Resenha | Emicida e a importância da história

24/08/2015

Powered by WP Bannerize

Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Victor Petreche

24/08/2015

Quando ouvi pela primeira vez Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, o novo álbum do Emicida, já fiquei assustado. Bomba atrás de bomba, do começo ao fim, ele ressoa em nosso ouvido como uma grande paulada sobre nossa formação, passada e presente. É um álbum que consegue conectar toda uma história brasileira quase nunca contada nas salas de aula, mas que deveria. Uma história esquecida que serve para entendermos muitos de nossos problemas sociais hoje, como o preconceito desvelado, homofobia, racismo, abuso de autoridade e assim por diante. Uma história de luta e esperança, mesmo quando tudo parece ser breu e fim. A história de quem é maioria num país que busca (já buscou muito mais, hoje é bem melhor, mas ainda é assim) se sustentar em pilares de minorias. O álbum de Emicida busca trazer luz para os problemas que existiram e existem, e tenta apontar soluções. Seu show de lançamento, no Sesc Pinheiros, na última sexta-feira, quatro dias após o cantor completar seus 30 anos, mostrou isso com maestria.

Logo no início, quando o locutor anunciava as atrações do Sesc e o próprio começo do show, já deu para entender que estaríamos diante de algo novo, que afrontaria as tradições e a etiqueta comum. Pode ser um símbolo simples, mas ninguém se sentou para ver o show. Ninguém quis respeitar as regras da casa, pois o espaço ali era de romper com as mesmas e estabelecer novos paradigmas. Pode ser simples mesmo, mas essa imagem tem seu poder e valor.

*

Quando as cortinas se abriram, era possível ver um palco com luzes em tons de verde e amarelo, ambos escuros, com a parede ao fundo trazendo motivos geométricos africanos e um grafite no meio. Era claro que estávamos num território onde a África seria traduzida para a realidade do Brasil periférico hoje. A África que, de berço do mundo, tornou-se periferia abandonada nos dias de hoje graças aos séculos de colonização que ainda vigoram no continente, em todas as formas. O cenário já dizia para não esquecermos quem é a nossa mãe enquanto humanos. Chocalhos lembrando grilões se arrastando no chão eram tocados. Um tambor que lembrava galeras levando escravos, mas também poderia se referir aos festejos de tribos africanas, começou a dar o tom, enquanto os músicos da banda iam, um a um, pedir benção à figura central, na sombra. Quando toda a – excelente – banda se postou em seus lugares, uma jam session se iniciou. As luzes que mantinham a figura central sentada na escuridão mudaram seu foco e ela aparece, trajando um gorro que lembrava uma máscara tribal. É Emicida, que já embala, aos aplausos de uma plateia estupefata, a música “8”. As luzes ficam claras e nos cegam em seu movimento. O sample de “Nego Drama” no refrão resgata e homenageia um clássico recente do rap brasileiro, como se o centro estivesse sendo passado simbolicamente. Há um novo rei no rap nacional? Provavelmente sim, mas ele vai quebrar a imagem do rei ocidental.

Mal “8” acaba e a plateia aplaudindo freneticamente, começa o coro de “Boa Esperança”. J. Ghetto entra no palco ressoando o refrão, cantado em uníssono pela plateia. O movimento das luzes nessa música são muito interessantes. O verde e o amarelo ficam frenéticos, movimentando-se para todo lado e, vez ou outra, acerta em cheio nossas retinas, cegando-nos. São as luzes que a polícia passa na periferia cegando os pobres e marginais com sua opressão e seu cacetete, mas também são as luzes de quem está buscando nos trazer, pela palavra e pela música, um novo entendimento. Chegou o momento de entendermos que devemos chorar também pela cor do orixá.

O começo frenético, mal dava tempo pra respirar, quando todas as luzes tornam-se vermelhas. É raiva, ódio e também paixão. Emicida já começa a paulada de “Bang!” com seu começo triunfal “Neguinho é o caralho meu nome é Emicida”. Seu cartão de visitas já estava dado e era para entendermos que ele não estaria de brincadeira ali. A escolha do set-list estava completamente correta, pois, após “Bang!”, o artista já soltou, ainda numa lufada de ar, “Gueto”, citando a saudosa maloca de Adoniram Barbosa e terminando, num sample lindo, com o clássico “Rap da Felicidade”, de Cidinho e Doca. Andar tranquilamente em nossas favelas é o desejo de todos nos dias de hoje, onde chacinas de polícia e opressão desnecessária, crises de água e discursos vazios preenchem uma agenda de horrores. Quando “Gueto” estava tocando, percebi também como Anna Tréa, a guitarrista, controlava a própria banda e plateia com as palmas. Era uma “maestra”, funcionando como um apoio rítmico e corporal mais suingado e suave, complemento das letras e pungência de Emicida.

