“O heavy metal é muito família”, afirma Andreas Kisser

08/04/2024

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Thuanny Judes

Por: Thuanny Judes

Fotos: Divulgação/ Bruno Zuppone

08/04/2024

A morte tem significados diferentes para cada cultura ou religião ao redor do mundo. Para algumas, é a tristeza do fim, a impotência diante do limite imposto pela natureza. Para outras é um tabu, uma escuridão desconhecida e inexplicável. Mas ainda existem aquelas que interpretam a interrupção definitiva da vida como a celebração de uma trajetória. Para uma das bandas mais influentes do metal, a morte é a vida. Ao completar 40 décadas de existência, o Sepultura decidiu colocar um fim às atividades e rodar o mundo com a turnê “Celebrating Life Through Death”. 


O quarteto nasceu em 1984 em Belo Horizonte, Minas Gerais, com os irmãos Max e Igor Cavalera. Além deles, a formação original contava com Paulo Jr, no baixo, e Wagner Lamounier, nos vocais e guitarra. Em meados de 1985, Wagner deixou o Sepultura para formar a banda de black metal Sarcófago, o que levou Max para os vocais e fez com que o guitarrista Jairo Guedes entrasse no grupo. 

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Dois anos depois, Jairo deixou o Sepultura e Andreas Kisser assumiu as guitarras, completando a formação durante dez anos, até a saída de Max e, posteriormente, de Igor. De 2000 para cá, o estadunidense Derrick Green assumiu os vocais do grupo. A bateria foi tocada por Jean Dolabella e Eloy Casagrande, mas para a turnê de despedida, o jovem jazzista Greyson Nekrutman foi escolhido. O músico leva no currículo contribuições para o Suicidal Tendencies, William DuVall, Billy Howerdel e Veronica Swift.

Depois de tantos renascimentos, o Sepultura se despede dos palcos com uma turnê de 18 meses, que passará por 80 países. O primeiro show aconteceu na Arena Hall, em Belo Horizonte, no dia 1° de março deste ano. Desde então, tocaram em Juiz de Fora, Brasília, Uberlândia, Curitiba, Porto Alegre, Florianópolis e, a partir de abril, a tour desembarca na América Latina. 

Misturando subgêneros do metal, como thrash e death metal, com sonoridades de povos originários de diversos cantos do mundo, a banda tem feito gerações de fãs vibrarem e se emocionarem em seus últimos shows. O guitarrista Andreas Kisser conversou com a Noize sobre esse momento do Sepultura e afirmou que não descarta um reencontro com ex-membros no último show, que acontecerá em São Paulo no ano que vem.  

O Sepultura é uma das principais bandas responsáveis por levar o nome do metal brasileiro para o mundo. No som de vocês, tem muito da cultura brasileira e uma valorização incomparável dos povos originários. Como é se despedir em um momento em que esses povos pedem ajuda?

Infelizmente, quando o Sepultura começou, o problema já era sério há 40 anos e até muito antes disso. Isso não é um “privilégio” do Brasil. Eu morei nos Estados Unidos, no estado do Arizona e lá a gente vê o que sobrou das culturas indígenas, isoladas praticamente em reservas. Tanto na Europa, como na África e os aborígenes na Austrália. E aqui no Brasil tem isso desde que começou a colonização. Acho que a diferença de hoje é a percepção da sociedade em relação a esse problema, que sempre foi muito grave. Desmatamento, desrespeito à fauna, aos animais, ao próprio ser humano, às tribos. A gente tem muito a aprender com eles.

Como essa questão se manteve presente na história da banda? 

