Vera Cruz Island, primeiro álbum do Taxidermia, projeto que reúne Jadsa e João Meirelles, encontra para si um lugar singular no cenário da música nacional. Transitando e dissolvendo fronteiras entre a canção popular e a música eletrônica, a dupla explora vozes processadas, beats e ruídos, aliados a elementos orgânicos, como percussões, tubas e guitarras.
Tangenciando elementos de diversos gêneros, como o dub, o house, o funk, em encontro às influências musicais afro baianas, o álbum reitera informações, costura fragmentos e molda o som como um objeto. O nome “Taxidermia” já indica esse jogo de manipulação de texturas, conservação e modificação de informações. As possibilidades oferecidas pela música eletrônica são utilizadas pela dupla sempre em direção à música popular.
Em Vera Cruz Island, o encontro das formas de criação de Jadsa e João Meirelles ainda soma-se a um time de peso de colaboradores. Com participações de Bruno Berle, Iara Rennó, Tuyo, Rei Lacoste, Tori, Yan Cloud, Tori, Pedro Biennemann, Chico Correia, Virus e Vulto, o disco também conta com co-produção de Maíra Morena.
Com o álbum recém lançado, o duo fará uma série de shows no Rio de Janeiro, em Goiânia, em Brasília e em Salvador, respectivamente nos dias 4, 10, 11 e 25 de julho. Trocamos uma ideia com Jadsa e João sobre o projeto, o novo álbum, suas expectativas e compreensões. Confira abaixo.
Vocês trabalham juntos há bastante tempo. O Taxidermia tem dois EPs e alguns singles, o João produziu o álbum solo da Jadsa. Como foi sentar e fazer um álbum cheio, com coesão na produção, conceito e narrativa?
Jadsa: O desejo de fazer um disco foi uma das primeiras coisas que brotou. “Ah, vamos fazer o Taxidermia. Então, vamos fazer um disco!”. Só que aí aconteceram várias coisas, a pandemia e tudo mais. E aí a gente acabou escolhendo esse caminho de ir apresentando o projeto, mostrar um pouquinho em EPs, no próximo a gente mostra um pouquinho dessa outra coisa. E foi nesse caminho que a gente conseguiu idealizar o Vera Cruz Island, entender a narrativa, como chegar até o disco. Acho que a gente conseguiu chegar de uma maneira bem tranquila, não foi dando soco na porta. Eu me sinto realizada. É muito massa ver esse projeto pronto. Ouvir ele, ter ele concretizado.
João: A gente tinha um desejo grande de fazer um álbum já tinha um tempo. Os EPs foram feitos sempre na perspectiva de também pensar em um álbum. Então, conseguir realizar isso está sendo muito feliz. E agora, o desejo maior é justamente saber o que é isso, como é que a música vai bater nas pessoas. Tem essa gostosura, depois de muito tempo bolando o lance. Porque tem o tempo em que a gente faz o disco e outro momento é conseguir botar no mundo e ver como as pessoas recebem. Então, teve isso de ser um processo longo. Tiveram alguns blocos de intensidade de produção e as coisas foram caminhando do jeito que a gente conseguiu lidar, por diversos motivos, dependendo do tempo que a gente tinha. A sensação de ter isso realizado agora é assim, muito boa. Ufa! Vamos para o próximo.
No álbum, vocês estão fazendo uma música eletrônica experimental, mas a canção ocupa um lugar central. São canções populares que vocês transformam através de processos eletrônicos. Mas o disco tem momentos com percussão, tubas, violão, guitarra, contrapondo sonoridades orgânicas dentro do eletrônico. Como foi trabalhar esses elementos?