Quando “Gueto” acaba, todas as luzes se tornam mais roxas, quentes, carinhosas, de certa forma lembrando um pouco o final dos anos 80, início dos anos 90, época em que Emicida ainda era criança. É o sinal de que a próxima música será a linda “Mãe”, balada poderosa sobre o indizível amor materno e a cumplicidade que existe entre mães e filhos. É uma música praticamente psicanalítica. Porrada do início ao fim, música que, por si só, já é difícil não se emocionar e lembrar-se de sua própria mãe, do duro que ela dá e do sorriso terno que se mantém em todas as dificuldades. Se ser mãe é padecer no paraíso, como dizem, é preciso que nos envolvamos e abraçamos nossas próprias mães para o padecimento ser justo. No show, para aumentar a carga emocional e fazer mais da metade da plateia chorar (como este aqui que vos escreve), Dona Jacira subiu ao palco para recitar todo o final sobre o nascimento de Leandro Roque de Oliveira. Foi um momento de ternura ímpar, com Emicida agachado olhando ora para o chão, ora para sua mãe, dando um beijo em sua testa no final, beijo com amor que só um filho grato pode ter.

Emicida com a mãe, Dona Jacira

Emicida com a mãe, Dona Jacira

Quando “Mãe” acabou, fez-se um breve silêncio no qual um espectador soltou um grito ansioso. Emicida emendou um discurso sobre a importância de se ter calma, quase uma fábula sobre a lebre e a tartaruga transcrita para os dias – e a realidade – de hoje. Era difícil manter a calma quando a ansiedade pela próxima música gerava eletricidade estática no ambiente. Mas a calma é importante. E necessária. É um ensinamento quase cristão, como contraponto ao poder da frase “A sociedade vende Jesus, por que não ia vender o rap?”, encontrada em “Hoje Cedo”. Durante a música, Emicida recebeu um álbum de alguém da plateia e, com ele no peito, agradeceu. A música foi cantada por todos até o final, em mais uma explosão catártica. Foi um show emocional, visceral, por assim dizer.

Em mais um discurso, Emicida começa a falar sobre sua experiência na África, uma viagem que serviu para ele entender melhor suas raízes e si mesmo, e, principalmente, entender como jamais devemos nos esquecer de que não basta olhar o céu para encontrar estrelas, mas que precisamos entender que elas estão no olhar de cada um. E que dessas estrelas jamais devemos abrir mão. Olhando para a beirada do mundo que é a praia, Emicida viu a importância de nos mantermos irmanados. Começou, suave e bela como as praias de um Oceano Índico a banhar suas ilhas, “Madagascar”.

Ao término dessa música, Emicida fica no centro do palco parado. Começa a falar dos amigos que está reencontrando ali na plateia, cumprimenta alguns pessoalmente. Tudo é muito bem construído e harmônico, o fluxo do show está redondinho. “Chapa” se inicia e, ao fim, mais um belo discurso, agora sobre a escandalosa chacina e dos 18 mortos de Osasco. O silêncio é o que mais incomoda. E o cavaco de Dony Jr. começa a chorar. Cavaco que vem do chorinho e do samba, das músicas africanas. Emicida busca retomar todas as raízes que se dividiram em vários gêneros e exprimir ali, naquele palco. É tão forte essa busca de encontrar as raízes e retomá-las que, com o início do cavaco, o cantor começa “Preciso me Encontrar”, obra-prima do mestre Cartola, com uma batida típica de hip-hop ao fundo. Impressionante.

Após o cover, entrou “Baiana” e sua letra romântica sobre as bagunças que uma paixão fazem a uma pessoa. Nesse momento, Carlos Café e Silvanny Rodriguez, percussionistas, deram um show a parte, batendo lata seca como se fosse Olodum, levando on sons pulsionais das baterias e tambores a lugares que estavam a milhares de quilômetros do Sesc Pinheiros. Com essa música era o momento perfeito para homenagear também o nordestino, o povo baiano e suas tradições, e Emicida não poupou e falou sobre a ideia escrota que existe em muitos do Sudeste e Sul do país de que seria melhor se dividíssemos o Brasil em dois. Sabiamente, falou que os únicos que podem mandar a galera embora são os índios, como se quisesse deixar seu recado também para os vários metidos a neonazistas e skinheads que temos em São Paulo, que, com uma ideia xenófoba bizonha, acreditam serem melhores que outros por suas ascendências.

