Esta matéria foi publicada originalmente na edição #97 da revista Noize, lançada em 2020.
Naquele tempo, era tudo diferente. Plantações e criação de gado ocupavam boa parte do espaço ao redor da Estrada do Portela e da linha férrea do bairro Oswaldo Cruz no início do século XX. Mas nos últimos anos, a região rural onde antes funcionavam engenhos vinha recebendo novos moradores. Muitos chegavam de longe, especialmente do Vale da Paraíba e de Minas Gerais. Outros eram cariocas obrigados a encontrar um lar após a Reforma Pereira Passos, que transformava a face urbana do Rio de Janeiro.
Dona Esther foi uma das pessoas que se mudou para lá no início dos anos 1920, mas ela era uma personalidade. Sua casa promovia grandes festas, reunindo artistas como Pixinguinha e Donga e até políticos influentes. Em 1921 (ou 1920, há controvérsias), Esther e seu marido ajudaram a fundar um bloco chamado Quem Fala de Nós Come Mosca. Para rivalizar, surgiu outro, o Baianinhas de Oswaldo Cruz. Da mistura de ambos, nasceu, em 1923, o Conjunto Carnavalesco Oswaldo Cruz. Em 1929, esse grupo virou o Quem Nos Faz é o Capricho, depois batizado de Vai Como Pode até que, em 1936, ganhou o nome de Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela.
Nessa época, Antônio Candeia era flautista e gráfico, uma figura conhecida em Oswaldo Cruz. Frequentador assíduo do samba, era próximo às lideranças portelenses e acompanhou de perto o nascimento da escola. Aliás, teve papel decisivo, pois é atribuída a ele a criação da Comissão de Frente, ideia que surgiu na Portela e virou regra nos desfiles.
Quando nasceu seu filho, em 17 de agosto de 1935, foi como se a criança herdasse esse contexto. O nome que ganhou foi o do pai, Antônio Candeia Filho, e, desde pequeno, já ia nas festas da Dona Esther. Conforme Candeia explicou na última entrevista de sua vida, publicada pelo Pasquim em 1978, aqueles eventos eram assim: “Começava com o samba, na frente tinha o chorinho, mais atrás o baile de salão, também sanfona, e lá atrás a escola de samba, a batucada violenta e da pesada”.
Para sua filha, Selma Candeia, seu pai foi muito influenciado por aquele ambiente e ela diz que, apesar do seu avô ser contra, seu pai viu cedo que a vida dele estava ligada à arte: “Pra sociedade da época, todo sambista era marginal, por isso, meu avô não queria que meu pai ficasse nisso. Mas meu pai foi mordido pelo samba e pela veia poética”.
Cruzando a linha dos trilhos do trem, havia um muro da estação férrea e um pessoal se reunia lá no início dos anos 1950, por isso eles foram apelidados de Turma do Muro. Conforme João Baptista M. Vargens conta na biografia Candeia – Luz da Inspiração, Candeia começou a frequentar esse local e foi lá que ensaiou suas primeiras criações, ao lado de Waldir 59, Casquinha, Picolino e outros dessa geração.
Esses sambistas começaram a se aproximar da Portela e, com 17 anos, Candeia apresentou pra escola “Seis Datas Magnas”, parceria com Altair Prego (outro da Turma do Muro). A música não só venceu o concurso para ser o samba-enredo do ano como rendeu nota 10 do júri em todos os quesitos do desfile de 1952 – algo que nunca havia acontecido no Carnaval do Rio. Com isso, Candeia ganhou prestígio e, até o fim da década, emplacou outros quatro sambas-enredos na Portela.
Seguindo uma crescente, parecia que nada podia lhe abalar. Foi com esse espírito que Candeia ouviu o conselho do seu grande amigo Bretas, que já era policial. Em 1957, com 22 anos, Candeia prestou concurso e virou Investigador da Polícia Civil.
Entre o revólver e o pandeiro
Conciliar as carreiras na polícia e no samba não era algo tão incomum quanto pode parecer. Na verdade, virar policial era (e é) uma alternativa profissional frequente para jovens da periferia e Bretas, Arlindão Cruz (pai do Arlindo Cruz), Waldir 59 e Candeia mantiveram essas rotinas em paralelo no final dos anos 1950.