Jadsa: O desafio do Taxidermia é não pensar em termos de diferenciação. É um grande desafio, mas ao mesmo tempo é o nosso natural, nosso normal. Outro dia, Gabriel Rolim postou um stories falando desse “novo normal”. E Gabriel faz parte disso, mas ele constroi com imagens, junto com mais uma galera que também faz isso. É muito doido a gente entender a nós mesmos, sacou? Mas esse é o nosso normal, na verdade. A gente pensa música desse jeito. Tanto eu, quanto o João. É meio que tocar um instrumento sabendo o que é que ele vai ser lá na frente. A junção do eletrônico, da voz processada, com esse orgânico da percussão, das tubas e tudo mais, isso é uma parada natural para nós. Acredito que o desafio do Taxidermia é basicamente tentar fazer um som que não entenda esses elementos como diferentes. Um som experimental, a partir do momento que você adiciona voz, para mim é pop. Acho que o que é experimental no Taxidermia é jogar um pouquinho aqui, jogar um pouquinho ali. Uma preocupação na hora de fazer as faixas era entender onde elas caberiam no ouvido popular. Vera Cruz Island tem um jogo, uma brincadeira do que a gente gostaria de ser e de como isso vai ser ouvido.
João: Eu acho curioso. A gente já conversou muito sobre onde é que está esse som. Para quem é esse som? Eu tenho várias formações sonoras e uma delas é o experimental raiz, do noise music, instrumental, sem voz, sem beats, sem tom e tudo mais. Eu também venho disso. Então, para mim, o Taxidermia é muito naturalmente um projeto de canção pop, com essas influências que a gente tem. É muito sobre o encontro do universo sonoro de Jadsa com o meu universo sonoro. Essas influências que nós dois temos, muitas em comum, muitas diferentes, com jeitos de fazer diferentes e uma liberdade muito grande de transitar por entre essas coisas. Nossos amigos que estão por perto, nossas capacidades de tocar x, y, z instrumentos é o que compõe esse trabalho. Meu instrumento calhou de ser o eletrônico. Toco guitarra também, arranho um baixo, posso brincar com alguma outra coisa. Jadsa toca guitarra pra caramba, toca baixo, toca percussão. Então, a gente naturalmente bota isso. E os amigos vão entrando com o que conseguem fazer, com o que podem, com que querem fazer. Então, o que Jadsa falou para mim é perfeito. É o nosso jeito de fazer, a gente não tem um pensamento do tipo: “Nossa, vamos pegar aqui uma coisa e misturar com a outra”. Nós vamos fazer uma canção, senta e faz, entendeu? E sai desse jeito.
Taxidermia é um processo de conservação de animais, mas olhando a etimologia da palavra, vem um lance tipo “moldar a pele”. Nesse entendimento da música enquanto uma só, sem diferenças entre orgânico e eletrônico, também fica aberta a possibilidade de tratar a música como uma coisa física e justamente “moldar” o som como se bem entende. Queria que vocês falassem um pouco sobre o papel dessa palavra dentro do trabalho.
João: Gostei muito disso que você trouxe. Porque a gente fica muito curioso com essa coisa. E o que é esse nome, como é isso? A gente vai sendo perguntado e se pergunta. Eu acho legal as diferentes visões. Você traz isso da pele, eu acho lindo, muito bonito, porque o processo de fazer produção muitas vezes, eu até falo nesse vocabulário mesmo, é botar uma roupa na música. Entender como mostrar isso, qual a forma dessa ideia musical, dessa canção. Então, lida muito com o processo de moldar mesmo. Principalmente dentro da produção eletrônica, falando de forma mais específica. E isso faz muito parte da minha pira dentro desse universo. Entender como compor tensão, relaxamento, intenções narrativas a partir da manipulação do som. Entendendo o som como objeto. Essas ideias vêm do ponto de partida da música eletrônica dos anos 1950, com Pierre Schaeffer, com a música concreta e tudo mais. E faz todo sentido, né? Porque na música eletrônica se cria justamente essa narrativa sonora a partir dos timbres, da manipulação do som, de como você trata o sample ou que filtro você vai aplicar. A gente define gêneros musicais muitas vezes a partir de timbres, também do conjunto timbre, batida e BPM, sei lá. Então são elementos que para nós demarcam diversos espaços musicais. E eu gosto que você perceba assim. Eu penso que o nome Taxidermia é como a relação da vida e a morte. O processo de ressuscitar e de querer e fazer viver. Essa coisa de fazer uma música que dá vontade de viver. Fazer uma música que é uma pulsão de vida, que oferece uma porção de vida. E aí fica esse jogo um pouco contraditório, porque falar de taxidermia é falar do bicho que está morto, mas também dessa manipulação de fazer aquilo viver e perdurar.
