Antes de pedir passagem no seu álbum de 1972, Elza Soares abriu caminhos no carnaval carioca. Pela Acadêmicos do Salgueiro, campeã naquele ano, deu voz a “Bahia de Todos os Deuses” na Avenida Presidente Vargas, onde à época aconteciam os desfiles.
Em 1973 e 1976, a Mocidade Independente de Padre Miguel, escola do coração de Elza, a recebeu no carro de som. A vitória não veio nesses dois momentos, mas o verde e branco da Mocidade dominou a Sapucaí em 2020, quando a escola homenageou a artista com o samba-enredo “Elza Deusa Soares”.
No desfile, Elza veio imponente, sentada como uma rainha num trono do carro alegórico “Você tem fome de quê?”, o último a atravessar a Avenida. Festejada não só pelos membros da escola como também por quem estava nas arquibancadas, a história da mulher do fim do mundo foi contada pelo samba-enredo, que teve Sandra de Sá no time de compositores.
Assim como a homenagem a Elza Soares, ao longo das décadas, outros sambas-enredo reverenciaram importantes cantoras da música brasileira. Como uma chuva de confetes, os versos sobre suas vidas se espalharam pelo carnaval carioca.
Clara Guerreira
1984 foi um ano chave para a folia carioca. De 1978 a 1983, os desfiles já aconteciam na Avenida Marquês de Sapucaí, mas numa estrutura provisória – as arquibancadas, por exemplo, eram montadas e desmontadas ano a ano. Essa situação tomou outro rumo quando o arquiteto Oscar Niemeyer criou um projeto para o Sambódromo, a convite do então governador do estado Leonel Brizola e seu vice, Darcy Ribeiro. Depois de apenas quatro meses de obras, o samba levou de vez as suas malas para lá.
Naquele ano de mudanças, a Portela optou por celebrar a tradição. No samba-enredo “Contos de Areia”, homenageou postumamente três personalidades: Paulo da Portela, grande defensor do samba que ajudou a moldar os desfiles como conhecemos; Natal da Portela, um dos responsáveis pela construção da atual sede da agremiação; e Clara Nunes, torcedora ilustre da escola.
Além de fazer referência a uma das músicas mais famosas da cantora, “Contos de Areia” representa Clara Nunes como Iansã, orixá dos ventos e das tempestades: “É cheiro de mato / É terra molhada / É Clara Guerreira / Lá vem trovoada / Eparrei”.
O tributo veio um ano após a morte da artista mineira, como retribuição ao amor que ela já havia demonstrado pela Portela. Em 1975, Nunes puxou o samba-enredo da escola junto com Silvinho da Portela. E em 1981, a faixa “Portela na Avenida” abriu seu disco Clara.
Foi essa relação nutrida por Clara Nunes e pela Portela que a escola retratou em 2019 na Sapucaí, com o samba-enredo “Na Madureira Moderníssima, Hei Sempre de Ouvir Cantar Uma Sabiá”. Nessa mescla, também entrou a visita que Tarsila do Amaral fez em 1924 a Madureira, bairro onde fica a quadra da escola – desse momento surgiu a inspiração para a pintura “Carnaval em Madureira”.
Em versos como “Mestiça, morena de Angola, sou eu / No palco, no meio da rua, sou eu” e “No canto de um Sabiá, sambando até de manhã / Sou Clara Guerreira, a filha de Ogum com Iansã”, a memória da artista foi preservada, assim como nos figurinos de diversas alas. Com o primeiro casal de mestre sala e porta-bandeira, a caracterização de Lucinha Nobre fez Clara Nunes serenar. E no último carro alegórico do desfile, a atriz Emanuelle Araújo interpretou a eterna sabiá da Portela.
Verde e rosa
A Estação Primeira de Mangueira tem uma relação de longa data com nomes notáveis da música brasileira. “Um enredo da escola, inclusive, fala sobre essa conexão: ‘Mangueira é Música do Brasil’”, recorda Gustavo Gasparani, ator, diretor, dramaturgo e coautor do livro Três poetas do samba-enredo: compositores que fizeram história no carnaval (Cobogó). Para ele, as origens desse entrelaçamento remontam aos tempos de Cartola e Nelson Cavaquinho, dois sambistas fundamentais para a história da Mangueira.
Um desses elos despontou em 1985, ano em que a morte de Chiquinha Gonzaga completou 50 anos e a história da instrumentista, compositora e maestrina foi parar na Avenida. “Abram alas que eu quero passar” foi o nome do samba-enredo que fez um aceno ao legado de Gonzaga. Em 1899, a carioca compôs “Ó Abre Alas”, pioneira das marchinhas de carnaval.
Prestando homenagem à Chiquinha na comissão de frente, a mangueirense Leci Brandão se caracterizou como se estivesse no começo do século XX, enquanto os foliões cantavam “Vamos reviver o Rio antigo / Onde Chiquinha se fez imortal / Oh! Deusa da folia / Rainha do meu Carnaval”.
