Como “Maracatu Atômico” se transformou em um ícone da música nacional

13/03/2024

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Por: Guilherme Serrano

Fotos: Reprodução/ Cristina Granato, Sergio Dutti e arquivo pessoal

13/03/2024

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 136 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Nightingale (1979), de Gilberto Gilem 2023.

É comum ouvir “Maracatu Atômico” nas rádios, festas e playlists dedicadas à música nacional. É uma canção que faz parte do repertório de brasileiros de diversas idades, muitos dos quais reproduzem os versos sem conhecer os motivos que fazem dessa música um objeto de inspiração e releitura para muitos artistas até hoje. 

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A história de “Maracatu Atômico” remete a 1954, quando Jorge Mautner, aos 13 anos de idade, assistiu pela primeira vez ao Maracatu de Pernambuco, durante a inauguração do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Ali, uma semente foi plantada, e após duas décadas de experiência, estudo musical e leituras sobre o Maracatu, a canção foi composta por Mautner em parceria com Nelson Jacobina

“Eu já sabia do maracatu por causa das histórias que eram contadas, por causa dos livros. Em 1954, pude vê-lo. A nossa música foi inspirada pelo alvoroço da vida, o entusiasmo, a vontade de comunicar, de sentir as emoções. O maracatu é uma mitologia, é muito profundo. Veladamente, também havia a questão racial, pois o maracatu é negro”, afirma Jorge Mautner em entrevista à NOIZE.

Jorge Mautner pode ser descrito como um “hipertropicalista”, definição que lhe foi atribuída por Caetano Veloso e é confirmada pelos versos de “Maracatu Atômico”. O doutor em Letras Antonio César Silva, por exemplo, em sua tese “Jorge Mautner e Seus Múltiplos”, defende a canção como uma marca da lírica mautneriana, afirmando que ela “mostra uma inimaginável fusão da tradição com o novo e que resulta no super novo. Essa fusão tem de um lado a matriz sonora dos maracatus pernambucanos e do outro a coisa atômica, contemporânea, que é a potência das potências das energias (…) O poema em si revitaliza as raízes culturais brasileiras, projetando a cultura local numa perspectiva massiva”. 

O autor lançou “Maracatu Atômico” em seu segundo LP, Jorge Mautner (1974), e conta que o sucesso da canção se deu desde o começo: “Veio com o tempo e que fez sucesso logo no início”, diz Jorge Mautner. Mas ele não foi o primeiro a lançá-la. Também em 1974, Gilberto Gil lançou a canção em um compacto que trazia também “Preciso Aprender a Só Ser”. “Foi sucesso quando eu lancei em 74, depois voltou a ser um grande sucesso com o Chico Science e a Nação Zumbi“, lembra Gil em entrevista a Ariel Fagundes para esta edição da Noize. 

“Gil é fenomenal. Ele já era muito profundo, tinha a disposição de irradiação da negritude do Brasil, já tinha isso desde criança. Ele estimulou a música. Sempre tivemos conversas sobre a negritude, sua importância. O Brasil debate o tempo todo essa questão da importância da negritude. Ou então, procura negá-la. A música popular no Brasil é muito tocada, as pessoas são muito ativas na música, participam. O maracatu tem isso”, diz Mautner.

A relação de Gil com “Maracatu Atômico”, aliás, é frutífera e vai além daquele compacto. Entre 1973 e 1974, o artista gravou um novo álbum, que acabou sendo arquivado. Mais de duas décadas depois, suas faixas foram lançadas, em 1998, em um box com o disco duplo chamado Cidade do Salvador. Neste álbum, há três interpretações de Gil para “Maracatu Atômico”: a primeira nem chega a ser a música inteira, é uma espécie de erro de gravação; a segunda é a que pode ser considerada a versão completa; e a terceira é uma versão bônus com dez minutos de duração. E não para por aí: em 1979, Gil lançou o álbum Nightingale no exterior, com mais uma versão de “Maracatu Atômico”. Ou seja, foram cinco interpretações diferentes de Gilberto Gil em cerca de cinco anos.

