A ponte entre a contracultura e o pop em “Carlos, Erasmo” (1971)

07/01/2025

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Por: Maurício Amendola

Fotos: Arquivo Nacional/Reprodução

07/01/2025

Meio desorientado, só e sem perspectiva de vida. No livro de memórias Minha Fama de Mau (2008, Objetiva), Erasmo Carlos descreve assim sua condição durante o período que se seguiu após o fim do programa Jovem Guarda, no ar entre agosto de 1965 e outubro de 1968. O movimento extremamente popular – do qual Erasmo, Wanderléa e Roberto Carlos eram os principais representantes – recebera algo como seu golpe final quando o programa deixou a grade da TV Record. O Tropicalismo, com o disco-manifesto lançado em julho de 1968 e Gil e Caetano exilados cinco meses depois, retumbava uma nova forma de fazer “música jovem” no Brasil.

Erasmo sentia o baque e, como aponta no livro, carecia de orientação – um norte, uma perspectiva, um caminho. “Sentado à Beira do Caminho”, parceria com Roberto lançada em maio de 1969, é o registro mais emblemático dessa fase de angústia, incerteza e indefinição, que, nos anos seguintes, se transmutariam em exuberância, criatividade e paz no repertório do brilhante Carlos, Erasmo (1971).

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A ressaca existencial vivida por Erasmo com fim da Jovem Guarda e a sensação de estar ultrapassado podem até ter surtido efeito por um tempo, mas basta resgatar o finzinho dos anos 1960 para confirmar que sua emoção criadora encontrava formas de alçar voos novamente. Em meio a papeis em filmes, viagens como anônimo pela Europa e o início da história de amor com Narinha, Erasmo compunha canções que renovavam o seu pop. Era adulto, mas sem ser careta. Resguardava uma energia jovial, mas tinha como rumo um futuro amadurecido, que colhia os frutos da experiência no Iê-iê-iê e abria espaço para combinações com novas linguagens, incluindo a própria Tropicália – que, aliás, continha em sua geleia geral referências e reverências à Jovem Guarda.

“É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”: produtor fala sobre a faixa presente em “Ainda Estou Aqui”

Entre as pontes que confirmam a ligação entre os dois universos, há uma indiscutivelmente marcante: foi Erasmo – em parceria, como de costume, com Roberto – quem compôs “Meu Nome é Gal”, incluída em Gal (1969), segundo disco da baiana.

“Coqueiro Verde” (gravada com o Trio Mocotó), as releituras de “Saudosismo” e “Aquarela do Brasil”, além da própria “Sentado à Beira do Caminho”, presentes no disco Erasmo Carlos e Os Tremendões (1970) são outras evidências de que o artista, à sua maneira, vinha encontrando munição para entrar de vez na década de 1970, completar os malditos 30 anos de idade e olhar a Jovem Guarda pelo retrovisor.

Ricardo Alexandre, jornalista responsável pelo podcast Discoteca Básica e pelo texto de Carlos, Erasmo, na seção de mesmo nome, para a revista Bizz em 2000, vê o clássico de 1971 como uma linha de chegada para o percurso que vinha sendo traçado por Erasmo após o fim da Jovem Guarda. Para ele, o próprio Erasmo Carlos e Os Tremendões, embora permeado por cacoetes do Iê-iê-iê, já demonstrava inquietações e ousadias artísticas que seriam arrematadas em Carlos, Erasmo.

“A maior parte das músicas de Carlos, Erasmo fala sobre um mundo perdido, em transformação. É um disco que capta muito do espírito de conflito entre sonho e realidade, romantismo e pragmatismo, entre os anos 1960 e os 1970. Mas da perspectiva de um homem pacificado. É um disco muito sereno, a voz do Erasmo está muito serena. O Erasmo Carlos e Os Tremendões (1970) é um pouco caótico artisticamente e ainda feito sob a sombra do Iê-iê-iê, mas ele aponta para tudo o que teria no Carlos, Erasmo. O Carlos, Erasmo é quase a arte final de Erasmo Carlos e Os Tremendões”.