Quase uma década depois, em 1994, a Mangueira voltou seu olhar para os Doces Bárbaros, quarteto formado por Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Caetano Veloso. Na sinopse que apresentou o enredo para a escola, eles foram descritos assim pelo carnavalesco Leandro Vieira:
“Caetano Veloso e Gilberto Gil são, sem dúvidas, dois dos maiores compositores desse país. Maria Bethânia e Gal Costa são, sem dúvidas, duas das maiores cantoras desse país. Cada um deles, individualmente, seria um belo tema enredo para qualquer escola de samba do Rio de Janeiro.”
A verde e rosa não mentiu. Em 2016, “Maria Bethânia: a Menina dos Olhos de Oyá” foi a narrativa que a Mangueira decidiu contar. Ao apresentar os 50 anos de carreira da cantora e compositora baiana para a Sapucaí, a escola garantiu o título de campeã naquele ano.
Os ventos de 2024 levaram a Mangueira de volta à música. “A Negra Voz do Amanhã” mergulhou na história de Alcione, torcedora da escola há 50 anos. “A ficha demorou a cair porque nem em meus melhores sonhos eu poderia pensar em ser alvo de uma homenagem dessa grandeza. Ser homenageada na Sapucaí e, ainda por cima, pela minha escola do coração. Ah, isso era uma coisa que jamais poderia imaginar… Não tem preço!”, Marrom conta.
Além de focar no percurso da cantora, o samba-enredo passou pela riqueza da cultura do Maranhão, terra da artista. Essa não foi a primeira vez que Alcione foi homenageada no Carnaval; no Rio, ela já foi honrada pela Independentes de Cordovil e a Unidos da Ponte já, enquanto em São Paulo, a Mocidade Alegre a levou para o Sambódromo do Anhembi.
No entanto, sua relação com a Mangueira – onde, em 1987, ajudou a fundar a Mangueira do Amanhã, escola de samba mirim da agremiação – fez com que a homenagem de 2024 tivesse uma sensação diferente.
“Foi muita emoção ver a minha história sendo contada na Passarela do Samba… Sinceramente, não existe maior honraria para um artista. Principalmente para uma cantora popular, como eu”, compartilha.
Rainha da Ciranda
Outra figura emblemática da música brasileira passou pela Sapucaí em 2024: Lia de Itamaracá, como tema de samba-enredo da Império da Tijuca. A escola abriu a roda para comemorar os 80 anos da cirandeira mais importante do país, que carrega o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco.
“Sou Lia da Itamaracá, Cirandando a Vida na Beira do Mar” norteou o desfile, do qual a artista participou. Para ela, foi emocionante pisar no Sambódromo que antes só via pela televisão e ver sua história sendo contada.
“O meu amor, o meu carinho é levar a minha cultura para fora e apresentá-la para as pessoas. Eu ter levado a cultura de Pernambuco para o Rio de Janeiro, para uma escola de samba… Pernambuco tem mais é que me agradecer (risos)”, brinca.
O caminho até a Avenida
Assim que um Carnaval acaba, o próximo começa. Como tudo gira em torno do enredo que será levado para a Avenida, a definição do assunto é uma das primeiras etapas no planejamento de um desfile.
“O tema é escolhido primeiro, geralmente entre maio e junho, às vezes até antes. A partir daí, desenvolve-se uma sinopse, que serve de inspiração para os compositores da escola”, explica Gustavo Gasparini, coautor de Três poetas do samba-enredo.
Sua parceira no livro, a pesquisadora, jornalista e escritora Rachel Valença, complementa: “A escolha se estende por várias eliminatórias, tempo necessário para que os componentes da escola se familiarizem com os sambas concorrentes e demonstrem essa preferência torcendo por eles. Geralmente três ou quatro sambas chegam à final, uma noite festiva para a escola, em que o campeão, escolhido por uma comissão julgadora composta por representantes de todos os segmentos (bateria, harmonia, baianas, velha guarda, etc.), é anunciado.”
Se hoje as escolas contam com os streamings para divulgar seus sambas-enredo, nas décadas de 1970 e 1980, foram os discos de vinil que ajudaram a popularizar essas canções e também seus compositores, sobretudo financeiramente.
Não são poucas as regravações de sambas-enredo que ganharam o gosto do público. Com essa perenidade, no caso de grandes nomes da música brasileira, isso tem uma importância ainda maior.
“As escolas de samba, criação do povo negro do Rio de Janeiro como forma de associativismo e de resistência, têm um forte compromisso com a cultura popular. Ídolos da música sempre renderão enredos com boa aceitação, de entendimento fácil e de forte apelo emocional, além de contribuir para que o legado dessas pessoas não seja esquecido”, Valença arremata.