110 anos de Lupicínio Rodrigues: figuras pretas na música gaúcha 

16/09/2024

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Divulgação/Acervo família Rodrigues

16/09/2024

Em 6 de maio, o Teatro Renascença, localizado na Avenida Érico Veríssimo, no bairro Menino Deus, era um dos pontos de acolhimento à população desabrigada pela enchente causada pela cheia histórica do Guaíba em Porto Alegre. Naquela segunda-feira, o espaço precisou ser evacuado às pressas: as águas avançaram rapidamente sobre os bairros Menino Deus e Cidade Baixa por conta do desligamento de energia elétrica em uma  Estação de Bombeamento de Água Pluvial da cidade. 

O Renascença integra o Centro Municipal de Cultura e Lazer Lupicínio Rodrigues. O teatro foi um dos espaços culturais mais afetados pela cheia e, até o fechamento deste texto, não tinha previsão de reabertura. No mês de junho, foi a vez de um ciclone extratropical atingir a cidade. O local mais afetado foi o Centro que leva o nome de Lupi. 

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Não era esse cenário que se imaginava para o cinquentenário da morte e 110 anos do nascimento do compositor e cantor Lupicínio Rodrigues. A inundação foi algo inédito para o complexo cultural. Mas enchentes, cheias e alagamentos já foram a rotina dessa mesma região que outrora fora o bairro da IIhota. 

Ilhota, quilombo atemporal 

A Ilhota se situava na área que, hoje, abrange desde a Praça Garibaldi, na esquina das avenidas Érico Veríssimo e Venâncio Aires, até a Avenida Ipiranga, e também a região entre as atuais avenidas Getúlio Vargas e General Lima e Silva — interseccionando os atuais bairros Menino Deus, Cidade Baixa e Azenha. A zona alagadiça em que Lupi cresceu surgiu após obras realizadas entre 1904 e 1905, para dar vazão a dois arroios, e ficava literalmente ilhada quando a água subia, o que motivou o seu nome.

No livro Lupicínio: uma biografia musical (2023), o músico, jornalista e pesquisador Arthur de Faria recupera um texto de 1994 publicado no jornal Zero Hora em que a jornalista Clarinha Glock sintetiza a relação da Ilhota, Cidade Baixa e outras áreas da cidade. O “baixa”, que qualifica o nome do bairro que se conectava com a Ilhota por becos e ruas estreitas, fala de relevo geográfico, mas não só: expressava a inferioridade com que a elite enxergava aquele espaço e seus habitantes. 

A partir 1845, final da Revolução Farroupilha, a Ilhota e a CB daquele tempo foram ocupadas principalmente por negros (livres e escravizados), ao lado de brancos e “mestiços” de baixa renda. “Constituíam junto a outras regiões de Porto Alegre, como os atuais bairros Bonfim, Mont’ Serrat e Auxiliadora [e Rio Branco], que anteriormente eram conhecidos pela denominação ‘Colônia Africana’, um refúgio para a população negra de Porto Alegre, antes e depois da abolição da escravatura”, rememora Glock. Ela também comenta a dimensão da identidade do território: 

– No entanto, viver na Ilhota e na Cidade Baixa não significava apenas trabalhar muito, sofrer ou simplesmente sobreviver. Significava experimentar, vivenciar o que não existia fora desse local. Exatamente a grande concentração de negros numa pequena região trouxe a proximidade que faltava para a descoberta de outra forma de ver o mundo, diferente da apresentada pela “cidade alta”. 

Colônia Africana

Choro, samba, carnaval, boemia. Tudo isso tem raízes no alagadiço porém fértil terreno da Ilhota. Como Faria documenta, antes dos 18, Lupicínio já circulava “com desenvoltura e popularidade entre a boemia da Ilhota, do Areal da Baronesa e da Cidade Baixa”. Com dez, 11 anos, o pequeno Lupi já fazia músicas de carnaval, compondo para cordões como “Bloco dos Sujos”, enquanto a marchinha “Quando eu for bem velhinho” foi canetada aos 14 anos. Samba e carnaval sempre se confundiam pelos territórios negros da cidade, sinônimo de música e animação. 

Desde final do século XIX as ruas ao redor da atual Praça Garibaldi ferviam em blocos de carnaval. Octávio Dutra e Pedro Barros, ambos negros, são dois dos maiores nomes da música carnavalesca do começo da década seguinte. Faria informa que Barros foi diretor do bloco “Os Tesouras” e que venceu 17 carnavais no início do século XX. Em 1940 seria seu filho, Hemetério Barros, um dos fundadores de umas principais escolas de samba do RS: o Bambas da Orgia. Em 2024, a quadra também foi atingida pela enchente.

“A Ilhota é uma região de quilombo. Há um processo de manutenção de memória dessa história não só através do Lupicínio, mas também das expressões que têm ali”, explica Mariana Gonçalves, socióloga e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde pesquisa territórios negros, arte, performance e cultura negra no espaço urbano, e também DJ e produtora cultural, integrante dos coletivos Turmalina e Arruaça. 