Carlos, Erasmo foi o primeiro disco do cantor pela Phonogram – a gravadora de Tim Maia, Os Mutantes, Caetano e Gil. Mais um entre os tantos sinais de que o papo era outro, o momento era outro. Com carta branca do diretor da gravadora, André Midani, Erasmo foi o centro gravitacional de uma verdadeira seleção na produção, na composição e no instrumental do disco. Dos Mutantes, Liminha, Dinho Leme e Sérgio Dias ao célebre guitarrista Lanny Gordin e o fundador dO Terço, Sérgio Hinds; de Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle, Vitor Martins a Taiguara e Nelson Motta; de Rogério Duprat, Arthur Verocai a Manoel Barenbein e Chiquinho de Moraes. A turma toda esteve ali. Como resultado da união de um time tão estelar – capitaneado por um Erasmo repousado, mas em plena ebulição criativa –, Carlos, Erasmo é, ao mesmo tempo, pop e sofisticado, complexo e direto ao ponto, delicado e visceral. Há certamente um diálogo com a Tropicália, como as participações não negam, mas o repertório sustenta uma estética original e autêntica, bebendo de fontes universais e brasileiras e servindo uma mistura calibrada, de mixologia exclusiva.

“O Erasmo consegue metabolizar [o diálogo com o tropicalismo] de muitas maneiras diferentes. E quando chega à gravadora, ele tem a liberdade de gravar um disco sem nenhuma necessidade de remeter à Jovem Guarda e ao Iê-iê-iê. Tem condições psicológicas, emocionais e tem os músicos. Os Mutantes, o [Rogério] Duprat fazendo arranjos, o Lanny Gordin – que tocava com Gil, Gal e Caetano… Nesse sentido, o Carlos, Erasmo acaba sendo um encontro geracional muito homogêneo. Porque o Erasmo estava com essa cabeça em direção ao presente e ao futuro do pop global – e agora, ele tinha as ferramentas para isso”, explica Ricardo.

Desenvolvido durante dez meses e com singles divulgados aos montes antes de seu lançamento oficial, o sétimo álbum de estúdio de Erasmo Carlos abre com “De Noite na Cama”, o grande sucesso do repertório, composta por Caetano e enviada direto do exílio londrino. O clima festivo-embriagado toma conta da faixa, em meio a coros despojados e espontâneos – até que a voz de Erasmo surge, sozinha, como a de um líder da bagunça organizada.

Um riff de guitarra marcante se alia ao piano cheio de blues em um cartão de visita e tanto. O refinamento continua por outras abordagens, como na deslumbrante e singela “Masculino, Feminino”, na qual Erasmo divide os vocais com Marisa Fossa (do grupo O Bando), em uma conversa musical de manhã, na cama. São pequenos detalhes compondo uma paisagem de tirar o fôlego – dos coros a pequenos fraseados de guitarra. Uma toada que segue por dois minutos até ser invadida, em um refrão tardio, por um naipe de cordas cinematográfico, quando a doce voz de Erasmo anuncia que a chuva fina cai. O mesmo tipo de surpresa acontece em “Em Busca das Canções Perdidas nº 2” cuja simplicidade nos hipnotiza até desembocar em um groove dos bons deflagrado por guitarras crocantes.

O rock assume o protagonismo na pedrada “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo” – composta, segundo Erasmo, inteiramente por Roberto, ainda que creditada aos dois –, de refrão apoteótico e atmosfera à la Isaac Hayes.

Está, também, na releitura endorfinada e elétrica de “Agora Ninguém Chora Mais”, lançada originalmente por Jorge Ben Jor em 1965; e em “Dois Animais Selvagens Na Rua”, composta por Taiguara em homenagem ao casal Erasmo & Narinha. O amor, aliás, aparece revigorado em Carlos, Erasmo. Seja pela poesia de Erasmo ou de seus ilustres colaboradores, o repertório reimagina formas de falar de amor. Não necessariamente romântico e idealizado, mas sempre intenso, verdadeiro, profundo. Há ainda talento e energia para contestar dogmas em “Sodoma e Gomorra” e “Não Te Quero Santa”, abrir espaço para a profusão sonora de metais e cordas em “Ciça, Cecília” (produzida por Nelson Motta, com arranjos de Verocai) e “Mundo Deserto”, criticar a alienação burguesa em “26 Anos” (dos Irmãos Valle), e homenagear a maconha na ritualística e psicodélica “Maria Joana”. Além de “Gente Aberta”, uma canção pop perfeita.