O Sepultura fez um trabalho com os Xavantes em 1995 pro álbum Roots (1996). A gente passou dois dias na aldeia, no Mato Grosso do Sul. E cara, foi uma experiência fantástica de ver outro formato de vida, de sair um pouco daquela coisa da selva de pedra, do relógio, do tempo. Eu lembro de ter uma outra percepção do tempo. O relógio perdeu todo sentido ao ver como eles se relacionavam com a natureza. Acho que o Sepultura sempre trouxe isso por ser uma qualidade. Temos muita influência dos povos originários na nossa cultura, gastronomia, vocabulário. A gente começou a botar isso na música muito pela coisa cultural musical, nem foi um protesto político. A gente entrou em contato diretamente com a tribo Xavantes, não fomos através da Funai ou outro órgão político. Fomos para lá e trocamos ideias musicais. A gente queria entender um pouco da pintura, o que que eles usam para pintar o rosto, o que que eles comem, qual a relação deles com futebol. 

Quais são as suas memórias desses encontros? 

Lembro que o Max deixou um violão, o que ele usou para gravar o disco, porque eles não tinham visto um violão. Tudo que a gente fez foi traduzido. E quando você percebe que essa interação é entre pessoas, entendemos que somos todos iguais. O que eu quero dizer, é que as pessoas são pessoas. Nós somos vítimas da nossa própria cultura, dos livros que a gente leu, da família que a gente veio, do país onde a gente nasceu. Por que o árabe vê o mundo de uma forma diferente? Tem um certo ou errado? Não, não tem ninguém errado. É só uma perspectiva diferente, a educação de cada um, e é isso que a gente precisa respeitar. A partir do momento em que a gente respeita e entende as diferenças, é que a gente aprende um com o outro. Porque se todo mundo fosse igual, o que a gente ia aprender? Nada! Então, é respeito às diferenças, respeito aos pontos de vista de o que é o universo, o que é Deus, o que é morte, o que é vida. 

Você acha que essa visita mudou a forma de vocês entenderem e fazerem música?

Antes desse processo, a gente já pensava em fazer uma música que não tem influência europeia, não tem uma influência do invasor, do colonizador. Não tem influência da música clássica, do rock and roll, do blues. É uma outra coisa, é uma relação com sons da natureza. Eles [indígenas] usavam chocalhos nos braços e nas pernas, usavam muita voz e as palmas, batendo o pé no chão, produzindo sons com o que existia ali. E isso sempre foi uma coisa muito importante para gente: de realmente a arte, a música, não estar necessariamente no instrumento. Está na atitude, no que vem de dentro, como você expressa esse sentimento, essas emoções através dos sons, através de palavras, através de harmonias. E eles têm a deles, que a gente conseguiu interagir à nossa maneira, tocando instrumentos acústicos, e que criou ali uma coisa musical sensacional, uma coisa muito única na música, não só brasileira, mas mundial.


Nesses 40 anos, o Sepultura impactou, pelo menos, duas gerações de fãs: aquela que viu a banda nascer e acompanha até hoje; e aquela que aprendeu a amar vocês com a primeira geração e hoje se despede. Qual é o sentimento de ver essas gerações nos shows da turnê?

Só comprova que o heavy metal é uma coisa de família. Muita gente, que não conhece o heavy metal e vê de fora, acha que é uma coisa violenta, satânica, que não respeita, e é completamente ao contrário. O povo do metal, o fã do metal, não compra pirata, ele compra produto oficial, ele se organiza para ir no show, ele não está ali pra ficar ficar azarando mulher do outro ou para usar golpe de jiu-jitsu que aprendeu semana passada. Não tem violência, tem a agressividade da música, assim como tem a agressividade natural do dia a dia e cada um lida com ela de uma forma ou de outra. O heavy metal é muito família. Você pode conversar com vários músicos que estão no heavy metal, desde Metallica ou Motorhead. Não é um um golpe de marketing ou o hit número um da Billboard, entendeu? Não é isso. É uma coisa muito mais profunda, mais verdadeira, mais real. Escutar Black Sabbath com o pai e depois mostrar pra ele o Slayer, a evolução do estilo e tudo. Então, é muito respeitoso. O som do Sepultura você vê da vovó até o netinho juntos curtindo um show. É maravilhoso ver isso. Tem uma representatividade fortíssima feminina dentro do heavy metal, Crypta e Nervosa são dois exemplos, além de outras vocalistas que estão em grandes bandas aqui no Brasil, como Torture Squad e Hatefulmurder. A homossexualidade: Rob Halford, vocalista do Judas Priest, “saiu do armário” e nem por isso o fã de heavy metal queimou disco ou fez boicote. O heavy metal abraça essas diferenças, é algo muito democrático, muito diversificado. O Sepultura tocou em mais de 80 países. Independente de religião e política, a música abre portas. Até no Irã, onde o heavy metal é proibido, existem bandas desse estilo. Não tem como parar isso. É uma coisa muito real, que veio do blues, rock and roll. Então, é muito triste que muita gente ainda veja o heavy metal como uma coisa violenta e destrutiva – e é totalmente o contrário.

