Os limites da música em Presença, novo disco de Cássio Figueiredo

21/03/2016

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Leonardo Baldessarelli

Por: Leonardo Baldessarelli

Fotos: Divulgação

21/03/2016

Havia passado algum tempo desde o lançamento de Presença quando Cássio Figueiredo entrou em contato com a distribuidora ONErpm para disponibilizar o disco em várias plataformas online de música, como o Spotify e o iTunes. Quarto álbum do jovem carioca, Presença foi lançado no Bandcamp no primeiro dia de 2016 e é totalmente mergulhado nas sonoridades drone, ambient e noise, focado na manipulação de gravações de campo, na produção de sons e efeitos que chocam e carregam afetos difíceis de traduzir em palavras. É o diálogo de registros como os de uma janela se abrindo com harmonias profundas e distantes, às vezes não se identificando como tais. Conceitual, o trabalho – como o próprio Cássio explica – se esforça em expressar uma “presença” que o artista sente, “o clima que me envolve, os símbolos que com tanta força tento interpretar da melhor forma possível”. Até hoje, é carregado de dúvidas do próprio criador, sobre o nome “presença”, sobre a foto escolhida como capa. E foi com um quê de surpresa que Cássio recebeu a notícia de que o álbum, já destacado por sites como Floga-se, Miojo Indie e o volume morto, havia sido rejeitado pela distribuidora, sob o argumento de que os áudios não eram considerados “música” pelas lojas. Produto de ações tão emocionais e caóticas do artista, Presença foi rejeitado simplesmente por – supostamente – não apresentar padrões melódicos ou verbalizações.

Por mais de um mês antes da resposta da ONErpm, conversei com Cássio sobre o Presença por Whatsapp e Facebook, num longo papo justamente sobre as fronteiras do que é ou não “música”, sobre a produção do disco e sobre sua vida artística. Aos 19 anos, ele produz desde 2010, vindo do black metal até o field recording, e hoje vive em Niterói, onde estuda filosofia na Universidade Federal Fluminense. Mesmo antes do retorno da distribuidora, Cássio considerava a questão do “ser ou não música” um dos pontos principais do seu projeto e comentou diversas vezes sobre a questão, além de falar da carreira e explicar detalhes sobre o disco e sua produção, feita em parceria com Cadu Tenório – um dos maiores nomes da música experimental brasileira nos dias de hoje. Entre no mundo de Presença abaixo e leia a entrevista na íntegra em seguida.

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Logo na apresentação do Presença você comenta que o disco expressa algo que você sente ao seu redor. Essa “presença” seria algo mais próximo á sua conexão com o mundo no dia-a-dia ou algo metafísico, até sobrenatural?
Se aproxima mais de uma conexão minha com o entorno, mesmo. E tento ao máximo compreendê-la fora de uma concepção metafísica, embora eu ache que envolva algo de místico.

Os nomes das faixas e os sons presentes dão espaço para interpretar que há objetos e coisas do seu cotidiano representados sonoramente. Realmente há alguns deles nas músicas?
Não de forma direta. Quero dizer, a representação dos objetos pelos sons das músicas não é uma representação imediata. Acho que passou bastante pelo crivo da interpretação. Em “Caminhão de Lixo” o som não vem de um caminhão de lixo, e nem de um ônibus ou coisa parecida em “Condução”, por exemplo.

E a participação do Cadu Tenório como produtor e em algumas musicas? Como você conheceu ele e como rolou a ideia de ele estar tão inserido no Presença?
O conheci através do trabalho dele mesmo, e de começar a ir em algumas apresentações de projetos que ele participa. Logo de cara enxerguei algumas similaridades com o que eu estava buscando fazer. Começamos a conversar e já tinha deixado no ar a ideia de ele participar na produção de algum trabalho meu por vir. O plano inicial era que fosse do Projétil, mas eu e Sandy acabamos não compondo mais nada, e como eu sofro de ansiedade e já estava com o Presença quase pronto, mandei pra ele para ver no que dava e felizmente ele gostou. E rolou.

O Cadu tem um lance que eu respeito muito, que é o de só se envolver onde tiver tanta liberdade quanto os outros que participam. A ideia da participação na parte da composição, por exemplo, foi dele. E eu só fiquei sabendo em quais faixas ele participaria no dia em que ele me entregou o “disco” pronto. Um dia antes do lançamento.

