Decidi dar as costas para o palco. Esta não é frase de efeito dita por um músico cansado em alguma coletiva na estrada. É uma decisão pessoal. Meu trabalho é, dentre coisas muitas, observar o que Gilberto Gil chama de extraordinariamente amplo mercado da música. E contar sobre ele. Propor perguntas, desexplicar conceitos, antever gerações. Por isso, meu foco principal de observação era sempre o artista, o universo ao redor do criador.
Acontece que dia desses falei sobre vinis, tempo e madeira com o Nando Reis e, entre uma coisa e outra, ele explicou que achava curioso o jeito com que os jornalistas entendem o mercado. Porque o músico, a canção, o show, são apenas detalhes de uma foto muito mais ampla e que começa e deságua no público. No cara que vai mais cedo só pra chegar perto. Na moça que baixa o CD (não sejamos hipócritas) e, no entanto, faz questão de escutar na ordem proposta pelo artista, porque sabe que disco é uma narrativa com início, meio e fim. Ou seja, eu tava olhando pro lado errado.
Verdade que eu já havia escutado incontáveis vezes coisas como “quem faz o show é o público. É que desta vez, mano, bateu. Na sequência desta conversa, assisti dois ou quatros shows de costas para o palco. E tudo se tornou novo para meus velhos olhos. Por isso, peço licença para dividir com você os detalhismos das pessoas que não fazem música, não estão no palco e sequer pretendem lançar um disco. Gente que quer é viver.
Pra começar, um ou outro cidadão de Garanhuns, cidade na região serrana de Pernambuco, terra de Lula e Dominguinhos, onde o frio tem coragem de se levar a sério. Eles foram avistados defronte ao palcos do FIG, festival de inverno que há vinte e três anos espalha uma programação gratuita de shows, circo, teatro, cinema, dança, literatura e artes visuais, pelas ruas e parques a quem interessar possa. Uma festa cuja trilha sonora é feita ao vivo por convidados que mudam todos os anos. Neste 2013, Caetano Veloso, Naná Vasconcelos, Ney Matogrosso, Chico César, Lirinha, Zeca Baleiro, Dado Villa-Lobos, Karina Buhr e otros más.
Sem alardes e tirando dinheiro do bolso. O pessoal da banda Cidadão Instigado, liderados por Catatau estão trabalhando em um disco de musicas instrumentais com influência forte e descarada do rock clássico. Ao levar o show só com estas musicas para um dos palcos de Garanhuns, provocou quatro pedidos de bis, dois desmaios de moças e um improvisado e surreal concurso de air guitar entre quem estava com o nariz colado no palco. Uma catarse coletiva comandada pelo guitarrista que muitas vezes, fecha os olhos durante uma canção inteira. Bem mais tarde, na Lolóteria, uma lotérica convertida em festa onde “todo mundo” ia na madrugada, um moço cujo nome não me recordo – e não sou de mentir – repetia que Catatau era Nietzsche porque aquele show não tinha palavra mas dizia “torna-te quem tu és.
“Smells Like Teen Spirit”, do Nirvana, “Enter Sandman”, do Metallica, “Paranoid”, do Black Sabbath e “The Trooper”, do Iron Maiden. Com maquiagem estilo Kiss, o integrante da orquestra de frevo do Maestro Formiga (Ademir Araújo) enumerava as músicas que gosta de tocar no trompete, segundos antes de – junto dos companheiros de orquestra – dividir o palco com Andreas Kisser, guitarrista do Sepultura. Eles tocaram todas. E os aplausos demoraram 12 minutos pra cessar.
Meu nome? Meu nome é Laique. Anotou? Meu nome é Laique. “Debaixo de uma chuva fininha e constante, ele dançou sem parar minuto algo durante o show da Ópera Bajado, orquestra de 30 elementos – entre metais, cordas e percussão – , dirigida pelo maestro Ivan do Espírito Santo. Era um repertório de serestas, choros e frevos e serestas inspirados nas telas do artista plástico Bajado, popular em Olinda. Quando Naná Vasconcelos e a banda Batucafro entraram no palco, Seu Laique desembestou a cantar músicas dele mesmo, fazendo da mistura de bandolim, percussão e cavaquinho que saia do palco, acompanhamento para uma trilha sonora que só ele sabe que existe. Deu certo. Conseguiu duas moças pra dançar. Polegares pra cima e piscadelas para quem buscava coragem de abandonar a segurança do guarda chuva. Pontualmente à 0h, encheu os olhos de lágrimas ao avistar os fogos de artifício que anunciaram a entrada de Ney Matogrosso. Não saiu do lugar, não cantou nenhuma das musicas e ficou sem piscar enquanto Ney cantou Freguês da Meia-Noite”, do Criolo. No bis, “Ex-Amor”, de Martinho da Vila, 50 mil pessoas em coro e Seu Lique sentou no chão. “Sámenina, eu nunca tinha visto uma coisa assim. Não vou mais me esquecer que isso existe”.*
Nem eu.
* Durante todos os dias em que estive no festival o poeta Mario Quintana berrou dentro da minha cabeça. “Democracia é dar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um.” Que assim seja. Amém.
Cris Lisbôa é escritora gostaria de saber onde vendem aquelas plastiquinhos para proteger vinil e dá aulas de escrita criativa no Go, Writers.