Ainda dentro da questão geracional, temos o Greyson Nekrutman nessa turnê. Ele faz parte da segunda geração, que não viu o Sepultura nascer, mas acompanhou a carreira e agora está fazendo parte dessa despedida. Como foi a escolha dele para esse momento da banda?

Pois é, a gente também tem muita sorte de aparecer uns “monstros” desses quando a gente precisa. E o Sepultura realmente precisa de um baterista à altura. O Igor Cavalera foi o baterista que criou esse estilo, essa linguagem Sepultura, misturando as percussões brasileiras com as “porradas” do trash metal, e os bateristas que vieram depois, como Jean Dolabella e Eloy Casagrande, levaram isso além. O Greyson é mais um! Vinte e um anos, baterista fenomenal, uma pessoa fantástica com um astral maravilhoso! O fã brasileiro abraçou ele de primeira. Primeiro show [da turnê], em Belo Horizonte, todo mundo gritando o nome dele. É essa coisa de família do heavy metal. O berço dele é do jazz, mas isso não é uma coisa que o limita. Essas terminologias, para o músico, elas não fazem nenhum sentido. Se eu estou tocando com Chitãozinho e Xororó, Samuel Rosa, ou Metallica, eu estou tocando música. A gente [músicos] se entende, de alguma forma ou de outra, e os estilos são inventados por gente de fora. Sempre foi algum DJ ou VJ que inventou: o rock and roll foi um DJ da rádio, o heavy metal foi um outro DJ não sei da onde, porque você tem que ter a prateleira para vender, mas no final, é tudo música! E o Greyson veio para agregar, e esse mês de shows que a gente fez no Brasil foram inesquecíveis! Os melhores shows da nossa história.


Em um primeiro momento, você afirmou que a turnê não contaria com ex-integrantes da banda, mas depois não descartou a possibilidade de um reencontro no último show da turnê, em 2025. Qual é o status disso?

Não temos nada definido. O que está definido é que nós vamos fazer a turnê até o final de 2025 e passar pelo máximo de lugares. O mais importante de tudo é celebrar o momento. Então, a participação de ex-membros não é fundamental. Ela seria um lance a mais, e a gente já fez isso várias vezes: tocamos com Jairo e com o Jean – isso não é uma novidade. Obviamente, temos essa vontade de reunir todo mundo no último show, seria interessante. Não só quem participou, mas bandas irmãs como Ratos de Porão, Sacred Reich, e tantas outras bandas fazem parte da história do Sepultura. Eu não quero perder energia dos shows que a gente está fazendo agora pensando no que vai acontecer daqui um ano. Eu quero gente com espírito positivo, que vem para somar, que vem para celebrar, para curtir o momento e é isso. Ninguém aqui tá querendo fazer sessão de terapia para ver quem tá certo ou não. O lance é celebrar, tocar a música que os fãs querem ouvir e a gente se sentir bem no palco. Não quero ficar forçando situações por causa de alguns conceitos ou preconceitos que a gente tinha.

Você já falou de Crypta e de algumas outras bandas parceiras. Quais bandas novas do metal brasileiro você deixaria como indicação para os fãs?