“Eu fiquei muito impactado pela composição, pela música. Eu faço até uma comparação entre o Jorge Ben e o Jorge Mautner. Ambos são muito interessados no samba, na especificidade do gênero e nas naturais transformações desse gênero ao longo da história, ao longo do tempo. Então, eu considero ‘Maracatu Atômico’ como um samba exemplar nesse sentido da hibridação, da renovação da transformação do samba e tal”, diz Gilberto Gil em entrevista à Noize.

Além de ter sido um agente ativo dessa transformação, Gil introduziu o refrão: “Manamaê ô”, que não existia na composição original e que mais tarde foi incorporado pelo próprio Jorge Mautner. Em 1992, o artista lançou o disco Pedra Bruta, com Celso Sim cantando o refrão logo no início de mais uma versão de “Maracatu Atômico”. A partir de Gil, a maioria das regravações da música passou a trazer o tal estribilho. E não foram poucas.

Até hoje, além de posteriores versões de Mautner – incluindo uma parceria com Caetano Veloso no disco Eu Não Peço Desculpa (2002) – a canção já foi reinterpretada por nomes como Osmar Milito, Emicida, Sergio Mendes e Seu Jorge, Cesar Camargo Mariano e Zélia Duncan. No Spotify, por exemplo, há versões de vários outros artistas, indo desde o remix do Fatboy Slim até uma versão da Torcida Uniformizada Os Imbatíveis, do Esporte Clube Vitória. Nenhuma dessas interpretações, no entanto, foi capaz de ressignificar “Maracatu Atômico” como aconteceu nos anos 1990. Na verdade, a versão que está entre as mais conhecidas ocorreu de forma totalmente despretensiosa.

Em 1996, Chico Science e Nação Zumbi lançaram Afrociberdelia, segundo álbum do grupo. A oitava faixa do disco é “Maracatu Atômico”, que, na voz de Chico Science, se tornou um verdadeiro marco na carreira da banda e no movimento manguebeat como um todo. No entanto, os bastidores dessa gravação revelam que, por pouco, ele quase não aconteceu. 

“Nós não conhecíamos essa música. Nenhum de nós conhecia. Mas, antes de gravar o disco, eu lembro de estarmos na casa do BiD, nosso produtor, e ele ter colocado pra gente ouvir no vinil. Ele mostrou nessas de: ‘Pô, a música chama ‘Maracatu Atômico’, tem tudo a ver com vocês’. Mas, na verdade, ela não tinha nada a ver com a gente. Tem a ver com o Gil. Tem a ver com o Mautner e o Jacobina”, afirma Dengue, baixista da Nação Zumbi, em entrevista à Noize. 

https://open.spotify.com/intl-pt/track/3cR6v2bOwqi7znC8P5Vs1T?si=8cfde8f30a8a4628

O produtor BiD confirma que o responsável por apresentar a música para a banda. Em entrevista à Noize, ele afirma também que havia uma certa pressão por parte Sony para que um cover fosse gravado, mas Chico Science e Nação Zumbi não queriam adicionar músicas não autorais ao repertório. 

“A gravadora achava que nosso material era muito alternativo e queria um cover para trabalhar como single do disco, embora a banda não quisesse. Eu tinha o ‘Nightingale’ e achei que ‘Maracatu Atômico’ tinha tudo a ver. Nunca pensei musicalmente, na verdade era só o título. No meu estúdio, eu mostrei o som pro Chico, ele achou foda a versão do Gil e topou. Nisso, eu comuniquei a gravadora e eles adoraram”, conta BiD em entrevista à Noize.

Gilberto Gil, aliás, está na ficha técnica de Afrociberdelia, participando da quinta faixa, “Macô”. A presença do artista baiano no estúdio também foi importante para que ‘Maracatu Atômico’ acontecesse. “Nós criamos uma certa relação com o Gil por conta de alguns shows que tínhamos feito na Europa, e o Chico chamou ele pro disco. Passamos uma tarde maravilhosa gravando juntos e comentou-se que a gente talvez gravasse ‘Maracatu Atômico’. Gil estava com a guitarra na mão, e, na mesma hora, me ensinou a tocar a música em Fá sustenido, que foi o tom no qual nós gravamos”, relembra Lucio Maia.