Segundo sua filha, Candeia uniu a personalidade rígida, fruto de sua educação familiar, ao posto de autoridade: “Ele já tinha a posição de não aceitar a baderna, era meio turrão. Quando entrou para polícia, continuou a mesma coisa, só que mais agressivo. Ai de quem apitasse”. Candeia acabou se destacando e chegando a prender bandidos famosos, como Neném Ruço. Também prendeu Ronaldo, seu irmão de criação, que, conforme Selma, “começou a fumar as maconhas dele” na juventude: “Meu pai avisava: ‘Ó, se te pegar, vou te prender’. Ninguém levou fé e ele prendeu mesmo”, diz.
Na entrevista ao Pasquim, Candeia deu a sua versão sobre sua passagem de oito anos na polícia:
– Eu não podia modificar as posições nem contestar as leis e os regimes existentes – fui policial pela necessidade de sobreviver – mas não fiz disso um marco para pressionar ninguém. Tanto é verdade que mesmo sendo policial consegui manter a popularidade que sempre tive dentro da Portela ou de outras escolas como o Império ou a Mangueira. Gozo até hoje desse respeito porque nunca fui de plantar maconha dentro do bolso de ninguém (…) Até porque fui criado no meio de bandido e pistoleiro, tem colega meu que tirou 15 ou 20 anos de cana, lidei com o pessoal de favela, de morro, que tinham seus vícios por lá e me respeitavam por eu não ter. (…) Nunca fiz da polícia motivo para persegui-los, pelo contrário, em algumas ocasiões me indispus lá [com a polícia]. O cara por ser negro e andar de sapato branco, elemento de escola de samba, (…) já havia a convicção de que aquele elemento era um marginal. Eu entrava em choque justamente por achar que os maiores marginais – até hoje os maiores criminosos desse país – usam pastas e gravatas.
Conforme a biografia de Vargens, Candeia teria prendido o sambista Dominguinhos do Estácio. Porém, em entrevista à NOIZE, Dominguinhos nega. “Conheci ele chamando a gente pra revista, pra saber se era bandido ou se não era, mas nunca me prendeu, não. No Estácio de Sá, a malandragem era toda ali, mas nunca me envolvi em nada”, afirma Dominguinhos. Paulinho da Viola também já contou em entrevistas que conheceu Candeia em 1962, quando ele lhe abordou e pediu seus documentos (dois anos depois, eles se tornaram parceiros de composição).
Mas durante os oito anos de passagem pela polícia, ele sempre seguiu como músico. Em 1957, saiu o disco A Vitoriosa Escola De Samba Da Portela, que trazia gravações de “Despertar De Um Gigante”, “Legados De Dom João VI” e “Brasil Poderoso”, composições dele com Waldir 59 e Picolino. Em 1961, ele formou com Casquinha, Picolino, Arlindão Cruz, David do Pandeiro, Jorge do Violão e Bubu da Portela o grupo Mensageiros do Samba da Portela. Em 1966, foi lançado o LP A Vez do Morro, único registro deles.
Acontece que, no fim de 1965, uma tragédia mudou tudo. No documentário Candeia (2018), de Luiz Antonio Pilar, o compositor Catoni conta uma história sobre isso que é parte da lenda do sambista:
– Quando Candeia chegava na Lapa… (…) “Vem o detetive Candeia, meu Deus…”. Aquela correria danada. E teve uma velha que ficou. Era mãe de uma menina que falava com um rapaz que era sobrinho do Natal [da Portela, bicheiro e antigo líder da escola], o Ícaro. Então, o Candeia chegou: “Por que você não correu, sua velha safada?”. Aí ela disse assim: “Eu não corri porque eu não tenho medo de gente. Se você fosse bicho, eu correria, mas você não é bicho”. E, por causa daquilo, a velha levou um tapa na cara. Ela virou-se pro Candeia e falou: “Olha, você me deu um tapa na cara, mas você não vai ter mão pra dar tapa em ninguém…” Foi dito e certo.
A biografia de João Baptista M. Vargens (que era amigo pessoal de Candeia) também apresenta a história de que ele teria sido amaldiçoado por uma mulher na Lapa. Selma Candeia pondera: “Nunca escutei esse relato. Não sei se é verdade, acho que é mais pra engrossar a biografia. Mas de repente meu pai relatou alguma coisa [ao João], eles eram muito amigos, pode ser que seja [verdade] mesmo”.