E, depois de receber o disco, que diferenças você sentiu com a participação do Cadu?
Acho que os aspectos que depois de várias audições da minha master, a original me chamaram mais atenção (e isso porque ficavam um pouco abafados por alguma desatenção minha no tratamento do áudio) ficaram totalmente claros na primeira audição da master final, depois do Cadu. Ficou tudo muito audível, com certeza. Perdeu um pouco da confusão ruidosa que era antes, embora eu goste bastante da master original. Até porque eu ouvi mais ela do que a final, é desde junho.

E você já chegou a pensar em lançar essa master original?
Sim, já até pensei. Mas não devo levar em frente.

Na entrevista contigo feita pelo GG Albuquerque, você comenta do conceito de “presença na literatura” do Gumbrecht (“ele meio que busca uma compreensão da literatura escapando um pouco de compreender através da linguagem simbólica e tudo mais e procura ver como isso se transfigura na forma de afeto, pelo clima que é retratado, mais pelas sensações descritas e como isso tudo meio que transporta a pessoa pra uma outra realidade”) que meio que deu o start nos pensamentos ao redor do conceito do disco; mas você também comenta que tua percepção da presença mudou depois do álbum. O que dessa “presença” do Gumbrecht ficou no resultado final? A ideia de presença como o afeto meio intersubjetivo com as coisas do mundo, que você já comentou, veio mais do autor ou de outro lugar?
A “presença” do Gumbrecht me causou esse impacto todo também porque desde o final da minha infância eu fui reparando que em diferentes épocas da minha vida, as rotinas, os cheiros, as pessoas, as relações, os sons, enfim, tudo o que me atravessava, atravessava em conjunto. E essa unidade eu chamava de atmosfer,a mesmo sem saber definir muito bem o que eu queria dizer. O próprio Gumbrecht define atmosfera de uma maneira mais ou menos similar a isso, embora o contexto seja diferente. Acho que isso fez com que rolasse uma identificação quase que paranóica e os conceitos foram tomando forma na minha cabeça.

De que formas o estudo de filosofia influencia tua musica? Tu sente que o fato de tu fazer um som conceitual vem muito disso?
O lance de ter entrado no curso de Filosofia me fez encarar meu processo de composição e gravação (que, nesse caso, são quase como uma coisa só) de uma outra forma. Meio que forneceu um suporte imaterial pra compreender de uma maneira mais coesa tudo que estava acontecendo, enxergar um fio condutor que atravessa cada trabalho de forma separada e também em conjunto com os outros. Essa forma de trabalhar os sons, dialogando com alguns conceitos, acaba que modifica o som que se pretende fazer antes de se ter feito, pelas ideias que o envolvem. E o contrário também acontece.

E antes da faculdade, você começou a fazer som desde cedo? O que te levou a se aproximar do drone/noise?
Eu produzo música em casa desde os 14. Comecei no fim de 2010 um projeto de ambient/black metal chamado Less e que conta com duas demos<Fruity Loops e o Reason e dei início ao Inutiargu em 2013, onde o flerte com o ruído foi aumentando.

Interessante que o Presença faz parte do tipo de mergulho no experimental que você teve, só que, no caso, que eu estou tendo. Estou começando a ouvir e gostar bastante desse tipo de som, só confesso ter demorado pra entender o “apelo” disso. Achei dificílimo de digerir. Então, assim, você acha que pra algo ser música precisa ter esse tal de “apelo” natural, melodias, timbres, harmonias? Acha que ser um disco lançado por alguém que se diz músico já classifica isso como música? Você sequer se importa com essa parte mais epistemológica da música?
Não acho que esse apelo seja natural. Acho que a música tendo fim em si mesma perde bastante o sentido de existir. E várias pessoas levam esse sentido para vários lugares diferentes. Tendo motivações vindas, por exemplo, de experiências, relações, lugares, pessoas, sentimentos, é possível rolar alguma certa “identificação” com quem ouve. É problemático dizer identificação porque musicalmente falando esse som causa bastante desconforto, mas nem sempre essa identificação vem de primeira com o som escutado. O entorno integra totalmente o puro som gravado. Daí já dá pra fazer uma ligação com aquilo que estávamos falando sobre o conceito.

