Certo dia, nos anos 2000, Bezerra da Silva ligou para o filho e também músico, Italo, dizendo que ele precisava conhecer “um menino” que queria misturar rap com samba. Italo morava nos Estados Unidos, mas o pai insistiu que eles deveriam trabalhar juntos. O tal “menino” era Marcelo D2.
Logo, D2 chamou Italo para tocar — “eu ainda era Tuca, meu apelido de infância”, conta ele para a Noize. Logo ficaram amigos,Tuca não saia da casa do D2. Assim, nasceu uma história de admiração mútua entre os Bezerra e Marcelo. Logo, todos estavam na mesma procura pela batida perfeita.
Italo Bezerra, um dos quatro filhos do sambista, é único que segue a carreira do pai, como cantor e percussionista. Já gravou também com Beth Carvalho, Fernanda Abreu, até com a Mangueira — você já deve ter visto o nome dele em alguma ficha técnica por aí.
Já Bezerra da Silva, bem, dispensa apresentações. Foi a voz do partido-alto, do samba cotidiano, da denúncia social, do humor malandro. Criticou a violência da polícia contra quem anda pelas ruas com um violão ou quem quer plantar uma erva e não pode.
Marcelo D2 cresceu ouvindo“Malandragem Dá Um Tempo”, “A Semente”, “Bicho Feroz” ou a autoexplicativa “A Fumaça já Subiu Pra Cuca”. Se existe D2, é porque existiu Bezerra.
D2, que se criou no skate, no hardcore, no hip hop e no partido alto, deve ter se impressionado pelas capas dos discos do sambista que, por si sós, passavam uma mensagem imensa, uma crítica social fina e bem-humorada, uma aula de semiótica. Tanto que, em 2010, lança um disco em homenagem ao ídolo, Marcelo D2 canta: Bezerra da Silva, com a capa referenciando o genial Eu Não Sou Santo (1990).
As semelhanças entre D2 e Bezerra são, em analogia, como as costuras que ligam o samba ao rap brasileiro. Os dois bebem da mesma fonte, o repente nordestino. O partido-alto de Bezerra nasce das umbigadas africanas e, ao longo do tempo, se consolida como um samba de improviso. Herda do repente nordestino o embate com jogo de rimas. Se no repente tem o desafio, o rap tem os duelos. No fim, D2 estava mostrando um jeito de se fazer rap à nossa moda, diretamente influenciado por essas referências brasileiras, que têm em Bezerra da Silva um ponto de congruência.
Por bem querer do destino, fã e ídolo se conheceram. Primeiro, o Planet Hemp usou o sample de “Cara De Cruel” em Contexto”. Depois, dividiram os palcos. O sambista chegou a estrelar o premiado clipe de “Qual É?”.
Neste papo com a Noize, Italo Bezerra rememora a relação com o pai e os tempos em que tocava com o D2.
Você começa sua carreira cantando com seu pai, né?
Isso. Com uns 14 anos, eu queria ser baterista. Quando comecei a praticar, descobri que meu pai não queria ser cantor, ele queria ser baterista também [risos]. Nessa época, meu pai era funcionário da orquestra da Globo, lá na Rua Assunção, em Botafogo, e ele começou a me levar no estúdio. Foi aí que eu fiquei mais interessado em ser baterista. Depois que meu pai se aposentou, não tive mais vontade de seguir no instrumento, mas continuei como percussionista, que sou até hoje.
Quando conheci o Josimar Monteiro, produtor da velha guarda da Mangueira, as portas começaram a se abrir. Mas meu pai sempre ensinou a gente a correr atrás sozinho, para a gente poder dar valor para as conquistas.
Legal! Vi em uma entrevista que foi seu pai que intermediou o seu contato com o D2. Como foi isso?
Eu estava morando nos Estados Unidos, aí meu pai me ligou, me contou sobre o D2. Disse que tinha um menino do rap, que tava gravando um disco que envolvia o samba, que eu deveria voltar pro Brasil para tocar com ele. Aí, a gente marcou um almoço, começamos a trocar ideia, ele me convidou pra gravar no disco dele, acho que foi o À Procura da Batida Perfeita…. Chamei também o pessoal da Mangueira.