Da escolha das palavras ao arranjo simples e cativante; da guitarra sutil e certeira à percussão que cresce junto com o feitiço conjurado no ouvinte – até culminar em Erasmo, glorificado e desprendido, gritando “eu vou, eu vou, eu vou”. No podcast Discoteca Básica, Ricardo conta que o clássico se tornou um hino de fé no futuro para a equipe do Pasquim, presa por conta da Lei de Segurança Nacional, na época da ditadura militar.

Carlos, Erasmo tem rock, Iê-iê-iê, Tropicalismo, funk, soul, folk. É espiritualizado, filosófico e político, mas, ao mesmo tempo, imerge em angústias e alegrias mundanas de maneira descomplicada, afável e, com certeza, contagiante. É, sobretudo, uma ponte erguida entre o subversivo e o popular. “É a perspectiva de diálogo com o pop – com o mercado, com o público. O que a gente vê em Carlos, Erasmo, do começo ao fim, liricamente, musicalmente e esteticamente, é uma tentativa de fechar esse fosso do Brasil da contracultura e do mercado. É a briga boa desse e de outros discos do pop brasileiro. Conseguir ou pretender fechar esse fosso”, reflete Ricardo. Embora, à época, tenha sido recebido com entusiasmo por crítica e público, Carlos, Erasmo não desfrutou do mesmo sucesso comercial de trabalhos anteriores (e posteriores) do Tremendão e teve fôlego curto. Muito por conta de um Erasmo mais tranquilo e livre do que nunca.

“Acabou virando um disco cult. Tinha acabado de sair, e o Erasmo casou, ele não trabalhou esse disco. Toda a história do Carlos, Erasmo é anterior ao lançamento do disco. Tem singles, música em novela. O disco obedece a lógica de que ele encerra um processo – e não abre um processo, como virou um formato mais tradicional depois. Não é um exemplo de sucesso comercial como o Erasmo teve antes e depois na carreira. Mas foi um disco bem-sucedido para o que se esperava dele. Emplacou hits, não fez feio, não deixou a desejar”, aponta Ricardo.

Ainda que feche um ciclo iniciado anos antes – provavelmente em “Sentado À Beira do Caminho” –, Carlos, Erasmo faz parte de uma sequência arrasadora que ainda traria outros discos indispensáveis como Sonhos e Memórias (1972) e Banda dos Contentes (1976). Especialmente a partir do fim dos anos 1990, ganhou o status de clássico, de um dos discos definitivos e fundamentais do pop nacional, em um período de redescoberta e revalorização – liderado por pesquisadores, críticos e jornalistas como Marcelo Fróes, Pedro Alexandre Sanches e o próprio Ricardo Alexandre. “O Erasmo era um cara sempre muito tido como um representante um pouco mais rebelde da Jovem Guarda ou como um hitmaker dos anos 1980. E o Carlos, Erasmo era uma disco que provava que tinha uma outra profundidade na obra dele”.

Após a euforia da Jovem Guarda e o baque pelo fim, Erasmo conseguiu realizar uma curva acentuada, trazer os aprendizados no porta-malas, mas oferecendo novas caronas que rendiam deliciosos diálogos, durante um caminho em direção ao futuro. E Carlos, Erasmo é o símbolo desse período, em que os anos 1960 ficavam para trás e era preciso dar um jeito. Seus ecos e lições têm e terão ressonância sempre que um artista for capaz de entregar canções que, escapando de nichos, espalhem e promovam compreensão do mundo e da realidade que nos cerca e se transforma.

“O diálogo, a capacidade do artista de ajudar o público a entender o tempo em que ele vive. Oferecer esperança para esse ouvinte e observador e, ao mesmo tempo, conseguir trazer questionamentos de várias naturezas – musicais, estéticas, ideológicas e culturais. É um disco que tenta levar, numa linguagem popular, assuntos complexos e delicados. Isso deveria ser o objetivo da arte. E é um dos grandes discos que fazem isso no Brasil em todos os tempos”.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 154 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Erasmo Esteves, em 2024.

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