O fato é: na noite de 13 de dezembro de 1965, Candeia recebeu uma festa em sua homenagem, pois estava se despedindo da polícia, em breve iria assumir o cargo de Oficial de Justiça. A festa foi no clube Imperial, em Madureira, e seu amigo Waldir 59 estava lá. No livro de Vargens, Waldir diz o seguinte sobre aquela noite:
– Duas horas da madrugada, fui embora. Estava em Madureira esperando um táxi e ele [Candeia], que foi levar o pai em casa, me chamou para ir ao Leblon. Insistiu e, por ele estar bêbado, resolvi ir. Candeia ia levar uma pequena em casa. (…) Na saída do Catumbi-Laranjeiras, quando vínhamos no final da Marquês de Sapucaí, perto da Presidente Vargas, Candeia bateu no caminhão de peixe. Quando dobrou, pegando a Presidente Vargas, ele cruzou o caminhão e botou o carro na frente. Desceu. Olhou o pára-lama. Viu que estava amassado. Pegou o revólver e esvaziou todos os pneus do caminhão. O ajudante pulou. Caiu perto de Candeia. Candeia deu uma “colada” no cara e o cara fugiu. O outro ajudante pulou e a mesma coisa. Aí, ele falou pro italiano que estava dentro da boléia: “Agora é você!”. O cara mandou tiro e saltou a pé. A garota do Candeia correu atrás do cara com o revólver sem bala. E Candeia caído. Suspendi o homem, botei-o no ombro e fiquei na frente de um táxi. A pulsação dele a zero. Ao deixar o Candeia no [hospital] Souza Aguiar, desmaiei. Depois fui apanhar a arma do Candeia e os documentos do cara do caminhão.
Em trono de rei
Candeia tinha 30 anos quando cinco tiros lhe acertaram em plena Marquês do Sapucaí tirando para sempre seus movimentos da cintura para baixo. Após batizar com seu sangue a rua onde as escolas de samba carioca desfilam hoje, Candeia virou outro.
– São duas épocas: uma é Candeia antes do acidente, detetive, compositor de Portela; outra é Candeia pós-acidente, líder negro, compositor, partideiro. É a mesma pessoa, mas são diferentes. Pelo sofrimento, por tudo que passou, com a reflexão de ver onde errou, onde acertou, ele evoluiu muito – diz Selma.
Na entrevista ao Pasquim, o próprio Candeia falou: “A gente aprende que o sofrimento purifica a alma. Isso é meio místico mas é verdade. O sofrimento nos leva a uma evolução que nos ajuda a tirar bom proveito da adversidade. (…) Na hora da adversidade é que a gente tem que mostrar que tem axé”.
João de Aquino, violonista e produtor de discos importantes na história do samba (incluindo Axé!), concorda e dá sua visão sobre esse processo:
– A cadeira de roda foi o trono que ele arrumou, é um negócio profundo isso. Porra… ele tinha uma profundidade… Da cadeira de rodas foi de onde surgiu esse Candeia. Porque ele não era mole, não. Ele dava porrada em sambista na porta de escola de samba. Ele era o terror dos caras, era polícia brabo! Foi uma mudança radical. Esse tiro fez surgir “o” Candeia. Antes era o Antônio Candeia Filho. Depois, virou “o” Candeia. Se ele não tomasse aquele tiro, ele não seria o Candeia.
No documentário Candeia, Wilson das Neves, sambista, percussionista e baterista do disco Axé!, comentou: “Precisou ele sentar numa cadeira para poder ser o que ele era na realidade, eu vejo por esse lado. Um grande poeta, um grande músico que estava escondido atrás de uma capa que não era ele, né? Naturalmente, o orixá, o santo, disse: ‘Peraí que eu vou botar pra fora o verdadeiro cara’. Pintou um anjo, né?”. Nesse mesmo filme, o compositor Paulo César Pinheiro disse algo parecido: “Tinha duas músicas: a música do Candeia em pé e a música do Candeia sentado. E as pessoas sabiam qual era de uma época e qual era de outra. Dizem que a do Candeia sentado era mais triste”.
Nos primeiros anos após os tiros, Candeia entrou em estado de depressão, recusando-se a sair de casa. “Ele não aceitava que ninguém o visse numa cadeira de rodas”, lembra Selma. Porém, no fim da década de 1960, há um movimento dos seus amigos, que resolveram frequentar mais sua casa para lhe fazer companhia e convencê-lo a voltar ao samba. Bretas, Mazinho e Martinho da Vila foram pessoas especiais nesse primeiro momento. Como lembra Angela Bretas, filha do amigo de Candeia, Bretas ajudou o sambista a adaptar seu carro para que ele pudesse voltar a dirigir. Já Martinho levou-o ao programa de Bibi Ferreira na TV Tupi e em dois shows definitivos para a volta da sua autoestima, o primeiro no Jacarepaguá Tênis Clube e o segundo no Teatro Opinião, onde Candeia tocou “De Qualquer Maneira”, cuja letra cita explicitamente sua paralisia.