Eu conheci o Racionais Mc ‘s nesses bastidores. Eu era moleque, lembro direitinho: tava eu, meu pai e os Racionais.
E você passava um tempo na casa do D2?
A gente morava em Laranjeiras, eu ia para a casa dele sempre e voltava tarde. Até que um dia acabei ficando por lá [risos]. Ele tinha ideias, a gente tocava, era bem legal.
E o D2 era fã do seu pai, né.
Sim, sempre foi muito fã, tinha um respeito muito grande pelo meu pai. Meu pai também tinha um respeito muito grande por ele. Eles foram amigos.
Eu vivi mais com meu pai do que com qualquer outra pessoa. Viajando juntos, trabalhando… estávamos o tempo inteiro um do lado do outro. E meu pai era um estudioso, estudou piano… tinha uma sabedoria fora do normal. Era mesmo inspirador estar do lado dele.
Você lembra o que achou do [álbum] Marcelo D2 canta Bezerra da Silva (2010)?
Achei super legal, né? Ninguém teve essa ideia de homenageá-lo, ele abriu essa janela. Achei respeitoso, um trabalho muito inteligente, muito bonito.
Você falou de quando conheceu os Racionais…. foi nessa época, quando tocava com o Marcelo, que teve mais contato com o rap?
Além do samba, eu escutava muito charme [o legítimo R & B carioca]. Quando comecei a trabalhar com o D2, comecei a me interessar mais pelo rap. Lembro de ouvir “Qual mentira vou acreditar” [do álbum Sobrevivendo no Inferno (1997)] e achar legal o tema, a narrativa. Depois que fui descobrir quem era o Racionais Mc’s, quem era Mano Brown, KL Jay. Conheci também o Rappin’ Hood, trabalhamos juntos.
Vi que essa história do nosso rap começou com o Jair Rodrigues cantando “Deixa que digam que pensem, que falem”…. ai, passei a gostar mais.
Qual foi o momento mais marcante da sua carreira?
Quando entrei pela primeira vez num estúdio de gravação, dei de cara com o Mestre Marçal, Luna e Eliseu, os pioneiros do tamborim. Eu ali, um menino, do lado daqueles monstros sagrados! Lembro que ele olhou para mim e falou: “ó, faz só o básico pra você não nos atrapalhar” [risos]. Segui o conselho e deu certo.
Mas os momentos com a Beth Carvalho também foram muito especiais. Ela me ensinou muito, o olhar profissional dela. A grande madrinha. Ela deu oportunidade pra todo mundo que faz sucesso hoje no samba.
Me ensinou a ser profissional, a respeitar o tempo dos outros, a chegar no lugar com uma hora de antecedência. Tudo o que a gente fazia, pensava em como ela gostaria que fosse feito.
Como vocês se conheceram?
Foi no estúdio, gravamos um tributo à Dona Ivone. Depois, ela ouviu a faixa e perguntou se era eu quem tinha tocado. Ela falou: “ você grava de novo? Eu falei “gravo”. Ela gostou e me chamou pra fazer o Pagode de Mesa 1 (1999).
E qual o momento mais marcante que você teve com seu pai?
Ah… são tantos. Mas não esqueço quando cheguei em casa num dia de manhã, depois de cantar pela primeira vez com a Beth Carvalho. Fiquei todo empolgado, falei com meu pai que não queria só tocar, agora queria cantar. Lembro dele olhando pra minha cara, passando manteiga no biscoito (risos). Ele respondeu: “Legal… vai cantar o quê?”. Eu falei, “samba!”. E ele” “então vou ser seu concorrente número 1”. É mole? Me deu um banho de água fria [risos].
Depois, ele me explicou tudinho, todo o caminho das pedras que eu tinha de percorrer. Ele perguntou: “Você quer construir carreira ou fazer sucesso?”. Eu disse que queria seguir carreira. Então, ele me falou que eu deveria mostrar algo diferente do que estava acontecendo, que me fizesse destacar diante das pessoas. Mas que, o mais importante de tudo, era que eu fosse sempre eu mesmo. E eu vejo que ele também foi assim. Esse foi o maior conselho que ele me deu.