Jadsa: Levando ao pé da letra, a palavra taxidermia é um processo de conservação do formato. Se chama taxidermia e o material utilizado é o poliuretano, que é uma espuma que ocupa os espaços. É muito doido pensar nisso, nessa espuma que vai ocupando os espaços interiores, porque o Taxidermia faz isso muito bem no sentido sonoro. Não tem muitos silêncios no álbum e mesmo os silêncios estão ocupados por processamentos e ruídos. Então, acho que tem isso da palavra taxidermia ao pé da letra, como processo. Parece macabro, mas levando para esse sentido do som e dos silêncios é compreensível. Também tem o lance de conservar o formato, conservar um corpo. No Taxidermia a gente quer conservar muito as relações que temos no presente com essas músicas que estão sendo lançadas. Isso aconteceu nos EPs com Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Jéssica Caetano, Pedro Bienemann, que mandou no volume um e agora no disco também. É um registro do momento dessa relação, esse momento em que o disco foi lançado e teve essa conexão. A gente faz o convite para essas pessoas, elas colaboram e se eterniza sonoramente a relação. Tem esse processo, por isso a gente fala que “taxidermizou” essas pessoas. Muitas vezes a gente chama esses colaboradores para poder fazer algo que eles nunca fizeram, então é um marco, de certa maneira. Uma coisa que fica conservada, registrada, que traz justamente essa brincadeira com a palavra.
Como foi o processo de trabalhar junto e pegar essas composições, criar os beats e arranjos e transformar isso em um som do Taxidermia?
Jadsa: Você vai novamente ao pé da letra. Eu sou uma compositora que qualquer coisa que vem na minha cabeça pode se tornar algo. Às vezes chega bem concreto, com melodia, letra, refrão, riff de guitarra, uma frase de baixo. Assim que eu tenho alguma composição que eu acho que se encaixa em alguma narrativa do Taxidermia, eu aviso e mostro pro João. Mas também acontece o processo contrário e o João puxa esse caminho. Por exemplo, tem uma faixa no disco chamada “Sangue Fervendo”. Eu tive uma ideia de melodia e letra que eram duas frases e gravei voz e guitarra. Rolou isso e nós fomos pegar as outras músicas. Aí João veio com uma outra proposta, pegando esse sangue fervendo como inspiração, que mudou a direção da música. É muito louco, quando esse processo é contrário, tipo quando surge um beat que guia o processo. E aí a gente vai fazendo no aqui e agora, pegando esses elementos, entendendo como é que a gente interpreta as músicas. A única faixa que a gente tem juntos, que fizemos letra e beat juntos, é “Big Big”.
João: Vale dizer que a gente teve a oportunidade de fazer esse disco muito junto, presencialmente, um com o outro em muitos momentos. Porque o primeiro e o segundo EPs a gente fez muito a distância. O primeiro foi na pandemia total, o segundo ainda era pandemia, só que um pouco mais relaxado, então a gente teve alguns encontros, mas foi basicamente tudo à distância. No Vera Cruz Island a gente teve muitos momentos de sentar junto, passar uns dias juntos e trampar em muitas coisas. Isso foi bem especial nesse álbum e permitiu que a gente lidasse com diferentes formas de produzir. Geralmente, o que acontece é a gente já ter uma canção, gravamos uma guia e aí pensamos em como elaborar essa ideia com tudo o que pode vir. Se é algum riff, alguma harmonia. Eu vou construindo o arranjo, trocando com Jadsa, ela vai botando coisas, a gente vai fazendo junto até que isso chegar num ponto que nos deixa satisfeitos. E muitas vezes chamamos alguém para colaborar. Tem duas faixas que, salvo engano, “Mil Sensations” e “Sangue Escuro” começaram com o beat. Mandei o beat, a gente pensou pra qual música encaixava, e fomos adaptando o que já tinha para funcionar melhor a canção e foi criando o resto do arranjo. Teve “Sangue Fervendo” que foi desse jeito que Jadsa falou, com uma proposta quando ainda só no Brasil conhecia o twin, sem muita pretensão e acabou virando o que virou. Eu gosto muito disso, que nós temos uma liberdade grande com a própria criação. Imaginar várias formas para a mesma letra, melodia. Há muitas formas de uma música existir. É um pouco o que a gente consegue ver no Vera Cruz Island, com a repetição desse tema, da letra “Na Ilha de Vera Cruz/ Na Praia de Conceição” em diferentes músicas. Tivemos muitas variações de forma de fazer nesse disco e foi massa pra gente ampliar os formatos de trabalho.
