São 10h de uma quarta-feira, penúltimo dia de outubro, e Alice Carvalho está de folga, perto do mar, procurando sossego. “No meio desse vendaval, peguei um carro e viajei. Preciso disso, senão não dou conta”, divide, por telefone. Longe do Rio de Janeiro, onde mora há mais de um ano, a atriz natural de Parnamirim, no Rio Grande do Norte, está de volta ao Nordeste, na Paraíba, onde estão acontecendo as gravações da segunda temporada da série Cangaço Novo.
No papel da protagonista Dinorah Vaqueiro, uma assaltante de bancos que luta com sangue nos olhos para sobreviver no sertão cearense, Alice, que tem 28 anos e é artista há mais de 20, virou estrela. Os pés, no entanto, estão fincados no chão, pisando bem devagarinho. “Me vejo cada vez mais operária. Cada vez mais querendo envelhecer, amadurecer e encontrar outras camadas do que eu posso fazer”.
O enredo rendeu à artista o Prêmio Grande Otelo de Melhor Atriz, e a produção foi eleita a melhor série do ano na mesma cerimônia. Em paralelo, Alice deu vida à Joaninha, no remake da novela Renascer, no horário nobre da TV Globo. “Um dia ruim de audiência bate 20 milhões de telespectadores, é um absurdo”, revela, com o tom de voz de quem realmente se espanta com a grandeza.
Dona de uma atuação visceral, a atriz cresceu nas coxias dos palcos. Em paralelo, claro, outras formas de expressão surgiram: ela é diretora, roteirista, escritora e sanfoneira sazonal. Canta também, mas só de brincadeira, garante. “Não me levo muito a sério, mas sempre tive uma parada forte com a música, foi meu primeiro contato com a arte. Começou dentro de casa com meu tio e meu avô”.
Tentar extrair qualquer tipo de vaidade de Alice é uma tentativa vã. Com a sabedoria de quem cultiva sua fé, defende suas crenças e se posiciona politicamente sem medo, ela dá os créditos ao tempo, que a ensinou a se balançar no meio da agonia. “Tenho essa coisa dentro de mim, um senso crítico muito grande que tive que controlar. Não tem macumbeiro que aguente uma situação dessas. Fui aprendendo a dar uma relaxada”. Ogum está sempre de ronda, trazendo clarão ao olhar.
Dedicada à Dinorah, a música “Ciranda Seca”, que integra o novo álbum solo de Samuel Rosa, descreve a personagem dizendo que “ela é fogo nos olhos, é febre nos passos, ela é faca nos dentes”. Abaixo, é possível perceber que os adjetivos podem ser igualmente destinados à Alice, que fala sobre passado e futuro sem se esquivar do presente.
A repercussão de Dinorah foi muito grandiosa. O que mudou na sua vida depois dessa personagem?
Quando eu recebi o APCA (ela foi eleita Atriz Revelação pela Associação Paulista de Críticos de Arte em 2023), eu estava ao lado do ator Milhem Cortaz, que tem 30 anos de carreira e estava ali recebendo o seu primeiro grande prêmio. Tenho 28 anos, 20 de teatro e trabalho dedicado às artes cênicas. Comecei pequenininha. Então, é repentino aos olhos de fora, talvez, e digo isso muito humildemente. Dentro da minha cabeça, não houve um vendaval que viesse junto com esse sucesso que aparenta ser meteórico. São 20 anos de sufocos, alegrias, recompensas lindas e teatro, muito teatro antes de chegar ao audiovisual. Muita literatura, também. Muitos estudos e mãos que me puxaram para cima.
Mas houve, de fato, esse sucesso repentino.
Enxergo isso mais como uma realidade desse momento presente, até porque pode ser que amanhã eu não tenha trabalho nenhum. Faço arte, mas a gente vive dentro de um sistema bruto, duro, capitalista. Agradeço pois sei da importância de Cangaço Novo, e logo depois Renascer, mas pode ser que amanhã essa peste de ‘bola da vez’ caia por terra. Os 15 minutos de fama, agora, viraram 15 segundos de stories. Então, eu tento estar conectada com o presente, intimamente conectada com meus personagens. Isso tem segurado o meu Orí. Alguns desses comentários externos podem mexer o chão sob meus pés.
Quais são os delírios e as delícias desse momento?
Essa coisa da TV é muito maluca. Uma noite, quando pouca gente assistiu, 20 milhões de pessoas assistiram. É uma loucura. O início foi meio difícil, estava muito tensa e a cobrança era enorme. Você vai fazendo e assistindo, quase em tempo real, então eu via muitas coisas e pensava ‘que coisa horrorosa’. São 15 cenas gravadas em um dia, algumas acabam ficando mais frouxas, porque é um volume grande. Fui aprendendo a dar uma relaxada. Falo comigo mesma: ‘Brother, é isso. Tomara que amanhã eu esteja melhor’.
Como era um dia comum na sua vida antes da carreira de atriz ter esse tamanho?