A partir dos anos 1970, pode-se dizer que ele voltou à ativa. A década começou com o lançamento do seu primeiro disco solo, Candeia (1970). No ano seguinte, saiu Raiz (relançado depois como Filosofia do Samba), que, além de grandes sambas, destaca-se pela faixa “Saudação a Toco Preto”, uma gravação histórica que ainda não teve a atenção que merece, ao menos no Brasil. Toco Preto é uma entidade, Exu Toco Preto, e essa música de Candeia reconstrói a célula rítmica que se ouve em um terreiro acrescentando à percussão arranjos de teclado, baixo e naipes de metal. Em meio a saudações a Exu – “Laroyê” – o resultado é um som que remete ao afrobeat que Fela Kuti estava criando na mesma época do outro lado do Atlântico, na Nigéria. Não por acaso, “Saudação a Toco Preto” já saiu nas coletâneas estrangeiras Brazilian Beats 3 (2001), do selo inglês Mr. Bongo, e Passport… For Travellers (2002), do selo espanhol So Dens.
Ainda em 1971, veio o disco Minha Portela Querida: Sambas de Terreiro – 1972, que continha duas músicas de Candeia: “Meu Dinheiro Não Dá” (com Catoni) e “Deixa de Zanga”. Em 1972, ele gravou “Lá Vai Viola” e “A Volta” em Partido em 5, disco que se tornou um importante registro do partido alto. Em 1974, Clara Nunes lançou sua composição “Sindorerê” e, no ano seguinte, outra que virou um dos maiores sucessos dela: “O Mar Serenou”.
Clara Nunes era uma entre os muitos artistas que visitavam Candeia regularmente. Tornaram-se famosos os encontros lá, sempre regados a muita comida, bebida e partido alto. A partir daí, Candeia, que sempre teve uma personalidade forte, virou um ponto aglutinador central no samba carioca. A essa altura, ele já era uma entidade e sua palavra tinha muito peso. Por isso, foi um momento difícil quando ele e um grupo de sambistas escreveram uma carta à Portela levantando uma série de críticas à escola. Eles estavam preocupados com os rumos que o Carnaval estava tomando, onde os componentes e sambistas estavam cada vez mais distantes e com menos voz perante a diretoria. Após o texto ser ignorado, Candeia resolveu criar, em 1975, sua própria escola, a Quilombo.
A partir de então, ele reforça sua postura de liderança, dedicando-se a enfatizar a importância da cultura de matriz africana para a música brasileira e questionando o racismo estrutural e a condição social da população negra brasileira. Na entrevista para o Pasquim, ele aborda muito esse tema, inclusive pegando o gancho do ataque às religiões afro-brasileiras. “Sou amigo dos santos, dos meus orixás, e acabou. Essa posição desagrada porque é a do cara que assume”. “Então você é um constestador?”, perguntou a jornalista Lena Frias. “Não, sou franco-atirador”, respondeu Candeia.
Em 1975, ele fez o disco Samba de Roda e estreou como produtor, ajudando seu amigo Babalorixá Lázaro a gravar o LP Cânticos de Candomblé (Nação Ijexá e Angola). Nesse mesmo ano, saiu o disco Partido em 5 – Vol. 2 com duas faixas suas, “Luz da Inspiração” e “História de Pescador”. No ano seguinte, produziu outro disco, Quilombo – Jongo Basam e Capoeira de Angola, no qual registrou a música do Jongo da Serrinha e das rodas de capoeira.
Em 1976, Candeia escreveu outro capítulo da história do samba, “Preciso me Encontrar”, composição eternizada na voz de Cartola. Já em 1977, lançou um compacto com Dona Ivone Lara, outro compacto com duas músicas em homenagem à Quilombo, o LP Quatro Grandes do Samba (com Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros e Guilherme de Brito) e o LP solo Luz da Inspiração. O ano seguinte foi o seu último e, infelizmente, Candeia não viu sua obra-prima pronta.
Levante a cabeça, irmão!