Não acho que a música tenha algum tipo de limite, a não ser o próprio som. A composição musical para mim é um processo de organização de sons e basicamente é só isso. Não entenda como relativismo, é bem complicado alguém chegar e se dizer músico só por ter gravado um disco feito tudo zoado por intenção. Eu mesmo não costumo me dizer músico. Mesmo assim, a matéria do disco, de certa forma, é música sim, só resta saber se tem alguma maneira de encontrar algo que valha a pena nela. E isso quem diz nunca é quem se diz ou não músico.

Pelo que saquei, então, em outras palavras da pra dizer que esse apelo não faz parte da “essência” da música. É tipo aquela coisa básica, de que o que um acha agradável outro pode não achar, e tudo isso seria muito mais das impressões culturais das pessoas, certo? Seria como dizer: não há como algo ser essencialmente belo, só se é belo a partir da experiência humana. Ou estou exagerando?
Sim. Em outras palavras, é mais ou menos isso mesmo.

Eu vi que tu deu uma parada no Inutiargu há um bom tempo. Você pretende seguir em frente com ele? Ou meio que acabou? E por que você focou nos lançamentos com o nome “Cássio Figueiredo”?
Não tenho nenhum plano de volta com o Inutiargu, e acho que vou continuar, assim. Resolvi seguir com meu nome porque, depois de um tempo, as diferenças entre minhas impressões sobre o que eu fazia e minha própria vida foram diminuindo. (tanto que, no fim do texto de apresentação de Presença, Cássio comenta: “Está tudo aqui, disperso e junto, caótico e distinto, e minha carta de rendição a qualquer forma de separar criador e criatura”).

Por ser um disco que explora teus afetos com relação ao mundo, você acha que Presença é um bom retrato do Cássio Figueiredo de hoje? Ou isso não é nem a pretensão da coisa toda?
É meio complicado definir minha relação com os sons que eu faço e com o projeto como um todo, e, para falar a verdade, essa pergunta até me assusta por de alguma forma exigir uma resposta mais ou menos sólida. Por assinar os trabalhos com meu nome, rola muita confusão com o que se materializa dos sons como ideia e a minha própria concepção de mim e de Eu. Acho que é o mais próximo que eu consigo de formular alguma coisa hahaha.

Deu pra sacar. E qual é o sample/gravação que explode aos 15 segundos de “Retorno”? É um dos meus momentos favoritos no disco, acho que tem uma força imensa.
O som que rola em Retorno essa hora é a reverberação da aceleração da fita no gravadorzinho de mão. Várias pessoas comentam que sentiram um impacto essa hora na audição, achei curioso.

Por fim, voltando para aquele papo sobre arte conceitual, você acha que tem como fazer arte experimental/contemporânea sem ser conceitual? Tipo, você acha que tem como fazer arte experimental que funciona na simples fruição? Que não precise do “engajamento” pleno do sujeito que visualiza pra ser apreciada?
O que rola para a arte contemporânea ser considerada essencialmente como conceitual é que o foco do pensamento no momento que isso tudo entrou em cena foi muito pra linguagem. E perceber que tudo se atrela a um significado e que isso pode ser apropriado de diversas formas pela matéria que forma a obra. Esse modo de encarar serve não só pra enxergar a música dita experimental mas pra literalmente tudo em volta, ao meu ver. A música contemporânea dita experimental foi só um meio que a música encontrou de se apropriar desse novo terreno. Acho que com isso a pura e simples fruição de algo que antes de se apresentar já de antemão exige certa interpretação já descaracteriza essa experiência estética como tendo um laço estreito com essa coisa do conceito.

Se você se interessou pelos sons e ideias de Cássio Figueiredo, dá para baixar toda a discografia solo do cara no Bandcamp.

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21/03/2016

Redator de social media, jornalista, músico, emo, jogador de bocha, astrólogo e benzedeiro nas horas vagas. Um colono que se encontrou na cidade grande e agora pensa que sabe escrever sobre qualquer coisa.
Leonardo Baldessarelli

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