A homenagem não parou em “Baiana”, e um segundo cover apareceu na maravilhosa “Haiti”, de Caetano Veloso. A luz verde a amarela brasileira voltou ao show, enquanto o refrão “O Haiti é aqui / O Haiti não é aqui” entonava o ambiente. É curioso notar como uma música escrita há 40 anos, mais ou menos, ainda tem um contexto completamente atual e, na voz de um rapper, ganhou contornos ainda mais urgentes. Enquanto acontecia o encontro imperdível de Caetano e Gil em outra casa de shows, Emicida prestava homenagem também ao tropicalismo. Quando acaba a música, uma bateria num ritmo alucinado faz parecer que a próxima música seria uma explosão, mas não. Entra “Passarinhos”, como um pequeno respiro mais pop ao show. Quase uma pausa necessária, a música romântica funciona como analogia a um momento de sonho no show diante da realidade dura e crua. Mesmo com a certeza da dureza da vida, não podemos nos esquecer do amor romântico.

Assim como não podemos nos esquecer de nosso passado escravagista. Com a força de dez megatons de bomba nuclear, Emicida declamou “Súplica”, poema da moçambicana Noémia de Sousa, na qual ela relembra e reconta a história de nossos escravos, de todos os escravos que existem também hoje, sobre a importância de nos mantermos fortes e, através da música, existirmos como pessoas e como história. Ao fim da poesia, entra a poderosa “Mufete”, com seus ritmos e tambores africanos lembrando que só é feliz quem realmente sabe que a África não é um país. Emicida desce na plateia e canta com o pessoal, é um momento de união.

O show seguiu com a banda se enfileirando e fazendo um belíssimo passinho em “Zica, Vai Lá”, dando início a uma segunda metralhadora de rimas poderosas e músicas matadoras. “Nóiz” levantou a plateia inteira, todos cantavam e as luzes vermelhas e brancas acompanhavam o ritmo da percussão pesada e rápida, num jogo de luzes quase convulsivo, como se quisesse mostrar a necessidade de se vomitar e cantar tudo que era preciso vindo do cantor. Com “Mandume”, Drik Barbosa, Muzzike, Raphão Alaafin e Amiri (não consigo lembrar agora se Rico Dalasam também estava presente, que vacilo!) entraram no palco e mandaram ver, mostrando que o movimento hip-hop é unido e necessário, que o sucesso de um é de todos que estão batalhando dia após dia para quem está querendo ser ouvido.

gif

Com o fim de “Mandume”, volta pesado o ritmo africano (não que ele tenha ido embora) com “Ubuntu Fristaile”. Anna Tréa volta a dar um show de dança, agora com dois chocalhos fazendo uma dança quase tribal linda de morrer. A plateia cantando em uníssono impulsiona a transposição do Sesc para as margens do Rio Zambeze. Emicida joga pras meninas da plateia, os meninos e todos cantarem. Obedecemos facilmente enquanto o cantor tira foto com fã. O cantor está claramente muito feliz de estar ali. Nunca imaginou que os passos dele e sua música estremeceriam o mundo, mas que entende de certa forma sua importância. Começa “Crianças”, música sinal de que devemos nos manter como elas, com curiosidade interminável e desbravando o mundo. Ao final dela, a banda sai.

Aos poucos, um a um volta, começando pela guitarrista. Emicida entra de leve cantando “Rinha (Já Ouviu Falar?)”. Agradece as batalhas na Galeria Olido e Santa Cruz. Começa a falar de cada rinha e de como foi o seu processo. E desata a agradecer todos os nomes importantes da história do hip-hop e dele hoje: Racionais, Sabotage, Criolo, De Menos Crime e Rappin’ Hood. Agradece a cultura hip-hop como um todo. E, ao fim dos agradecimentos, soltou um discurso maravilhoso sobre a importância de entendermos que o nosso sorriso não é crime.

Depois de “Rinha”, entrou “Levanta e Anda” e sua letra encorajadora, para não perdermos a vontade de fazer e seguir nossos sonhos, por mais difíceis que possam parecer. Emicida é um conciliador. Conecta todos. Fala de Sérgio Vaz e da poesia marginal também. É um cantor urgente e necessário para os nossos dias de hoje. Com o fim dessa música, faz um freestyle agradecendo toda a plateia. Cada canto dela. A banda inteira vai para frente do palco e agradece mantendo a música. Só não nos levem a música, não é mesmo?

Saí do show completamente embasbacado com o que acabara de vir. Posso estar exagerando, talvez esteja, mas senti a força do Emicida nesse álbum e em seu show, impecável. Já dá pra cravar que ele é um cara imenso, em todos os sentidos, e um cantor completamente necessário para os dias de hoje. Se nos anos 60 o rock, através do Tropicalismo, lançou Caetano e Gil como pilares da música brasileira, acho que hoje é o hip-hop e a força de artistas como o Emicida, com suas letras e poder de palco, que poderão determinar os próximos passos de nossa música.

Tags:, , , , ,

24/08/2015

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

Nicolas Henriques