Nos anos 1990, entre as ladeiras de pedra sabão de Ouro Preto (MG) — as mesmas por onde percorreram Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade na expedição que inspiraria o movimento modernista — um casarão espalhava música pela vizinhança. De lá, saíam desde sinfonias clássicas a versões dos Beatles tocadas no piano. Era a casa de Ronaldo Toffolo, um apaixonado por música, o que se provava por sua imensa coleção de discos. A veia musical também correu no sangue dos filhos, influenciados por todo aquele ambiente: Rodrigo, Rodolfo e as gêmeas Mara e Marina, decidiram, ainda crianças, que queriam aprender a tocar violino. O pai, é claro, incentivou.
Anos depois, a rotina musical ultrapassou as paredes do casarão, ganhou novos adeptos e virou missão de vida. Nascia assim a Orquestra Ouro Preto, uma das mais populares do país, que completa 25 anos de história, levando música clássica — muitas vezes, de graça — para os brasileiros. A efeméride não poderia passar batida: entre as comemorações, o grupo lança, nesta sexta (21/03), o álbum Orquestra Ouro Preto: Villa-Lobos, Piazzolla e Mehmari, o 22º da discografia.
Neste trabalho, Bachiana Brasileira nº 9, de Villa-Lobos, ganha a interpretação da Orquestra. De Piazzolla, o álbum traz Suíte del Ángel, com arranjos inéditos de José Carli, parceiro do compositor.
A outra novidade é a adaptação de mais uma obra literária brasileira para os palcos, transformando em ópera o excelente Feliz Ano Velho, livro de estreia de Marcelo Rubens Paiva publicado em 1982.
Das páginas para os palcos
O lançamento não poderia ser mais oportuno, já que o livro voltou a ser um dos mais vendidos do país com o boom de Ainda Estou Aqui (2014), do mesmo autor e vencedor do Oscar na versão cinematográfica. Mas o maestro, Rodrigo Toffolo, garante que a decisão já estava tomada antes de todo esse hype. Não é difícil de entender: assim como muitos de sua geração, Rodrigo se apaixonou pela narrativa crua e espirituosa de Rubens Paiva em torno do acidente que o deixaria tetraplégico aos 20 anos.
“É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”: produtor fala sobre a faixa de “Ainda Estou Aqui”
A decisão marca, também, uma obra mais contemporânea a ser adaptada pela Orquestra: a primeira foi o Alto da Compadecida, de Ariano Suassuna, publicado em 1955, seguido por Hilda Furacão, publicado em 1991, mas que se passa nos anos 1960.
A jovialidade da obra de Rubens Paiva, que se passa nos anos 1970, será palpável na adaptação, como adiantou o maestro: “Compartilhei minha visão sobre o livro, que, apesar de abordar uma tragédia, não necessariamente nos lança nela”, disse, em um bate-papo com a imprensa no teatro Casa da Ópera de Ouro Preto, construído em 1769, o mais antigo em funcionamento da América Latina.
Perguntamos como será a adaptação do livro para os palcos e o maestro adiantou que a escolha passa por recortes de cena. Um deles é o momento em que Marcelo vê outros cadeirantes em um parque, numa quase epifania, como se finalmente se reconhecesse entre os demais após o acidente. “Essa será a grande valsa, um dos momentos mais bonitos da ópera”, conta. Rodrigo também adianta a participação de Arrigo Barnabé. O artista é mencionado no livro, que também contextualiza a cena musical de São Paulo nos anos 1970.
A ópera Feliz Ano Velho estreia na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, no dia 14 de junho, e depois parte para Belo Horizonte.
Música e legado cultural
Aos 25 anos, a Orquestra vem levando música para cada vez mais pessoas: já se apresentaram na International Beatle Week, de Liverpool, e por outros locais da Europa, com versões de Alceu Valença.
Todo esse legado começou com os livros, discos e instrumentos que inspiraram os primeiros membros da orquestra desde a infância. “Nossa casa sempre foi assim. O Ronaldo ama óperas, e ele tem uma coleção de 14 mil CDs! Então, naturalmente, meus meninos cresceram nesse ambiente musical”, conta a matriarca, Marília Toffolo, diante de uma imensa mesa de café da tarde oferecida aos jornalistas, bem a gosto da hospitalidade mineira, direto do casarão onde o maestro cresceu e vive hoje.
Naquela expedição a Ouro Preto liderada por Mário de Andrade em 1924, chamada “Redescobrimento do Brasil”, os artistas tiveram certeza que, do barroco de pedra sabão de Ouro Preto, nascia também uma identidade de Brasil. Mesmo importada da Europa, aquela arte tornou-se mais nossa. Mais de um século depois, Ouro Preto continua exportando arte e cultura, dessa vez, em forma de música.