Claustrofobia. É uma banda que está na estrada há algum tempo. Eles moram fora do Brasil, mas estão fazendo shows, turnês. Uma galera que faz um trash muito competente, não tem medo de misturar, de trazer outras influências, e eu acho que eles estão num momento muito forte. Espero que esse ano seja o momento do Claustrofobia despontar por aí. 

O nome da turnê de despedida é “Celebrating life through death”. De onde veio essa necessidade de celebrar a vida passando pela morte?
Na verdade, a celebração da vida através da morte é o que a vida é, né? Se você for definir a vida, é isso: celebrar o que a gente tem até morrermos. Obviamente, foi um decisão influenciada pela minha experiência com a minha esposa, a Patrícia, que faleceu de câncer há dois anos. Eu passei por essa experiência e coloquei para fora, falei abertamente do que aconteceu, da minha indignação com tudoque tava acontecendo, do meu despreparo como cidadão brasileiro em lidar com uma situação como essa. Não se fala em eutanásia, suicídio assistido, testamento vital, basicamente, não se fala de morte no país. Eu percebi que isso é um buraco gigantesco na sociedade brasileira, algo que todo mundo ignora. Tem muita gente falando e escrevendo, obviamente, que eu acabei conhecendo depois por conta desse processo. 

Quais projetos você desenvolveu a partir dessa experiência? 

Comecei a expor isso: criei o movimento Maetricia, justamente para estimular o assunto “morte”, para estimular as pessoas a conversarem com os familiares e com as crianças. A gente tem que ser educado sobre a morte desde que a gente nasce porque ela é um fato! E você vai ter que lidar com inventário, com o funeral,com os parentes, com um monte de coisas que a gente deixa para depois. Quando acontece, é uma avalanche emocional. Então, eu percebi que dá para se preparar melhor para isso, porque minha esposa, a Patrícia, era uma pessoa que sempre falava de morte de uma maneira muito leve, muito tranquila desde que a gente namorava. Ela falava “pô, quando morrer não vai esquecer de botar meu travesseiro, meu cobertor, meia no meu pé, porque não quero ficar com friol”. A gente dava risada, mas quando ela faleceu, todo mundo sabia o que ela queria. Foi a coisa mais linda para quem fica fazer o desejo. Por exemplo, o funeral do Zé Celso Martinez, do Teatro Oficina, foi a coisa mais linda do mundo. Aquilo que eu queria para mim, aquilo que eu queria para todo mundo! Celebrar a vida, ser agradecido. A morte não é punição, ela é educação, é limite. Um filme que não tem fim não tem sentido. O fim é tudo, é sentido, é conclusão. O fim é atendimento, é aceitação. Criei também o Patfest, que arrecada fundos para a Favela Compassiva, que leva o cuidado paliativo para as favelas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, para pessoas. A morte ensina, é uma professora, e me estimulou muito a não ficar jogado na minha casa com pena de mim mesmo. Então, esse é o meu luto, é o meu processo de luto, da minha família: se juntar e estimular as pessoas a se prepararem melhor porque é possível. E essa turnê do Sepultura tem muito a ver com isso.

Depois de celebrar a vida através da morte, o que fica do Sepultura? 

O Sepultura não vai acabar nunca! O Led Zeppelin acabou em 1980 e ainda é a banda que mais vende discos até hoje. Eu acho que a turnê e discos novos é uma parte do que é uma banda. O Sepultura tem vários produtos, tem documentário, tem várias coisas que vão ficar. A gente vai fazer uma exposição com tudo que a gente tem da nossa história. Nós temos um arquivo fantástico de tudo que saiu na imprensa, posters de turnês, camisetas de merchandise, instrumentos… A nossa vontade é organizar isso ao término da tour, fazer essa exposição que possa viajar o mundo. O futuro vem de acordo com o que a gente faz com o presente, é a consequência do hoje. Então, a gente tá vivendo muito o hoje, celebrando o hoje. E o que vier a acontecer, vamos lidar na hora que tiver que lidar. 

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08/04/2024

Thuanny Judes

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