João de Aquino conta que estava lançando seu disco Terreiro Grande (1978) e que, depois do show, Candeia lhe procurou e disse: “Você é o cara que eu quero pra fazer esse disco”. O disco era o Axé! e Candeia já estava com o repertório pronto. Aquino aceitou fazer a produção, mas lembra que foi difícil porque o sambista já estava mal de saúde quando foi para o estúdio: “Ele estava debilitado. Durante a gravação, a mulher dele, a Leonilda, ia aplicar injeções nele e, toda vez, ele falava: ‘Não me leva agora, não! Eu quero ouvir esse disco!’”. “Ele estava ficando frágil”, comenta Selma: “No início, fazia fisioterapia, massagem, depois foi abandonando, não tinha um exercício, não fazia uma dieta, comia tudo que via”.
Apesar da saúde, Candeia estava envolvido de corpo e alma nos seus projetos. Em 1978, ele lançou com Isnard Araújo o livro Escola de Samba – Árvore que Esqueceu a Raiz, registrando sua avaliação sobre a história do Carnaval. E, na última entrevista de sua vida, ele comenta o conceito de Axé!: “Não é que o disco seja sem faixas. Tem um lado onde a música foi ficando comprida, emendando um pedaço no outro, e não colocamos faixas pra separar; mas isso não é nenhuma bossa, apareceu por causa de uma necessidade que sentimos”. De acordo com Aquino, Candeia sabia que essa seria a sua última obra, tanto que essa ideia norteou o disco.
– A capa veio dele. Lembro que, quando vi, falei: “Candeia, essa capa tá muito funerária. Um violão, uma lamparina…”. E ele falou: “Mas tem que ser assim, João. Despedida é assim”. Olha o que o cara disse pra mim… E tem aquela: “Hoje é manhã de carnaval…” [“Dia de Graça”]. Naquela, lembro de ter falado pra ele: “Ó, vou fazer um funeral de Nova Orleans. Não precisa nem cantar, você vai falar e a percussão vai dar a entonação”. E ele falou: “Sim, é isso aí mesmo!”. Aquilo era um funeral de negro – diz João de Aquino.
Ele explica ainda que as vozes de Candeia que foram usadas no disco não seriam as vozes oficiais, mas sim registros de base para os músicos gravarem suas partes: “Falei pra ele: ‘Pô, vamos gravar primeiro os convidados, depois boto você cantando pra valer’. Essa voz dele era só pra guiar os artistas”.
Não deu tempo de gravar as vozes finais. De forma súbita, Candeia foi internado e, no dia 16 de novembro de 1978, às 11h30, morreu vítima de uma parada cardíaca provocada por uma septicemia. No dia seguinte, seu corpo foi velado no cemitério Jardim da Saudade, onde foi enterrado a poucos metros de Natal da Portela. De acordo com matéria publicada no O Globo um dia após sua morte, Cartola foi um dos primeiros a chegar no velório, seguido por Alcione e Roberto Ribeiro. “Foi uma comoção”, diz Selma: “Não me lembro muito porque eu desmaio. Nem vi meu pai ser enterrado, cai dura e, quando voltei, já tinham enterrado”.
João de Aquino conta que finalizou o disco sozinho e, no dia 9 de dezembro, Axé! já estava nas prateleiras. No dia 19, houve um grande show de lançamento do disco no Teatro da Galeria, reunindo Velha Guarda da Portela, Clara Nunes, Beth Carvalho, Alcione, Martinho da Vila e Paulinho da Viola. Na época em que saiu, o LP foi muito elogiado, sendo logo encarado como a obra-prima de Candeia. Em 1979, Axé! ganhou o Troféu Villa-Lobos, da Associação Brasileira de Produtores de Disco, na categoria Raízes. Hoje, é considerado um dos álbuns mais importantes de samba já feitos.
De lá para cá, Candeia virou tema de livro, peça de teatro, documentário, samba-enredo, tese acadêmica, teve vários dos seus discos relançados, tem ruas com o seu nome no Rio de Janeiro e em São Paulo (no Rio, há também um terminal de ônibus chamado Mestre Candeia). Ainda assim, seu legado não se esgota, mantém-se como uma chama que acalenta novos fãs. Mais do que nunca, Candeia é um farol, um ponto de referência que não deve ser perdido no horizonte. Um ser humano complexo, rico por sua densidade, forte por sua ousadia, com uma trajetória de altos e baixos responsável por firmar as raízes da música popular brasileira.
LEIA MAIS