Um “átomo de existência”, uma “partícula de vida”. “É bom pontuar antes que confundam com outro ‘pó’”, brinca, sobre o nome da banda, o compositor Kleuber Garcêz, dos goianos da Pó de Ser, que recentemente lançou seu disco de estreia, o elogiado A Dança da Canção Incerta. “Não é nada curioso, na verdade, que a inspiração do nome veio enquanto assistíamos ao show de um dos nossos mestres do experimentalismo musical brasileiro, o gigante Hermeto Pascoal”, diz Kleuber.
Falando em experimentalismo, são múltiplas influências, nacionais e também estrangeiras, presentes na combustão sonora de alta octanagem da Pó de Ser. No campo das letras, literatura beat, poesia marginal (nomes como Waly Salomão e Pio Vargas – poeta goiano outsider que o Paulo Leminski viu como seu possível “sucessor” – marcam presença) e muita filosofia. Na música, sambas de Noel Rosa, o conjunto da obra dos Mutantes, Beatles, The Kinks, The Who, Raul Seixas, Lou Reed, dão o tom do disco. E por aí vai.
Tal ênfase na sonoridade, nas composições – e igualmente nas histórias – é o resultado de uma parceria entre os amigos Kleuber Garcêz e Diego de Moraes (Diego & Sindicato) que um dia encontraram-se competindo num festival e, quase na mesma hora, começaram a fazer música sem parar. A identificação veio no ato. A ideia da banda rolou, conta Garcêz, que responde a essa entrevista exclusiva para a NOIZE, dE uma necessidade de fazer algo diferente do que os dois vinham fazendo dentro de seus estilos – Diego no rock e o Kleuber na famigerada “MPB”. “Foi uma fuga, ou melhor, uma brincadeira que acabou em banda, que rendeu um single, que depois virou um EP e que, por último, resultou em um álbum”.
O nome Pó de Ser tem algum significado especial ou metáfora escondida?
Não, só essa brincadeira com o trocadilho da palavra “pode ser”, que se refere a permissão, a ausência de preconceito. E, ligado a isso, Pó de Ser é o “átomo de existência”, a menor partícula do universo que formam os seres e da importância das coisas grandes e pequenas.
Qual é a “certa” sobre A Dança da Canção Incerta?
A “Dança da Canção Incerta”, canção que intitula o nosso primeiro álbum, marca o encontro de dois amigos compositores que resolveram experimentar possibilidades fora dos seus “lares musicais”. Eu na MPB e o Diego no rock. Além dessa vontade, ainda permeia passionalidades, vivências, visões políticas e humor embutidos na fórmula. O resultado, na nossa concepção, é um disco torto e visceral. A Dança da Canção Incerta fala de riscos e surpresas da vida e de como temos que dançar conforme a música.
Como vocês se conheceram?
Conheci Diego num festival de música competitiva, em 2006, e fiquei estarrecido com sua apresentação. Fui falar com ele assim que desceu do palco. Ficamos conversando, ele me mostrou outras canções e, na final do festival, levei um disco do Luis Tatit pra ele conhecer – eu achava que havia semelhanças no que eles faziam. A partir daí ficamos amigos e, um ano depois, começamos a compor compulsivamente. Voltamos juntos nesse mesmo festival três anos depois, mas, dessa vez, não como concorrentes e sim com a Pó de Ser.
Mais do que nunca, a cena de Goiânia fervilha ao som de novas bandas (Carne Doce, Peixefante, Luziluzia, Hellbenders). Nesse amplo contexto, como a Pó de Ser inclui-se na atual safra?
Na verdade, já somos veteranos em relação a essa nova cena. Antes era o stoner rock que comandava, com muitas bandas cantando em inglês. A Pó de Ser foi das primeiras a escancarar em português e misturar outros gêneros de forma natural e, às vezes, provocativa mesmo. Não éramos bem vistos pelo pessoal do rock (que nos achavam MPB demais) nem pelo da MPB (que nos tinham como rock demais). Mais isso, ainda bem, passou. A nova cena goiana está crescendo com uma geração que nasceu híbrida e instigada a experimentar.