Quando o assunto é quilombo, o Rio Grande do Sul se destaca como o estado com a maior população quilombola da Região Sul. Entre a Azenha e a Cidade Baixa, está o quilombo Família Fidelix. Compreendendo parte do Menino Deus, está o Quilombo Areal da Baronesa, que foi fortemente afetado pela enchente deste ano. Gonçalves comenta: 

– O Quilombo do Areal fica muito próximo de onde é considerado o berço do samba em Porto Alegre: ali na região da Ruas Barão do Gravataí, Baronesa do Gravataí e João Alfredo, esta [antigamente] considerada a Rua da Margem, onde aconteciam os primeiros desfiles de blocos de carnaval em Porto Alegre. Depois, foi se expandindo para a região dos bairros Bonfim e Rio Branco – Colônia Africana. 

RS dá Samba 


As diásporas negras do Rio Grande do Sul forjaram o samba e o carnaval do estado. Até hoje, existem e resistem majoritariamente pelos esforços da população preta. Por conta de sua pesquisa com ênfase no samba em diálogo com a corrente carioca, Lupicínio Rodrigues não foi exatamente compreendido pela cena cultural do estado.

Em seu já citado livro, Arthur de Faria abre espaço para essa conversa e indica alguns elementos para tal ruído: o projeto de unificação da cultura nacional da Era Vargas e, em paralelo, o desenvolvimento de uma música gaúcha regionalista que não incluía o que Lupicínio e outros artistas locais e negros, como o Caco Velho, se popunham a fazer. 

Para celebrar o legado do sambista, cantor, compositor, percussionista e contrabaixista gaúcho Mateus Nunes, o Caco Velho, o músico e arranjador Rafa Rodrigues idealizou em 2019 o tributo Caco Velho Ensemble. “Caco Foi um dos pioneiros do ‘samba sincopado’, estilo de cantar que influenciou Jackson do Pandeiro, entre outros”, situa. A trajetória do “sambista infernal”, como também era chamado, é cheia de polêmicas. Rafa é quem comenta um delas: 

– Ele trabalhou com Tom Jobim quando este iniciava a carreira e tinha Vinicíus de Moraes como frequentador assíduo de sua casa na juventude. Pode ser coincidência Caco ter feito a composição ‘Uma Só Vez’ cinco anos antes do início oficial do movimento. Mas é fato que ele já trazia esta ideia mais despretensiosa, que depois seria atribuída a Vinicíus, e que o jeito de cantar característico de João Gilberto na bossa nova já era feito por ele. 

Em Porto Alegre: uma biografia musical (2022), Arthur de Faria conta da lenda de que, ao ver Caco Velho cantar e tocar, Walt Disney teria se inspirado para criar o personagem Zé Carioca. “O pesquisador Claudinho Pereira observou que os movimentos do personagem da Disney são exatamente iguais aos de Caco Velho em algumas das suas aparições em filmes da época”, arremata Rafa Rodrigues. 

Carnaval que resiste 

“No atual momento, as escolas estão tentando reerguer o nosso carnaval”, descreve David Wagner, diretor de bateria nas escolas Imperadores do Samba e Copacabana, de Porto Alegre, da Acadêmicos de Gravataí – atual campeã do Carnaval da capital – e Vila Isabel, de Viamão. Ele, que também atua como educador social e coordenador do coletivo Agogôs do Sul, viu com os próprios olhos o auge do carnaval no estado.

“Entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000 o carnaval de Porto Alegre viveu sua época de ouro. Chegou a ser considerado o segundo maior carnaval do Brasil”, rememora Wagner, que também destaca os carnavais de Uruguaiana, Rio Grande e Pelotas. 

E é da região das antigas Charqueadas, atual Pelotas, que vem uma das maiores relíquias do estado: o sopapo. Herança dos povos negros escravizados naquela região, o imponente tambor de 1m e 50 cm de altura por 60 cm de diâmetro,  produzido com tronco de árvore e revestimento de pele de cavalo, ganhou novos usos no século XX, a partir da figura de Giba Giba, músico e ativista que dedicou sua vida e obra em prol do instrumento. Na década de 50, eram os sopros e as batidas no sopapo que embalaram muitos carnavais daqui. 

2024 também marca os dez anos da morte de Giba Giba. De lá pra cá é o filho Edu do Nascimento, músico, percussionista, pesquisador, produtor cultural, educador social, ator e bonequeiro é quem tem sido um dos grandes responsáveis por manter o legado do sopapo e do pai vivos. “Extensão da ancestralidade do coração negro, multiplicada por infinito som, terra, céu, trovão; grave pulsante com agudo agonizante”, é assim que Edu nos descreve som do toque do sopapo. 

Essa ancestralidade do coração negro segue orientando artistas contemporâneos, como a cantora, compositora e performer Paola Kirst. Nascida em Rio Grande, foi a voz eclética escolhida para interpretar “Volta”, clássico de Lupicínio Rodrigues para uma das performances que integraram a exposição  Lupi: Pode entrar que a casa é tua (2023). “As experiências musicais afro-gaúchas representam bastante do que eu e a [banda] Kiai pesquisamos. Meu interesse pelo estudo rítmico está impresso em várias dessas manifestações da cultura popular. Elas são o retrato do lugar de onde a gente vem”. 

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 150 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Ramilonga, de Vitor Ramil, em 2024.

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16/09/2024

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