Fotos: Rafael Rocha
Quando Caetano encerrou seu show cantando “A Luz de Tieta”, eu era uma das dezenas de pessoas boquiabertas na beira do palco do Teatro do Sesi, em Porto Alegre. Não foi fácil para ninguém que estava ali compreender como aquele show podia ter sido capaz de acabar de um modo tão sublime quanto começou, cerca de uma hora e meia antes.
Poderia ter sido apenas mais uma apresentação de um músico ultra-hiper-mega consagrado; pouco mais que uma coletânea de sucessos velhos requentados como boia fria, empolgantes como uma quermesse de igreja. Poderia, e seria compreensível, ter sido algo chato por seu pedantismo ou triste por sua decadência – mas se fosse assim, não seria um show do Caetano Veloso.
Ainda hoje, e talvez mais do que nunca, sua apresentação é uma experiência plástica sem igual. Em cima do palco, não havia nada além de quatro quadros minimalistas homenageando o pintor soviético Kasimir Malevitch (1878-1935) e quatro dos melhores músicos brasileiros da atualidade: Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo e teclado), Marcelo Calado (bateria) e Caetano (violão). Não existia um pingo de parafernália pirotécnica: a imagem simples de quatro homens e quatro quadros foi capaz de emoldurar com perfeição a brutal avalanche sonora provocada pela lenda baiana e a banda Cê que o acompanha.
Apesar de haver toneladas de hits, boa parte do show foi composta por faixas do Abraçaço (2013), demonstrando a prioridade artística do cantor acima de qualquer pretensão mercadológica. Caetano tem consciência da relevância de sua obra e não se apega aos personagens que seu público gosta de descrever quando quer defini-lo. O bárbaro bardo tropicalista, o palpiteiro inconveniente de plantão, o ícone esquerdista amargurado e arrependido – nenhum desses conceitos gritados pelo senso comum chega aos pés do homem que Caetano Veloso demonstra ser quando está se apresentando. Da Tropicália, por exemplo, ele não cantou nada. Tampouco ousou se valer de sua posição para defender ou atacar quaisquer conceitos e/ou personagens políticos (ainda mais em ano eleitoral).
A polêmica urgia nas entrelinhas. A sexta música que ele tocou foi a dylanesca “Um Comunista”, que fala sobre o poeta, político e, por fim, guerrilheiro baiano Carlos Marighella, assassinado pela Ditadura Militar em 1969. Pergunto-me o que a plateia (formada principalmente por pessoas com uns dez anos a menos que Caetano e 30 anos a mais que a sua banda) pensou ao ouvir essa composição de quase 10 minutos sobre o mártir do comunismo brasileiro. Também me questionei o que o público sentiu quando Caetano cantou “De Noite Na Cama” abrindo todos botões de sua camisa apesar dos seus 71 anos de idade. Ou ainda o que será que passou na cabeça de tantas madames e senhores vestindo blazer quando ele reverenciou a música mais popular do Brasil atual cantando a faixa “Funk Melódico”.
Mas sinto que essas perguntas eram apenas minhas, Caetano não parece dar a mínima para isso. Em seu palco, ele é soberano. Ele sabe que não faz diferença se quem está sentado à sua frente o aprova ou não porque é impossível ver seu show sem ser arrebatado pela qualidade impecável de sua voz sustentada pelos timbres de modernos e hipnóticos da banda Cê. Até mesmo os sucessos antigos que eles tocaram (como “Alguém Cantando”, “Leãozinho”, “Nine Out Of Ten”) se transformaram em novas músicas. “Triste Bahia” ganhou contornos espaciais na guitarra de Pedro Sá que soava como um berimbau sintético; “Você Não Entende Nada” se tornou bem mais dançante ao receber uma pegada carnavalesca à la Jorge Ben Jor; “Eclipse Oculto” nunca soou tão rock n’ roll quanto naquele show.
Após passar ver e ouvir tudo isso, restou me pouco além de agradecer a todos os santos a oportunidade de ver Caetano cantando a poucos metros de mim. A sua discografia inteira é uma das melhores que o Brasil já viu, mas uma coisa eu garanto: em seus discos ele é incrível, mas ao vivo é muito melhor.