Fim de feriado prolongado. Aliás, se tem uma coisa boa na vida é feriado prolongado. Óbvio que existem várias outras maravilhas que a vida nos proporciona, mas aquela segunda-feira quase revolucionária, que luta pelos direitos dos trabalhadores e espicha o domingo até terça-feira, merece todo carinho e amor. Esse feriado era um desses mais preguiçosos, que fazem uma convocatória para não sairmos de casa: uma garoa teimosa perdurou todos os dias de ócio que antecederam a Proclamação da República. Cenário perfeito para maratonas intermináveis no Netflix, se não existisse um motivo mais do que justo para deixar sofá e lençóis de lado: Air estava em solo paulista, celebrando seus vinte anos de carreira (bateu a idade aí?) no que, segundo os próprios, será o último show por aqui antes de um possível hiato de de três anos.
Confesso que Air foi aquela banda que sempre respeitei muito, mas acabei ouvindo mais seus semelhantes franceses da mesma época (Sebastien Tellier, Kavinsky, M83 ou o próprio Daft Punk) do que o duo formado por Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel. Não fiz isso por não gostarem dele, mas simplesmente porque não tinha batido em mim de jeito ainda. Meus amigos e namorada sempre me falaram que a banda ao vivo era uma outra coisa, um grande acontecimento que faria você até se arrepender um pouco de não ter começado a ouvir antes, então pensei que a apresentação de ontem funcionaria como o tira-teima da redenção: a possibilidade de bater o arrependimento de não ter vivido a banda antes, mas a alegria de ter ouvido ainda a tempo de tê-los visto ao vivo. Dito e feito. Que show, meu povo. Que banda!
Chegamos exatamente na hora do show. Inclusive, sem saber que ele estava para começar. A distância do olhar alcançado pelo Uber, fiquei com a sensação de que a casa estava vazia. Entrada fácil, tudo tranquilo. Ia até comprar uma cerveja, quando ouvi o primeiro teclado ao fundo. Fui espichar o olhar para dentro da casa, achando que talvez seria algum roadie fazendo testes, quando me deparei com um Audio completamente lotado, luzes roxas e azuis, fumaça, muitos celulares levantados, alguns feixes de luz prateada cruzando como lasers os olhares da banda completamente posta: Godin e Dunckel acompanhados de um baterista e mais uma mesa cheio de sintetizadores. Os quatro músicos, todos de branco, estavam a postos, guerreiros da paz a iniciar uma jornada transcendental pela carreira musical de uma banda que sempre trabalhou o sonho e os desejos em suas canções.
Desejos e sonhos. Não é a melhor definição possível, mas acho que cabe bem para descrever o som da banda. É um som penetrante, que se alimenta como raízes de um carvalho a memórias, sejam elas vividas ou apenas imaginadas. Cada acorde de guitarra, som reverberado, voz sussurrada ou cantada opacamente num coro entre toda a banda; cada bumbo pisado, palmas, camadas e camadas de sintetizadores que vão da matemática sonora de um Kraftwerk ao caos da pura experimentação; todo o som do Air trabalha com reminiscências. No palco, luzes oitentistas que surgiam do chão, das laterais, do fundo, colocando a banda em silhuetas das mais diversas cores. Contrastes de claridão com rosa esfumaçado lembravam clipes do Abba; vermelho sangue com escuro, a entrada de Stranger Things. Em poucos momentos conseguíamos definir com clareza as feições de cada membro. A sensação é de que eles surgiram de uma espaçonave prontos para trazer uma mensagem para a plateia: ouçam nossa música e transem mais.
Sim, o som do Air é transante demais. Tem um quê levemente tântrico, talvez a repetição de batidas numa camada quase reptiliana, suave, persistente. Não era raro vermos casais apaixonados se pegando ao som de “Below Light” ou “Playground Love”. Todo o não-dito das músicas instrumentais e o não-visto da banda pelas luzes e fumaças apenas reforçavam a sensação de certa privacidade voyeurística do show.
Após uma hora, na qual ouvimos clássicos da banda, como “Remember”, “How Does It Make You Feel?” e “J’ai dormi sous l’eau”, param e saem. O tempo tinha passado rápido demais, parecia que o momento na qual olhei de longe o primeiro acorde sobre uma plateia lotada com luzes de flash a iluminar o ambiente tinha sido há vinte minutos. Estive provavelmente em algum outro lugar nesse espaço de tempo que aconteceu o show e não pude perceber, ou a banda praticou algum ritual de aceleração do tempo. Aos aplausos de bis, após cinco minutos, sob luzes vermelhas e, agora, ovação pura da plateia, eles voltam com “Sexy Boy:, música que me traz às memórias cenas como do filme Drive, ao som de Kavinsky e luzes neon em azul e vermelho, na qual a repetição do refrão é tudo que precisa ser dito para sentir a aura luxuriante do momento.
Com o fim da canção, a banda começa sutilmente os primeiros acordes do grand finale. “La Femme D’Argent”, música que chega até a flertar com as batidas de uma bossa nova em certo momento, começara. A plateia sente que é o momento de catarse do show, conforme a progressão musical vai culminando para uma psicodelia. Quer dizer, uma psicodelia imensa. Com quase dez minutos de improvisação na qual teve microfone virado para a plateia bater palma, solos de sintetizadores, guitarra, baterias e o que mais pudesse solar ali, todos espectadores dançavam languidamente e soltos de amarras; olhos fechados que se cruzavam sem saber e passeavam pelas sensações causadas pela música. Um momento que explodiu no mais puro ruído final, uma versão noturna e cheia de lascívia de “A Day In The Life”.
Com exatos 80 minutos de show, a sensação foi de que tudo passou rápido demais. Maravilhoso e intenso, mas rápido demais. Óbvio que tal sensação é sempre excelente, sinal de que não notamos de tão imersos que estávamos na experiência proposta pelos artistas. Mas é que poderia ter sido um pouco mais longo. Eu, recém convertido, saí triste em saber que provavelmente os verei apenas em três anos. A vontade era de ter um show por semestre deles. Imagino os fãs que os acompanham desde quando começaram, em 1996, a sensação lancinante de uma agulhada que fulmina de prazer e passa sua sensação na velocidade da luz. Se tivessem tocado toda a coletânea Twentyears, lançada esse ano, teríamos umas duas horas de show, aproximadamente. Teria sido mais satisfatório, mas, talvez, ainda assim poderia soar pouco. Será que o melhor mesmo é o show não ter se alongado e termos saído com aquele pico de serotonina que nos faz querer mais, como uma droga? Se Air sempre trabalhou tão bem sonhos e desejos durante toda sua carreira, não é exagero dizer que o show é a cartada final da banda, o momento em que sentimos bater de vez tudo que nos foi introjetado, vivenciado e proposto por eles. E, agora, só nos resta aceitar o sabático deles e esperarmos pelo próximo show.