Fotos: Camila Mazzini
A escuridão do palco foi invadida por um canhão de luz. Dentro do círculo iluminado, o poeta Waly Salomão recitou os primeiros versos de “Olho de Lince”, um poema que poderia ser seu epitáfio, explicação de seu modus operandi elétrico e palavroso.
Ao sopro dos últimos versos, a circunferência luminosa some e ressurge no outro lado do palco, onde Jards Macalé está sentado. Violão ao colo, dedilha a composição que dá música ao poema, uma das várias parcerias com Waly. “Quem fala que sou esquisito, hermético/É porque não dou sopa”, canta numa bossa nova quebrada, que poderia ser descrita com os mesmos adjetivos da letra. Ao final da canção, Jards deixa o tronco cair sobre o violão como se perdesse a vida depois do último acorde, brincando com o jogo de cena proposto.
Waly estava em toda parte. É claro: sabe-se que o poeta baiano morreu em 2003, aos 59 anos. Entretanto, durante o show foi ofertada ao público a ilusão de sua presença. Waly é conhecido por viver como poucos o próprio estilo literário. A forma como falava e escrevia era uma só, e as canções, quando postas em sequência, reverberavam Waly.
A ilusão também se dá em parte pela proposta dos diretores artísticos do espetáculo, Omar Salomão, filho de Waly, e o jornalista Marcus Preto. Para recitar os poemas não musicados de Waly, convidaram o músico e poeta pernambucano Lirinha, dono de feições espantosamente semelhantes às do poeta.
O show “Waly Salomão: Poesia Total” é uma das homenagens a Waly, que em 2014 completaria 70 anos. Além do show, foi lançada em maio sua antologia poética, “Poesia Total” (Companhia das Letras). Há também uma mostra prevista para outubro, na Biblioteca do Parque Estadual, no Rio de Janeiro, onde serão expostas as anotações do poeta em seus livros prediletos.
Depois de Jards Macalé, subiram no palco os cantores Hélio Flanders, do Vanguart; Botika, d’Os Outros; e Gustavo Galo, da Trupe Chá de Boldo. Performáticos e explosivos, cantaram músicas de Waly escritas em parceria com artistas como Caetano Veloso, João Bosco, Adriana Calcanhotto e Itamar Assumpção.
A banda que acompanhou os cantores era composta pelo guitarrista Guilherme Monteiro, da banda de Gal Costa; Bruno di Lullo, baixista da banda Tono, e o baterista Domenico Lancellotti, responsável também pela direção musical do show. Estes músicos fazem parte da geração carioca que nos últimos anos influenciou 3/4 dos Doces Bárbaros: Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil. Os álbuns Cê (2006), Abraçaço (2013), Recanto (2012) e Gilberto Sambas (2014) representam a aproximação.
O contato com artistas do mainstream parece ser tão engrandecedor para os músicos quanto para seus mestres. Durante o show, era possível perceber uma identidade sonora da cena carioca, que produz muito coletivamente. A geração independente de São Paulo, por outra ponta, parece mais individual e plural.
Mas ainda faltava Gal Costa. Waly Salomão é muito lembrado pela direção artística do show mais conceitual da cantora, Fa-Tal: Gal a Todo Vapor (1971), gravado ao vivo no Rio de Janeiro. Considerado um manifesto hippie, o show foi um radar de canções da MPB que ficariam para a história. Acompanhada por uma banda de rock, com a participação de um dos maiores guitarristas do país, Lanny Gordin, Fa-Tal é um disco que que parece feito de estrada. São canções do então novato Luiz Melodia, dos Novos Baianos, de Jards e Waly, de Caetano Veloso.
Como a própria Gal disse à Folha de S. Paulo, Waly inflava seu ego. O resultado da “injeção de adrenalina” do poeta é uma cantora ainda mais intensa no palco, nossa Janis Joplin tropicalista. O disco tem a assinatura beatnik tupiniquim de Waly: no encarte moderno, na escolha de repertório, na liberdade de Gal ao palco.
A base eletrônica do último disco de Gal, Recanto (2012), produzido por Caetano e Moreno Veloso, agora aparece em “Vapor Barato”. A música, escrita por Waly em parceria com Jards Macalé, foi definida pelo poeta como “um hino hippie caboclo”. E Gal não deixou de fazer os vocais à moda Fa-Tal, assim como não esqueceu de envolver o público num estado catártico de adoração. Continua impressionante, uma mulher sobre a própria influência.
Não há dúvida: Waly esteve aqui. Porque nós queríamos, e porque cada verso seu tornou a viagem possível.