Itamar Assumpção (que no disco ganhou uma releitura de “Leonor”), Jards Macalé e Sérgio Sampaio são alguns dos vultos míticos da cultura brasileira que se fazem presentes no som do álbum. Desse grosso caldo de inspirações, o resultado sonoro consegue ser pop e experimental. As músicas “grudam” no ouvido. Qual o “segredo de liquidificador”?
O segredo é entender que Itamar Assumpção e Odair José, que são artistas de universos tão distintos, por exemplo, têm igual importância na cultura pop brasileira. A nossa histórica miscigenação musical é rica demais para caber numa lata. As referências literárias e musicais do underground, da vanguarda paulista, do tropicalismo, enfim, vão se integrar à literatura de cordel, aos “catecismos” de Carlos Zéfiro, às rádios populares, as jukebox de bares e puteiros. É orgânico esse entendimento, por isso, mesmo com tanta referência, as canções soam tão naturalmente pop.
O Fernando Catatau e sua flamejante guitarra atuam em duas faixas do disco (“Pode Apostar” e “Pó de Ser”). O que ele veio somar ao som da banda?
Fernando Catatau, pra mim, além de exímio guitarrista, é um dos responsáveis por esse momento em que as bandas têm se preocupado com aspectos como timbragem, textura, essa coisa vintage setentista que o Cidadão Instigado trouxe e que muito nos agrada. Além de ele ser um dos caras que fez com que os holofotes se virassem para a música independente. Gosto do experimentalismo, do lado brega, das esquisitices, dos arranjos riquíssimos que ele faz e de seu jeito de compor e cantar. O Catatau ter participado desse disco foi muito mais do que uma realização pessoal – foi uma forma de dizer que juntos pensamos a música brasileira. Adoramos o resultado, foi surpreendente.
Como é cantar em português em Goiânia, cidade onde o idioma de preferência das bandas (ainda) é o inglês?
A canção “Bicho Urbano” meio que faz um panorama da cidade (do ponto de vista que quem usa o ponto de ônibus). O verso “tão cosmopolita, meu curral” diz muito a respeito. Particularmente, não vejo problemas nos dois idiomas. Caetano fez do Transa, que é um disco bilíngue, um clássico. Mesmo eu entendendo que a música é maior que o idioma, eu me reconheço na minha língua mãe. Gostamos de falar para as pessoas que entendem nosso idioma.
No século 21, o psicodelismo brasileiro, especialmente o dos anos 70, tem sido extremamente reouvido e revalorizado. Quais os tesouros que aí ainda se escondem?
Engraçado que nossa música “De Repente” (que começa com a frase “no século 21 sou só um sem ninguém a me conduzir”) do EP Tudo Torto em Linha Reta foi comparada ao enigmático Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, por conta de sua agreste psicodelia. Em A Dança da Canção Incerta fizemos uma homenagem aos criadores da psicodelia, da lisergia e do LSD. Mapeando seus efeitos e os personagens mais emblemáticos. A psicodelia é um elemento do qual nos valemos em nossa música, porém, não somos uma banda psicodélica de fato. Nesse momento, nossos colegas aqui de Goiânia, os Boogarins, têm levado, com muita originalidade, a psicodelia nacional para o mundo, influenciando novas gerações.
Quão presente é a capital de Goiás na concepção artística e intelectual do disco?
Goiânia tem 82 anos, uma jovem capital planejada que ainda está em processo de formação cultural. Vivemos entre caipiras natos e hipsters que renegam essa herança cultural. Um dos motivos pelos quais muitas bandas cantam em inglês – do mesmo modo que as duplas sertanejas reforçam o ranço de terra caipira – vem dessa vontade de “não ser”. “Bicho Urbano” é nossa homenagem a cidade sem ufanismo, bairrismo ou vergonha dela. As peculiaridades de ser o centro do Brasil e, ao mesmo tempo, ser o interior do Brasil nos dá características únicas. Tentamos nos aproveitar dessa condição. Não cantamos Goiânia como Caymmi canta a Bahia, mas ela está impregnada em nosso jeito de pensar o mundo a partir daqui.
Qual é o futuro da música brasileira?
Espero sinceramente que os veículos de comunicação de massa voltem a incluir a música brasileira em suas programações. A música brasileira nunca esteve tão bem, tão criativa e tão diversificada. O problema é a distribuição e a difusão dessa música. Chegando às pessoas agora, o futuro da música brasileira será melhor aqui e também no resto do mundo.
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