Uma forte chuva encharcou o último sábado de Porto Alegre, mas se enganou quem achou que o clima indicaria uma noite calma e serena: os raios que rasgavam o horizonte eram as trombetas do céu anunciando os Racionais Mc’s e Rael.
Foi o lançamento do disco mais recente do grupo, Cores e Valores (2014), que motivou esse show. Porém, o que se viu no palco do Pepsi On Stage foi além de uma apresentação do novo trabalho da banda – na verdade, foi um grande culto ao rap. O mestre de cerimônias da noite foi o DJ Milkshake, que manteve o público ocupado com clássicos do hip hop até que, por volta das 23h, chamou a rapper Dany Alves para inaugurar o desfile de rimas. Nome forte do rap feminino gaúcho atual, Dany Alves segurou bem a onda de cantar pra uma galera que estava ali pra ver o Racionais. Depois dela, foi a vez do grupo Afrocalipse assumir os microfones e fazer seu show honesto, preocupado em relatar a realidade dura da periferia de Porte Alegre e passar uma mensagem de revolta contra o racismo.
Discurso esse, inclusive, que se repetiu no show do Rael. “Nunca deixe ninguém falar sobre sua cor ou sua opção sexual”, bradou o rapper antes de começar a cantar “Pré-Conceito”, faixa do EP que lançou no ano passado, Diversoficando (2014). Quem estava ansioso para ver o seu show pode ter se sentido com um certo cansaço do músico, porém é necessário contextualizar que ele chegou do aeroporto Salgado Filho e foi direto pro palco – é provável que algum atraso do voo tenha ajudado a atrasar sua apresentação (que começou mais de uma hora após o planejado) e abalar sua performance. O fato é que, mesmo em circunstâncias adversas, seu show foi impactante. Além de composições recentes, como “O Hip É Hop Foda (Parte 2)” e “Envolvidão”, Rael destrinchou seu flow melódico e certeiro em músicas do álbum anterior, Ainda Bem Que Eu Segui As Batidas Do Meu Coração (2013), como “Ela Me Faz”. Foi um pouco curto, mas foi bonito seu show e deixou todo mundo pronto pro soco na cara que viria a seguir.
Às 2h em ponto, subiu no palco o rapper Big da Godoy, que fez um set rapidinho e logo voltou pro backstage. Meia hora depois, ele apareceu de novo apoiando a trupe mal-encarada do Racionais Mc’s. Primeiro, KL Jay assumiu as pick-ups e botou uma groovera pra aquecer o público. Mas então as luzes se apagaram e apareceram Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue acompanhados de uma corte de rappers feroz e revoltada.
E nenhuma corte está completa se não tiver o seu bobo que, no caso do Racionais, é representado por um palhaço que poderia muito bem ter saído de um filme de terror. No meio de vários caras vestidos de laranja, aquele palhaço de preto e branco se destacava como uma assombração macabra. Seu único objetivo era atiçar a plateia e dançar o tempo inteiro feito um demônio incorporado pela batida do rap.
O show abriu com “Você Me Deve”, do Cores E Valores, “Mente do Vilão” e, na sequência, eles resolveram metralhar uma rajada de hits. Sente só: “Da Ponte Pra Cá”, “Nego Drama”, “Expresso da Meia-Noite”, “A vida é desafio”, “Jesus Chorou” e “Vida Loka (Parte 1)” – todas do aclamadíssimo álbum duplo Nada Como Um Dia Após O Outro Dia (2002). O público se abriu como uma flor, dava pra ver que os Racionais conduziam a situação com a tranquilidade de um motorista num fim de domingo. Mano Brown nem se constrangeu encenando as conversas telefônicas de músicas como “Vida Loka (Parte 1)” – o que foi meio canastra, mas foi bem legal. O mais atucanado era o KL Jay, que não parava um segundo entre o computador e os discos.
Depois disso, Rael voltou ao palco e dividiu com Edi Rock os vocais de “Abrem-Se Os Caminhos”, do disco solo do rapper, Contra nós ninguém será (2013). Depois, rolou ainda “That’s My Way”, que, por melhor que seja, não conseguiu envolver a galera da mesma forma como os clássicos do Racionais. O pessoal curtiu, mas quando voltaram ao palco Ice Blue e Mano Brown, a coisa pegou fogo.
Se encaminhando pro fim, eles tocaram as novas “Somos o que somos”, “Eu te disse”, “Preto Zica”, “Eu Compro”, “O Mal e o Bem” (que a galera pirou quando se deu conta de que era essa que eles iam tocar) e “Quanto Vale o Show”. O set encerrou com “Fórmula Mágica da Paz”, a única que rolou do Sobrevivendo no inferno (1997), depois teve “Vida Loka (Parte 2)” – que foi regada a garrafas de champagne trazidas por Ice Blue e Edi Rock – e “Eu Te Proponho”.
Embalados pelos versos “vamos fugir desse lugar, baby”, o público voltou pra casa depois das 4h, levando consigo a certeza de que um show do Racionais é algo que todo mundo deveria ver pelo menos uma vez na vida.