De acordo com BiD, a ideia era fazer a canção baseada em um sample, mas a ideia não se desenvolveu no estúdio conforme o esperado e foi abandonada. Assim, o álbum foi todo gravado sem “Maracatu Atômico”. No momento da audição pré-mixagem, Jorge Davidson, diretor artístico da Sony à época, não se conformou com a ausência da canção.

“No dia da audição, o Jorge Davidson, ao notar que ‘Maracatu Atômico’ não estava no repertório, insistiu para que a música fosse gravada. Mas não houve obrigação, ninguém obrigava o Chico a nada! Ele convenceu da importância, de como a música era foda e teria a ver. Inclusive, financiou outra sala pra banda gravar, mesmo com o budget já estourado”, relembra BiD.

Segundo Lucio Maia, houve pressão para que a banda gravasse porque Davidson teria feito um acordo prévio com o presidente da gravadora Sony garantindo que “Maracatu Atômico” estaria no disco. Já o diretor artístico nega esse trato. Em depoimento à Noize, Davidson conta como lembra da história.

“Chico Science e Nação Zumbi me remetiam a Jackson do Pandeiro. Misturavam coco, maracatu, samba, hip hop, rock… e o álbum de estreia deles, Da Lama ao Caos (1994), tinha a faixa ‘Maracatu de Tiro Certeiro’. Eu, que era responsável de A&R da Sony e adorava ‘Maracatu Atômico’ desde jovem, defendi com ênfase minha visão de que era algo pertinente ao contexto da banda, além de ter sido imortalizada pelo Gil. Esse é um trabalho de A&R, do departamento artístico, sem promessas para executivos de outros setores da companhia”, diz Jorge Davidson.

Fato é que a música foi gravada por Chico Science e Nação Zumbi às pressas no estúdio Mosh, em São Paulo, ao mesmo tempo em que as demais faixas do Afrociberdelia estavam sendo mixadas. O então percussionista Jorge DuPeixe, por exemplo, sequer estava presente. Uma vez que as gravações, em teoria, já estavam finalizadas, DuPeixe tinha viajado para Recife a fim de trabalhar na capa do disco. 

“Enquanto rolava a mixagem em uma sala, na outra nós fomos gravar ‘Maracatu Atômico’. Foi tudo meio adverso. Eu entrei no estúdio só com uma guitarra e um pedal wah-wah. Não tinha nem amplificador, então tive que pegar emprestado de uma banda que estava tocando na sala ao lado. E nisso a gente fez a música toda, numa tarde só”, diz Lucio Maia. 

“Não deu tempo nem da gente ouvir a música [original]. Eu sabia as notas, mas não o arranjo. Por isso, o original é tão diferente do nosso, foi até bom a gente não ter ouvido. Não lembro nem como o Chico pegou a letra. Foi coisa de horas. Enquanto tirava o som, ia fazendo o arranjo. E quando disse: ‘Grava’, gravou e estava pronta”, completa Dengue.

Ironicamente, surgiu assim o “carro-chefe da banda”, como descreve Lucio Maia, ou “a cara de Recife, da Nação, de Chico e do movimento manguebeat”, nas palavras de Dengue. A importância da gravação por parte do grupo pernambucano é destacada também pelo próprio Jorge Mautner: “Aprimorou mais ainda a música. Eu achei a versão o máximo”, diz.

Jorge Davidson exalta a versão de Mautner, mas defende que, se não fosse Gilberto Gil, antes, e a Nação Zumbi, depois, o alcance da canção não seria o mesmo. Dengue, por sua vez, acredita que os créditos têm de ser dados aos compositores e a Gil, afirmando que a música é sensacional e tem vida própria. A reflexão permanece pertinente e só engrandece a perenidade da composição. 

Com uma história tão rica, “Maracatu Atômico” seguirá sendo regravada e ressignificada. Para Jorge Mautner, esse fenômeno musical é intrínseco à sua origem: “É o maracatu. O maracatu é uma encruzilhada de batuques, de sabedoria negra, de tanta coisa… Euforia, afirmação da vida. A própria ideia do Brasil está misturada com o maracatu”, completa.

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13/03/2024

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