Acordar, pegar dois ônibus e ir para a universidade. Sou formada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e passava o dia inteiro lá, escrevendo, imersas em editais e projetos. Sou neta criada por um professor universitário e por uma cabeleireira carismática. Minha mãe foi mãe muito jovem, mas tive muito incentivo para ser a melhor versão de mim. A gente não tinha grana, mas tinha muito desejo de ver as coisas acontecerem.
Como as outras expressões artísticas surgiram?
Comecei a estudar escrita cinematográfica em 2014, e de 2016 para a frente coloquei em prática. Fiz parte de coletivos, sempre nessa vida de editais. Em paralelo, participava de algumas montagens. Três semanas antes de fazer o teste para Cangaço, eu estava circulando com um monólogo chamado Inkubus, que estava rodando desde 2017. Eu me apresentava bastante, mas eu queria algo com música. Quando estava mais apertada de grana, virava DJ. Fazia de tudo para fechar o mês e manter meu canto vivo. Às vezes, sinto falta dessa correria. A escassez me abriu portas para outros aprendizados a partir da necessidade.
Além de tocar sanfona, existem outras artes ocultas?
A arte mais oculta é desenhar, ela é a mais enrustida, que fica dentro do armário, mas está sempre dentro do meu processo. Quando estou trabalhando personagens, desenho muitas cenas.
Você já se enxerga como a artista que você sempre quis ser?
Não sei a resposta. Acho que eu me enxergo no meio do processo, como uma operária. Cada vez mais querendo envelhecer, querendo amadurecer, querendo… encontrar outras camadas do que eu posso fazer. Tento fazer um trabalho ser diferente do outro. Mesmo que não esteja impresso na tela essa diferença, tento fazer com que o processo seja diferente do anterior, acho que isso é mais importante do que o resultado. Quando estou dentro do processo criativo, isso me impede de ficar tão ligada no que as pessoas estão achando de mim.
Você tem uma grande parceria com o BaianaSystem. Como essa relação teve início e quais foram os frutos dessa troca?
Em 2018, em meio às eleições, criei o vídeo-manifesto Aqui Não, que abordava o Nordeste como resistência progressista no país. Russo [Passapusso] viu o vídeo e me convidou para exibi-lo no show da banda em Natal. Quando eu me bati com os meninos, foi amor à primeira vista. Isso marcou o início de uma parceria intensa, que se transformou em várias colaborações visuais, videoclipes e performances. Em 2023, lançamos o videoálbum Navio, que tem circulado em festivais de cinema e música.
Pensa em trilhar outros caminhos na música? É um campo que você se vê? Sua versão de “Espumas ao Vento” fez sucesso…
Sou próxima do pessoal do Luísa e os Alquimistas, são parceiros de longa data, inclusive, já dirigi muita coisa para ela. Gabriel Souto, produtor musical dela, foi quem produziu “Espumas ao Vento” para a trilha sonora do Cangaço. A gente tem um sonho, um delírio para acontecer mais à frente, que é um EP com músicas que eu ouvia com o meu avô Dito, o amor da minha vida. Algumas coisas com o Baiana vão rolar ano que vem, porque o Russo é um cara que me puxa. Mas não existe um compromisso meu nesse lugar, não me levo tão a sério assim.
Você foi premiada pela Academia Brasileira de Cinema e citou um trecho de “Não Nasci Para Tomar Baculejo”, de Russo, para se referir ao gosto das conquistas. Como é esse gosto?
É o gosto de não ter virado estatística e poder ver os meus velhinhos felizes e orgulhosos com a minha caminhada.
Você é muito ativa politicamente, fala abertamente sobre sexualidade, sua fé e caminha na contramão do conservadorismo. O seu trabalho artístico também pode ser uma ferramenta política?
Com certeza. Acho que esses papéis se encontram justamente porque eu também trago muito de mim para eles. Dinorah, por exemplo, é intensa, feminista e combativa, e esse discurso forte dela é algo que eu também carrego. Quando interpretei uma personagem ligada ao movimento sem-terra, foi especial, porque essa luta é próxima. Mesmo quando um papel tem um discurso oposto ao meu, consigo dar uma camada política na construção dele. Percebo nas pesquisas de elenco que existe esse olhar para a minha figura. Como eu me posiciono politicamente, como eu jogo meu corpo no mundo.
Existe uma certa poesia no jeito que você se comunica. De onde vem esse jeito de falar da vida?
Tudo vem do meu avô, eu sou uma farsa. Ele é mil vezes melhor que eu. Essa coisa que você vê, vem do jeito de dar bom dia, de falar com os outros. Ele também é um grande escritor. Acho que tudo na minha vida eu roubei dele.
Existe alguma música que tem te acompanhado nesse seu momento de vida? Qual é a trilha de Alice?
“Jah Jah Revolta”, do BaianaSystem. Acho que é uma das letras mais lindas que Russo já escreveu, estou sempre ouvindo não só no fone de ouvido, mas no pé do ouvido mesmo. A voz dele me orienta, é uma pessoa da maior importância na minha vida. Um irmão.
Esta matéria foi publicada originalmente na Revista Noize que acompanha o vinil “Rosa”, de Samuel Rosa, lançado em 2024.