O projeto é centrado em vocês dois, mas sempre tem colaboradores. A Maíra na produção, compondo e cantando, o Bruno Berle, Iara Rennó, Rei Lacoste,Tori e vários outros. Como enxergam a dimensão coletiva do projeto?
Jadsa: Acho que é uma maneira, dentro da criação, da forma de pensar e direcionar. Todo mundo que a gente chamou pra estar “taxidermizado” no Vera Cruz, já tinha um trejeito, um modo de fazer próprio que a gente visualizou dentro das canções. E aí a gente vai experimentar, com letra, voz, arranjos, a pessoa passa a poder compor mesmo dentro do disco. São pessoas que fazem parte do projeto, de certa maneira, a pessoa faz parte e a gente vira um corpo só. Bruno Abdala, isso é muito doido, ele não canta na faixa, mas ele compôs uma introdução que é como se cantasse, porque é uma doideira aquilo. O brother é um gênio, você se emociona com o início do disco, é bonito, você enxerga uma paisagem. Então, acho que a onda dessa galera participando do disco é essa. A gente vai vendo, tentando encaixar dentro da canção.
João: Tem muito afeto, a gente chama justamente as pessoas que estão ali com a gente vivendo isso. E também são pessoas que a gente deseja chamar para perto. Isso de trazer, ver o que tem para propor. A gente vai muito em cima dessa história de quem escolher para qual faixa. A gente tá fazendo uma parada e fala: “Poxa, isso aqui tem tudo a ver com o plano, né?” Então, é muito em cima dessa escolha, que bota um desafio para a pessoa e para nós, porque a gente sabe que a coisa vai ser modificada. E também é isso que queremos.
Para fechar, o João falou do verso “Na Ilha de Vera Cruz/ na Praia de Conceição”, que se repete e nomeia o álbum. A Ilha de Vera Cruz é esse lugar na Bahia e também é o primeiro nome do Brasil. Acaba criando uma dualidade e eu queria saber qual foi a intenção jogando com isso.
Jadsa: Todo mundo vai pesquisar Ilha de Vera Cruz e vai dar de cara na história. Acredito que a visão do Taxidermia nesse texto é tentar criar uma outra narrativa com o mesmo nome. Agora a apropriação tem que ser nossa. A gente quer reconstruir essa narrativa, não esquecendo tudo o que rolou. É um sonho, uma ilusão, uma outra coisa. Criamos uma ilha nossa. Mas Vera Cruz para mim, tem um lugar de afeto muito grande, porque morei lá, fui criada na Praia de Conceição. Então acho que a gente tentou fazer a reconstrução de uma narrativa própria, uma coisa nossa. Não que você chegue na Ilha de Vera Cruz e você entenda a história, porque não é uma coisa bem fechada. A maioria das letras compostas foram feitas lá. Tem essa narrativa e tem toda essa história que a gente também traz com a potência do som.
João: A gente fala sobre o afeto da Ilha. A gente tem essa ilha muito próxima de Salvador, que é conhecida como Ilha de Itaparica. E é uma ilha que fica em dois municípios: Itaparica era basicamente uma cidade de veraneio da classe média baiana. Mas a ilha também está no município de Vera Cruz, que é onde fica a praia de Conceição.
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