido de entrar na pensão em que morava por atrasar o aluguel. Além disso, foram aclamados, muito reconhecidos e premiados.
“Nós fizemos um auê danado, rapaz! Deixamos uma boa impressão nos EUA e no jazz deles. Você sabe como é brasileiro, né? Não deixa por menos”, brinca o pianista acreano João Donato. Ele morou de 1959 a 1962 e de 1963 a 1972 nos EUA. A vontade dele parecia ser a mesma de todos os outros que se aventuraram em terras estrangeiras: aprender e descobrir o que a música tinha a oferecer.
O próprio Donato já declarou que debandou do grupo bossa novista, do qual fazia parte, por querer experimentar mais. “Eu acho que bossa nova é muito pouco para definir a beleza divina da música.” Por isso, também, a ida aos EUA. Mesmo com a segurança que o novo estilo brasileiro assegurou aos brasileiros, depois de um grande estouro pelo mundo, havia mais uma “motivação”: a Ditadura Militar passou a perseguir os músicos e a censurar muitas canções.
“No Brasil, tinha a ditadura e a música não funcionava. Músico não se sente bem com essas coisas não, com censura. Eu fiz uma música que chamava ‘“’O General Morreu’ e eles censuraram o título da música. Não era nem a música, porque era instrumental. Censura é horrível”, relatou Donato.
E com ele o cerceamento ainda foi brando. Sivuca, que era filiado ao Partidão (Partido Comunista Brasileiro), resolveu logo sair do país após o golpe de 1964. Ficou nos EUA até 1976. Trabalhou com Astrud Gilberto, Stanley Turrentine, Harry Belafonte, Paul Simon, Bette Midler, Hugh Masekela, Dom Um Romão e outros.
Sérgio Mendes foi diretamente perseguido pelos militares e se exilou nos EUA. Dom Salvador fixou moradia em 1971 e trabalhou com Harry Belafonte, Ron Carter e Lloyd McNeill. Desde 1977 é residente no River Café, no Brooklyn, em Nova York, e toca cinco dias por semana. Quem vê aquele pianista praticamente escondido, tocando para uma plateia não muito interessada, não imagina que está sentado ali o sinônimo de samba-jazz, mais uma vertente do jazz e da bossa que chegou aos EUA fazendo “um auê danado”.
Sergio Mendes e Eumir Deodato produziram, gravaram e arranjaram centenas de discos, tanto do jazz daquele período da década de 1970, quanto de música pop, trilhas sonoras e tudo que podemos chamar de música. Entre os nomes com quem Deodato trabalhou, figuram Tom Jobim, Walter Wanderley, Paul Desmond, Aretha Franklin, Frank Sinatra, Tony Bennett, Roberta Flack (incluindo o arranjo de “Killing Me Softly with His Song”), Wes Montgomery, Ray Bryant, entre outros.
Em 1962, no Carnegie Hall, Mendes liderava o grupo Sexteto Bossa Trio, com Paulo Moura (sax), Pedro Paulo (pistom), Octávio Bailly (contrabaixo), Dom Um Romão (bateria) e Durval Ferreira (violão), que participou do Festival da Bossa Nova. Essa noite é considerada como a apresentação oficial do gênero brasileiro aos norte-americanos. O violonista Luiz Bonfá estava presente e também fixou residência nos EUA até 1971, fazendo muita história na música do país.
Entre as três mil pessoas do público do Carnegie Hall nesse dia, estavam Dizzy Gillespie, Miles Davis, Gerry Mulligan, Tony Bennett, Cannonball Adderley e Herbie Mann. Tom Jobim, talvez o mais conhecido daquela noite, se apresentou e continuou influenciando muitos músicos. Chegou a gravar com Frank Sinatra, Stan Getz e outros artistas, além de ter composições regravadas incansavelmente, desde aquela época até hoje.
Assim como Jobim, Milton Nascimento e Elis Regina marcaram presença no jazz americano, mas nunca chegaram a morar nos EUA. Pimentinha e Bituca não participaram diretamente do gênero, mas foram importantes. Ela com o disco gravado em Los Angeles com Tom Jobim, Elis e Tom (1974). Ele com as gravações dos discos Courage (1969), com arranjos de Eumir Deodato, Milton (1976) e Native Dancer (1975), uma parceria com o saxofonista Wayne Shorter.
E é notável como a música brasileira continua viajando aos EUA e a todo canto do planeta, inclusive com o jazz, gênero com pouca divulgação nacional atualmente. Mas ainda temos bons exemplos, como o pernambucano Amaro Freitas, que, assim como o conterrâneo Moacir Santos, leva gingado do baião, do frevo e dos demais ritmos nordestinos para o gênero norte-americano.
Essa capacidade de se transformar a partir de tudo com o que tem contato e com quem se relaciona é uma característica do brasileiro. Não só por ter o famoso “jeitinho” (neste caso, uma virtude), mas por encarar tudo de maneira apaixonadamente única. E louca, talvez. Naná dizer que encara a música como religião, Airto dizer que música é vida e Donato transferir à música a capacidade de vida e felicidade são pequenos exemplos disso. O resto é muita personalidade e um tempero brasileiro de genialidade.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 91 da revista NOIZE, lançada com o vinil de No Voo do Urubu, de Arthur Verocai, em 2019.